Apagão gerencial – Editorial | Folha de S. Paulo
Falha no Enem se soma a demais erros do governo que afetam milhares de pessoas
Parece não ter fim a desastrosa saga do Enem sob o governo Jair Bolsonaro. A pressa em retificar os erros nas notas de milhares de alunos que prestaram a prova fez com que o Inep, órgão do MEC a cargo do exame, deixasse de cumprir uma das etapas do processo de correção.
Ainda que o desempenho dos estudantes tenha, de fato, sido reavaliado após a falha vir à tona, não se recalculou, a partir dos novos índices de acerto, os parâmetros que balizam os pesos das diferentes questões do exame, conforme revelou reportagem desta Folha.
Tal aspecto afigura-se crucial, pois o Enem adota uma metodologia na qual o nível de dificuldade das perguntas é definido pelo desempenho dos alunos. O resultado final depende tanto do número de acertos como de quais questões foram assinaladas corretamente.
Promover essa recalibragem da prova, avaliam técnicos do MEC ouvidos pela reportagem, poderia produzir alterações nas notas capazes de modificar a lista de aprovados nos cursos mais concorridos.
O procedimento, contudo, tornaria mais longo o tempo de reanálise dos resultados, que obrigaria o governo a atrasar o cronograma do Sisu, o sistema que seleciona alunos para as universidades federais pela nota do exame.
Ou seja, para transmitir uma imagem de controle da situação e evitar um vexame ainda maior, o MEC produziu potencialmente novas injustiças nos resultados do Enem.
Por mais que haja divergências a respeito dos impactos da decisão do Inep, a falta de transparência do ministério já produziu uma espessa nuvem de desconfiança sobre o principal instrumento de acesso ao ensino superior público no país.
Não há, portanto, como não concordar com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, quando ele chama de desastrosa a gestão de Abraham Weintraub à frente do MEC. A inépcia governamental, contudo, não traz somente prejuízo aos estudantes que buscam uma vaga nas universidades.
Ela também aumenta a probabilidade de que pessoas morram ou percam suas casas em tragédias climáticas, como se viu nas copiosas chuvas que se abateram sobre Minas Gerais e Espírito Santo, devido à não utilização das verbas previstas para desastres naturais.
Inferniza a vida de mais de 1 milhão de brasileiros que aguardam uma resposta do INSS para seus pedidos de aposentadorias e auxílios-doença. Subtrai a única renda de uma multidão de miseráveis que se viram excluídos do Bolsa Família ao longo do ano passado.
A incompetência, em suma, vai grassando na máquina pública e se convertendo, ao lado do autoritarismo e do desvario ideológico, em mais uma forte marca da administração federal.
Chance de mudar – Editorial | Folha de S. Paulo
Congresso deveria aproveitar a reforma tributária para atacar a desigualdade
Por qualquer ângulo que se olhe, não resta dúvida de que o Brasil é um país extremamente desigual, e assim tem permanecido há muitas décadas, seja por razões históricas ou mais contemporâneas.
Ao contrário dos grandes avanços que o país obteve na redução da pobreza extrema —que atingia cerca de 30% da população nos anos 1990 e hoje acomete aproximadamente 10%—, a desigualdade tem-se revelado difícil de erradicar.
A recente crise econômica e a lenta recuperação em curso pioraram o quadro. Desde 2014, enquanto a renda per capita do trabalho da metade mais pobre no país caiu cerca de 17%, a dos 10% mais ricos subiu 2,5% acima da inflação. Já o 1% no topo foi quem mais ganhou: 10%, segundo dados da FGV Social.
Quando se considera somente a renda apropriada pelo decil mais rico em relação ao restante da população, o Brasil empata, segundo algumas comparações internacionais, com países como a África do Sul e a Índia.
Embora a desigualdade tenha se transformado em um fenômeno global, algumas medidas estruturais são recomendadas por especialistas para tentar enfrentá-la, sobretudo onde as diferenças de renda são mais pronunciadas.
