Por Amir Labaki – Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Nascidos ambos em Manaus (AM), uma geração separou o documentarista Aurélio Michiles e Cosme Alves Netto (1937-1996), ex-diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro. Ambos saíram do Amazonas em busca de formações humanísticas em universidades ao Sul e por aqui se estabeleceram picados pela mesma febre: a cinefilia. O cruzamento de seus destinos é agora celebrado pelo documentário dedicado por Michiles a Alves Netto, "Tudo por Amor ao Cinema", que entra em cartaz na quinta-feira, quase um ano e meio depois de abrir o É Tudo Verdade no Rio de Janeiro.
Curiosamente não foi em Manaus que eles se conheceram, mas uma produção amazônica catalisou o encontro. Já havia mais de uma década e meia que Alves Netto estava à frente da Cinemateca do MAM quando, em 1981, recebeu os ecos da estreia de Michiles como realizador, com "Via Láctea, Dialética do Terceiro Mundo para o Terceiro Milênio". Uma pré-estreia carioca daquele inquieto videodocumentário, rodado na capital amazonense sob a inspiração da trágica morte precoce de Glauber Rocha (1939-1981), selou a nova amizade.
Papo vai, papo vem, Alves Netto inspirou Michiles a realizar, na década seguinte, um filme sobre o grande pioneiro do documentarismo amazonense e brasileiro, Silvino Santos (1886-1970). Em 1969, recém-saído de sua segunda prisão pela ditadura militar, Alves Netto já havia organizado, ao lado do escritor também amazonense Márcio Souza, uma homenagem ao então esquecido Santos, durante o primeiro festival de cinema de Manaus.
Português de nascimento, Silvino Santos evoluiu de fotógrafo diletante a figura central do documentário mudo nacional. Márcio Souza classificou sua obra como "a expressão artística mais apaixonante do ciclo da borracha".
Seu principal filme, o longa-metragem "No Paiz das Amazonas" (1921), bem definido por Souza como "uma exposição sistemática, minuciosa e precisa de todos os meios de produção do Estado", acaba de ser lançado em DVD (Versátil). O engenho e a tenacidade aplicados por Santos para sua realização foram reconstituídos em 1997 por Michiles no documentário "O Cineasta da Selva".
É o filme em que se cruzam as duas vertentes principais da produção não ficcional de Aurélio Michiles. De um lado, filmes sobre a história da Amazônia ("A Árvore da Fortuna", 1992) e a violência contra os índios ("O Brasil Grande e os Índios Gigantes", 1995). De outro, retratos de artistas utópicos ("Que Viva Glauber", 1991; "Lina Bo Bardi"; 1993).
De certa forma, "Tudo por Amor ao Cinema" é também resultado desse entroncamento. Estendendo um pouco uma declaração de Carlos Diegues no filme, Cosme Alves Netto fez cinema, mas de outro jeito, por meio de sua atividade como programador de filmes e em favor da preservação do patrimônio fílmico brasileiro e internacional.
Ele foi essencial para transformar a Cinemateca do MAM, que dirigiu entre 1965 e 1981, no epicentro da cultura cinematográfica carioca nos tempos mais difíceis do regime militar. Sob sua batuta, a instituição expandiu o escopo de suas atividades, essencialmente de preservação, exibição e difusão, alcançando mesmo o apoio à produção, como em filmes de Vladimir Carvalho e Júlio Bressane. Foi lá, vale lembrar, que disfarçadamente se mantiveram os negativos das primeiras filmagens de "Cabra Marcado para Morrer" até que Eduardo Coutinho (1933-2014) decidisse retomar o projeto no começo dos anos 80.
Combinando sua dupla militância, cinematográfica e política, Alves Netto também estabeleceu laços estreitos com o movimento de integração do "nuevo cine latinoamericano", lançado em Havana sobretudo a partir da fundação, em 1979, de seu célebre festival de cinema. Quando lá estive pela primeira vez, em 1993, testemunhei a desenvoltura com que Alves Netto, de "guayabera" e inseparável charuto na mão, circulava como um embaixador informal brasileiro.
Em sintonia com seu título, "Tudo por Amor ao Cinema" cimenta os depoimentos e materiais de arquivo com bem sacadas inserções de obras ficcionais, de "Limite" (1930) a "Uma Mulher para Dois" (1962). Nada mais adequado para retratar um cinéfilo que comemorava cada virada de ano com uma sessão privada de "Cantando na Chuva" (1954). Cosme Alves Netto e Gene Kelly morreram no mesmo 2 de fevereiro de 1996. E há quem acredite em coincidências.
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Amir Labaki é diretor-fundador do É Tudo Verdade Festival Internacional de Documentários.
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