terça-feira, 11 de setembro de 2018

*Alberto Aggio: Das frentes e alianças políticas

- O Estado de S.Paulo

O coração da antipolítica parece ser a única coisa que pulsa e perigosamente se move

Na geografia política que localiza os campos em contenda, bem como suas respectivas orientações, para além do problema das identidades partidárias, existe a questão das alianças políticas, sejam eleitorais e/ou de governo. Trata-se de um tema transversal. Contudo não seria erro apontar que é no campo da esquerda que esse tema ganhou dimensão prática e invadiu o universo da política.

Em desenho convencional, a oposição entre esquerda e direita, com pouca relevância ao centro, embora sofra um desgaste largamente reconhecido, continua a ser referência em nossa forma de pensar o problema das alianças políticas. O mesmo ocorre com os partidos. Como se diz, os partidos são parte, mas neles sempre há a marca do todo. Assim, para além de programa, máquina e militância é preciso indagar sobre a dimensão da cultura política que cimenta partidos e frentes políticas, sendo estas coligações eleitorais ou coalizões governamentais.

Há culturas políticas que desempenharam um papel significativo na construção da modernidade. O liberalismo político foi essencial na construção dos Estados após as lutas de independência na América. O republicanismo foi fator de coesão importante em países que construíram suas democracias no correr dos séculos 19 e 20, como os EUA ou a França. E é inegável que a cultura política da democracia tenha sido fator de fortalecimento dos direitos, do pluralismo e da convivência de diferentes ideologias a partir do segundo pós-guerra.

Nada disso foi conquistado facilmente e sem tensões, afetando diretamente atores políticos, que mudaram suas posturas ao perceberem que só teriam êxito caso dessem passos ajustados ao tempo histórico. Foi assim quando os comunistas abandonaram parte do seu sectarismo e propuseram a estratégia das frentes populares, uma aliança pluriclassista e democrática, ultrapassando o período da frente única. Mesmo que defensivas diante do nazi-fascismo, as frentes populares jogaram os comunistas para dentro dos sistemas políticos e passaram a exigir deles não só o heroísmo revolucionário, mas engenho e arte na política.

Ultrapassada a “fase heroica”, as frentes políticas continuariam como referencial de uma política de esquerda encetada na democracia. Em alguns casos, juntando os “mais próximos” ideologicamente e, em outros, atores de diferentes perfis em alianças de tipo muito variado. Nunca foi fácil antever o destino das frentes, seja qual for o cenário histórico. Algumas morreram rapidamente, outras se tornaram longevas e há casos daquelas que até ressuscitaram.

No Uruguai, por exemplo, a Frente Ampla foi retomada depois da ditadura, prefigurando-se como um partido, com todas as suas especificidades. Na superação da ditadura Pinochet, no final da década de 1980, a Concertación por la Democracia conseguiu reunir toda a oposição, menos os comunistas, e tomou para si a perspectiva da restauração democrática, visando a atualizar o Chile ao mundo novo da globalização. Foi bem-sucedida por pelo menos duas décadas. Em Portugal, a autodenominada “Geringonça” não é uma aliança eleitoral das esquerdas, mas uma aliança governamental, e assim deve seguir.

Na Alemanha, a chamada “Grande Coalizão” de democratas cristãos e social-democratas é um acordo de governo entre dois históricos adversários, que parece dar frutos tão positivos quanto surpreendentes. Na Itália, os comunistas (PCI) e a Democracia Cristã (DC) foram adversários permanentes depois da vitória da DC nas eleições de 1948. Contudo os governos da DC receberam tanto a oposição quanto o apoio, em circunstâncias específicas, do PCI. Por três décadas se formou uma espécie de aliança fática que impulsionou a reconstrução e modernização do país no pós-guerra.

No Brasil o problema dos partidos e das alianças assume dimensão superlativa, a começar pelo excessivo número de partidos, por sua reconhecida falta de enraizamento e representatividade, além do empastelamento promovido pela hipertrofia do nosso presidencialismo, bem como da centralização de recursos em nível federal.

Se em relação aos partidos a dificuldade de definição identitária é um traço comum, o problema se repete nas alianças de partidos com vista às eleições majoritárias. A começar pela inércia que se estabeleceu desde o regime militar – que não eliminou completamente nem os partidos nem as eleições – ao sancionar que os próprios partidos poderiam ser entendidos como alianças. De fato, o partido dos governos militares chamava-se Aliança Renovadora Nacional (Arena) e, por sua vez, o velho MDB se autoassumiu como uma frente ou mesmo um “partido-ônibus”, na formulação de um então famoso sociólogo.

Nas eleições presidenciais que se avizinham temos apenas uma frente política que faz jus ao nome. É ampla e de escopo exclusivamente eleitoral: visa a ganhar as eleições, pacificar o País, conquistar governabilidade e retomar o andamento da economia. É uma frente ao centro do espectro político. Esquerda e direita não alcançaram acordos suficientes para compor uma frente em cada um desses campos, embora tivessem trabalhado para isso. No cenário de terra arrasada deixado pelo petismo, a centralidade no combate à corrupção não conseguiu afirmar-se como um vetor vocacionado à construção de uma frente política com esse perfil, reservando a algumas candidaturas vinculadas a ele apenas um papel testemunhal.

Em vão se pede à frente de centro uma identidade político-ideológica, que nenhum partido no Brasil pode dar. Não é fortuito, então, que nossa miséria intelectual, que confunde esperteza política com malandragem, não a veja com bons olhos. E com ferina ironia a critique, embora se abra em sorrisos suspeitos a patologias conhecidas que quase destruíram o País em passado recente.
Enquanto isso, o coração da antipolítica parece ser a única coisa que pulsa e perigosamente se move.
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*Historiador, é professor titular da Unesp

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