Entre as principais ações constam alterações na tributação a fim de tornar mais leve a carga de impostos sobre os mais pobres e onerar aqueles que ganham mais.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada sobre as propostas de reforma tributária no Congresso defende que a unificação de impostos sobre o consumo, com alíquotas iguais para produtos e serviços, reduziria a desigualdade no Brasil. Isso ocorreria porque a tributação sobre o consumo é regressiva —quanto mais pobre, maior a carga tributária incidente.
Os tributos que podem ser unificados (os federais IPI, PIS e Cofins, o estadual ICMS e o municipal ISS) representam 27% da renda dos 10% mais pobres. Para o decil mais rico, o peso atual é de 10% da renda. A mudança traria impacto positivo para 90% da população; e negativo para os 10% mais ricos.
Um combate mais significativo à desigualdade dependerá, no entanto, da maneira como será implementada outra iniciativa da reforma tributária, a criação de um sistema de devolução de parte dos impostos para os mais pobres.
O tema ainda será objeto de muita discussão, mas o Congresso não deveria deixar passar a chance de atacar estruturalmente a questão.
A persistência de taxas elevadas de juros – Editorial | O Globo
Não é aceitável que o crédito no cartão e no cheque especial custe 300%, enquanto a Selic está em 4,5%
A economia brasileira nas últimas quatro décadas, desde o início dos anos 1980, ainda na ditadura militar, enfrentou tantas crises e passou por tantas terapias, muitas heterodoxas, que contraiu diversos efeitos colaterais e deformações. Nem sempre fáceis de debelar e consertar.
Caso dos juros elevados. No último estágio de aplicação do exitoso Plano Real, 1998/1999, os juros básicos da economia tiveram de ser jogados nas alturas, para conter uma fuga de divisas e impedir que grande desvalorização cambial injetasse muita inflação na veia do sistema de preços. O país enfim conseguiu deixar de usar o dólar como âncora anti-inflacionária quase fixa. A moeda passou a flutuar, precisou-se elevar os juros, e a vida seguiu em frente. Mas, mesmo com a queda da taxa básica, a Selic, criada naquele momento, há juros que não caem. Ou não caem na mesma proporção que a Selic.
Certas discrepâncias mostram isso de forma muito clara: a Selic está em 4,5%, nível em que jamais se encontrou, e pode ser cortada ainda mais na reunião do Conselho de Política Monetária (Copom), do Banco Central, em fevereiro, porém as taxas cobradas para quem fica endividado no cartão de crédito e no cheque especial chegam a 300%.
Há explicações clássicas por parte das instituições financeiras. Devem ser levadas em conta, registre-se. Algumas delas: a inadimplência e o peso dos impostos. Tem sua lógica, mas não é justificativa razoável para tamanha discrepância.
A situação é tão esdrúxula que o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, economista liberal, assim como o ministro da Economia, Paulo Guedes, determinou que a partir de 6 de janeiro os bancos passassem a limitar a taxa cobrada no cheque especial a 8% ao mês — ainda uma exorbitância. Em dezembro, os juros foram de 12,3%. Com o teto do BC, o empréstimo do cheque especial custará 150% ao ano, ainda inadmissíveis. Tanto que Roberto Campos Neto, com evidente conhecimento de Paulo Guedes, cometeu a heresia de tabelar a taxa.
A queda da inflação e da taxa básica do BC aumenta o peso do argumento de que a falta de concorrência no mercado financeiro é que mantém os juros em patamares pornográficos.
Por uma série de razões, uma delas, talvez a principal, que o ciclo de fusões e incorporações no setor bancário, com o fim da superinflação pelo Plano Real, permitiu que um número pequeno de instituições financeiras controlasse parcela exagerada do mercado. Cinco conglomerados — Banco do Brasil, Caixa, Itaú-Unibanco, Bradesco e Santander — respondem por quase 85% dos créditos.
