domingo, 27 de outubro de 2013

Democracia digital

As manifestações que ganharam as ruas do país em junho mostraram a importância da internet na mobilização das massas. O tempo passou, e ficou a dúvida: será que as ferramentas da democracia digital têm efetividade? No caso do Brasil, essa nova forma de participação política ainda engatinha, mas pesquisadores não têm dúvidas de que seu futuro é promissor.

Imagine poder escolher o prefeito de sua cidade pela internet ou participar de um plebiscito sem sair de casa, direto do celular, tablet ou do computador pessoal. Ficção?

Na Suíça, há uma década, a cena faz parte do cotidiano das pessoas, mas ainda é uma exceção. Por aqui, a chamada democracia digital dá os primeiros passos – com alguns tropeços – rumo a essa nova forma de participação política.

Apesar das dificuldades, pesquisadores são unânimes ao afirmar que o caminho é longo, mas irreversível. A web e suas ferramentas têm potencial para assumir o papel outrora desempenhado pela praça pública de Atenas – onde as decisões eram tomadas sem intermediários, inaugurando o processo democrático – e dar uma nova cara ao sistema.

– Estamos em uma posição única para iniciar essa transformação. Pela primeira vez, em quase todo o continente latino-americano, a democracia não é apenas um intervalo entre ditaduras, e já temos a primeira geração formada nesse novo contexto – avalia Pedro Abramovay, mestre em Direito e diretor da Open Society Foundations para a América Latina.

Mas a mudança não é um processo simples e traz uma série de dúvidas, a começar pelo risco de elitização, já que o acesso à internet ainda é restrito. Isso sem falar nas incertezas quanto ao uso dela. Os abaixo-assinados virtuais, por exemplo, sequer têm validade jurídica, porque as assinaturas das petições carecem de certificação.

– Não há dúvidas de que a evolução é positiva, mas é preciso que seja cercada de cuidados. Do contrário, grupos de interesses podem acabar falando em nome da sociedade, o que nem sempre é bom. Além disso, sempre há o perigo de uma volta do coronelismo em versão online – pondera o professor de Direito da Informática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cesar Santolim.

O fato é que esse novo modelo pressupõe uma responsabilização maior do cidadão nos processos decisórios. Em países como Suíça, Islândia e Estônia, os avanços nessa direção são fruto de uma longa trajetória histórica. Não foi da noite para o dia que os islandeses decidiram elaborar uma Constituição via redes sociais e que suíços e estônios passaram a adotar o voto à distância.

No caso da Suíça, o país acumula na bagagem a realização de mais de 500 consultas populares. Aqui, da década de 1960 em diante, foram apenas três em caráter nacional. A última proposta de plebiscito, sugerida pela presidente Dilma Rousseff para realizar a reforma política, gerou controvérsia e não foi adiante.

Especialista aponta limitações culturais

A questão é saber se o Brasil tem condições técnicas para dar o salto definitivo rumo às novas possibilidades propiciadas pelo mundo dos bits. A engenheira de telecomunicações Paloma Maria Santos, editora da Revista Democracia Digital e Governo Eletrônico, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), acredita que sim.

– As limitações são muito mais educacionais, organizacionais e culturais do que efetivamente tecnológicas. O direito de participação cidadã já está na nossa Constituição. O que precisamos é criar mecanismos para isso – afirma Paloma.

Ainda que embrionárias, as iniciativas já existem e, aos poucos, começam a ganhar visibilidade (veja o infográfico acima). Embora a eficácia da maioria delas ainda seja discutível do ponto de vista prático, todas têm pelo menos um mérito: abrir caminho.


"A internet pode ser útil, mas não vai resolver os problemas"

ENTREVISTA : ROLF RAUSCHENBACH Cientista político suíço e pesquisador ligado à USP Integrante do Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), o suíço Rolf Rauschenbach dedica-se ao estudo da democracia direta no Brasil, onde faz seu pós-doutorado. Ele vê com bons olhos o avanço das ferramentas digitais, mas faz uma ressalva: a internet não deve ser vista como panaceia. Na Suíça, o voto virtual já existe. Por enquanto, o sistema é possível em 13 dos 26 Cantões (Estados). Em cada um deles, os eleitores estão aptos a usar a ferramenta ou o sistema tradicional.

ZH – Ferramentas virtuais podem ampliar o exercício da democracia direta?

Rauschenbach – A internet pode ser útil, mas não resolverá todos os problemas e depende muito de como for usada. No Brasil, as novas possibilidades tendem a ajudar, mas existem limitações. Muitas propostas populares são apresentadas, inclusive pela internet, mas infelizmente não têm grande efetividade.

ZH – Como isso funciona na Suíça?

Rauschenbach – Desde 1891, os suíços conhecem a ferramenta da iniciativa popular para emendas constitucionais. A população não só apresenta as ideias, como vota, inclusive pela internet. Ou seja, tem poder de aprovar ou de reprovar as propostas, e o Congresso não pode interferir.

ZH – Isso daria certo no Brasil?

Rauschenbach – Não acho que os suíços sejam mais inteligentes ou algo assim. A questão é que esse tipo de sistema exige responsabilidade. Enquanto esse sentimento não estiver introjetado na população, tenho um pouco de medo dos abusos. A mudança teria de ser gradual, começando pelos municípios e pelos Estados.

ZH – Pode haver risco de elitização?

Rauschenbach – Toda ferramenta traz riscos e benefícios. Como nem todas as pessoas têm acesso ao mundo virtual, a democracia digital pode ter efeitos de elitização. Ao mesmo tempo, ela permite a participação das massas por mais um canal e, nesse sentido, traz grandes benefícios. O balanço é positivo para a democracia. Mas o digital não pode substituir as outras instituições. Não pode sanar problemas fundamentais das instituições políticas ou da situação socioeconômica.

ZH – Esse debate coloca em risco o conceito tradicional de representatividade?

Rauschenbach – Vários autores temem que o parlamento perderá a sua função. Mas, na prática, isso não é verdade. No caso brasileiro, as propostas de iniciativa popular seguem dependendo das instituições representativas para ter validade. No fundo, o Congresso não está perdendo poder nenhum. No caso suíço, a alta frequência de decisões populares fornece orientações mais claras sobre as preferências dos cidadãos e permite, indiretamente, uma representatividade melhor.

Fonte: Zero Hora (RS)

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