A torcida é para que a chegada das fintechs, bancos digitais, faça os grandes bancos oferecerem condições melhores aos clientes — nos financiamentos e nas aplicações. Para não perdê-los.
Eleição peruana mostra debilidade dos partidos depois da Lava-Jato – Editorial | O Globo
Nenhuma organização política alcançou 11% dos votos válidos, e nível de fragmentação aumentou
O Legislativo do Peru deverá ser composto por partidos sem maioria no plenário. Foi o que decidiu o eleitorado nesta semana, ao recompor o Congresso dissolvido em setembro, para cumprir o restante do mandato parlamentar até as eleições gerais de 2021.
Nenhuma organização política alcançou 11% dos votos válidos. A debilidade dos partidos no Peru elevou o nível de fragmentação partidária (para sete bancadas), mas, ainda assim, bem inferior ao da vizinhança — o Brasil possui três dezenas de partidos na Câmara e no Senado.
A dispersão não é, necessariamente, ruim. No caso peruano a mensagem dos eleitores é: para avançar na eleição do próximo ano, as forças políticas precisam negociar no parlamento e com o governo Martín Vizcarra, no poder desde março de 2018 para cumprir o restante do mandato do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski, que renunciou.
A principal tarefa do novo Congresso será a aprovação de reformas no sistema político e judiciário. Ambos enfrentam uma crise de confiança na esteira da corrupção desvelada pela versão local da Operação Lava-Jato. Odebrecht e outras empreiteiras brasileiras ocupam papel central no sistema de troca de favores no orçamento nacional por subornos pagos a agentes públicos, com a cumplicidade de grupos privados peruanos, parceiros na construção civil e no setor financeiro.
O Peru procura respostas sobre o desvio de US$ 3,5 bilhões na última década e meia. Suspeitas de corrupção prevalecem sobre os quatro últimos presidentes: Alejandro Toledo (2001-2006), Alan García (1985-1990 e 2006-2011), Ollanta Humala (2011-2016) e Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018). García se suicidou, Kuczynski renunciou, e a líder da oposição, Keiko Fujimori, voltou à cadeia na quarta-feira. Descobriram-se indícios de subornos no Judiciário. O caso, conhecido como “Lava-Juiz”, motivou protestos nas maiores cidades.
Na polarização exacerbada pelas revelações da Lava-Jato, os peruanos premiaram com maior votação a força de centro mais tradicional, Acción Popular (10,1%). Puniram outros, como Fuerza Popular (7,2%), dos herdeiros do ditador Alberto Fujimori, e, ainda seu aliado, o Apra, que ficou sem bancada pela primeira vez em seis décadas. No vácuo cresceram propostas obscurantistas como as da Frepap (8,8%), movimento messiânico israelita-peruano, e do Unión por el Perú, cuja bandeira é a pena de morte. O reconhecimento a ambos, talvez, seja uma forma de castigo político autoinfligido pelo eleitorado peruano.
Cena melhor para o Brasil e região – Editorial | O Estado de S. Paulo
Brasil e América Latina devem ganhar impulso, escapar da estagnação e crescer mais em 2020 e 2021, segundo as novas projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas continuarão correndo atrás de outros emergentes e de vários países do mundo avançado. Com menor incerteza depois de aprovada a reforma da Previdência, juros baixos e inflação moderada, a economia brasileira deve avançar 2,2% neste ano e 2,3% no próximo. O crescimento em 2019 foi estimado em 1,2%.
Excluída a Venezuela, a expansão econômica de América Latina e Caribe deve chegar a 1,6% e 2,3% neste ano e no seguinte, bem abaixo do desempenho global. As taxas de crescimento calculadas para o produto mundial são de 3,3% e 3,4%, sustentadas principalmente pelos emergentes da Ásia (5,8% e 5,9%).
Apesar de avanços importantes nos últimos 20 anos, a maior parte dos países latino-americanos ainda é muito dependente da exportação de produtos básicos. Isso continua sendo um de seus pontos fracos. A retomada econômica projetada para 2020 e 2021 é baseada, em boa parte, na expectativa de maior crescimento global e de recuperação dos preços das commodities. Os cálculos foram feitos antes de conhecido o surto de coronavírus, iniciado na China.
“Precisamos monitorar riscos do coronavírus para a economia internacional”, disse o diretor de Hemisfério Ocidental do FMI, Alejandro Werner, ao apresentar o relatório. É cedo, acrescentou, para estimar efeitos do surto para a América Latina. Mas completou com um toque otimista: em casos semelhantes, na China, o impacto econômico foi superado em alguns trimestres.
Mas o quadro inclui outros pressupostos otimistas. Um deles é a redução das tensões comerciais, depois da fase 1 do acerto entre Estados Unidos e China. Além disso, agora se admite como provável um Brexit (divórcio entre Reino Unido e União Europeia) mais ordenado e menos danoso às economias diretamente envolvidas.
Para o Brasil, o panorama, embora bem melhor que o das projeções de outubro, ainda inclui vários detalhes complicados. A confiança dos participantes do jogo continuará dependente da pauta de ajustes e reformas. Será essencial, segundo o relatório, garantir uma dívida pública sustentável e aumentar o potencial de crescimento. Se houvesse espaço para mais detalhes, o relatório cuidaria da necessária elevação do investimento, da melhora da infraestrutura, da formação de mão de obra e da abertura do mercado, entre outros pontos bem conhecidos.
O esforço de ajuste, continuação do trabalho desenvolvido no governo anterior, é inegável. A redução dos juros e a melhora das condições de financiamento têm sido uma contribuição importante. Mas pouco se tem feito, fora disso, para dinamizar a produção e facilitar a redução do desemprego. Em alguns casos – a educação talvez seja o exemplo mais evidente e mais inquietante – pode-se falar de retrocesso. Mas o relatório passa longe desse tipo de consideração.
A perspectiva de mais um ano de recessão na Argentina é péssimo sinal para o Brasil. O mercado argentino é muito importante para as exportações brasileiras de manufaturados, especialmente de veículos. Pelas novas projeções, o Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina encolherá 1,3% em 2020, no terceiro ano consecutivo de retração. A tabela inclui recuos de 2,5% em 2018 e de 3,1% em 2019. Uma reação de 1,4% está calculada para 2021.
Na quarta-feira passada, enquanto se divulgavam as novas projeções, o ministro argentino da Economia, Martin Guzmán, se reunia em Washington com funcionários do FMI para discutir a próxima etapa da ajuda financeira a seu país.
Se as hipóteses mais otimistas se confirmarem, o governo brasileiro ainda terá de enfrentar complicadas tarefas para consolidar as finanças públicas e movimentar a economia. As reformas tributária e administrativa estão na pauta, mas faltam informações claras sobre os dois temas. Faltaram, obviamente, estudos e planejamento sobre esses assuntos.
Página virada – Editorial | O Estado de S. Paulo
Hoje, à meia-noite no horário de Bruxelas (20 horas de Brasília), o Reino Unido se separará definitivamente da União Europeia (UE). O último passo formal para a concretização do Brexit, o epílogo de uma história de 47 anos, foi dado pelo Parlamento Europeu na quarta-feira passada. Por 621 votos favoráveis, 49 contrários e 13 abstenções, os eurodeputados aprovaram o acordo de saída, concluindo um espinhoso processo que se arrastava há mais de 3 anos e levou à queda de dois primeiros-ministros britânicos, David Cameron, responsável pela convocação do plebiscito que decidiu pela separação, e sua sucessora, Theresa May.
Por ora, o desenlace é mais formal do que prático, pois entre 1.º de fevereiro e 31 de dezembro vigorará um período de transição em que o Reino Unido obedecerá às normas da UE enquanto são negociadas as regras definitivas da nova relação. No entanto, isto em nada diminui a força simbólica da sessão do Parlamento Europeu. Concluídos os acalorados debates em torno dos termos do acordo de saída, enfim aprovado, espera-se que tenha início um novo tempo de tranquilidade e resignação para todos os cidadãos envolvidos, tanto na ilha como no continente.
De certa forma, esses sentimentos já se traduzem na sobriedade adotada pela maioria das autoridades. Corretamente, o premiê do Reino Unido, Boris Johnson, desencorajou quaisquer celebrações mais efusivas pela separação, o que, em sua visão, poderia ser interpretado como uma provocação gratuita aos que votaram pela permanência do país na UE. Em Bruxelas, o tom será igualmente sóbrio. No horário marcado para a separação, a Union Jack, bandeira do Reino Unido, será arriada e guardada na Casa da História Europeia. O momento marcará oficialmente a transição do Reino Unido de país-membro da UE para um país sem tais vínculos. Amanhã, a UE inaugurará sua embaixada em Londres, a ser chefiada pelo diplomata português João Vale de Almeida.
A aprovação do acordo de saída marcou o fim de um ciclo de incertezas em que se cogitou até da realização de um novo plebiscito para que a população do Reino Unido decidisse novamente se o país deveria mesmo deixar a UE. Esta página foi virada. A fase que começa agora não é menos indefinida. A partir de hoje à noite a UE terá 66 milhões de habitantes a menos. Sabe-se também que pelos próximos 11 meses o Reino Unido permanecerá sujeito à legislação e ao Tribunal de Justiça da UE. Está claro que cidadãos britânicos que viviam em países-membros da UE, e vice-versa, até a data da aprovação do acordo de saída manterão seus direitos de residência e trabalho inalterados. Mas há uma miríade de questões que ainda precisam ser definidas ao longo deste ano para que a relação futura entre o Reino Unido e a UE fique clara para todos. Tudo é novidade. Afinal, esta é a primeira vez que um país denuncia o Tratado de Roma.
Ainda precisa ser definido como será o controle de passaportes e alfandegário no Eurotúnel, que liga Inglaterra e França pelo Canal da Mancha. O Reino Unido precisará negociar uma série de acordos comerciais, especialmente com os países da UE, que fornecem de carros a remédios. Também precisarão ser repactuadas as regras de defesa militar e, não menos importante, cibernética. Vale lembrar que o Reino Unido não impediu a chinesa Huawei de participar dos projetos de rede 5G no país. Isso pode afetar a relação dos britânicos com os Estados Unidos. Por fim, como ficará o orçamento da própria UE? O Reino Unido tem sido o segundo maior contribuinte da UE, atrás apenas da Alemanha. Os pagamentos continuarão sendo feitos pelos britânicos no curso do período de transição. E depois?
Nada há de trivial no Brexit. Uma vez consumada a separação, o melhor que se pode esperar é que as questões que permanecem em aberto sejam bem pactuadas, trazendo previsibilidade e segurança para os cidadãos e todos os países envolvidos.
Superávits comerciais tendem a diminuir – Editorial | Valor Econômico
A cadente produtividade doméstica é o principal obstáculo, mas a ele se agregam outros fatores que pioram a competitividade na arena global
O principal fator responsável pelo aumento do déficit de transações correntes em 2019 - de 2,76% do PIB ou US$ 50,8 bilhões - foi o declínio do saldo comercial brasileiro, que recuou US$ 11,38 bilhões. Se depender dos próximos resultados da balança comercial, o déficit em conta corrente continuará piorando, embora isso não configure risco imediato para o país. Em 2014, o rombo externo chegou a romper o limiar de alerta ao atingir 4,17% e nada de grave ocorreu porque o país dispõe de enorme volume de reservas.
Mais preocupante que o avanço dos resultados negativos nas transações com o exterior é a perda de competitividade das exportações brasileiras e, em especial, dos manufaturados. Há fatores conjunturais que ajudam a explicar isso. O comércio internacional tem se reduzido nos últimos anos, com diminuição mais visível no segundo semestre do ano passado. Antes da crise de 2008, as transações comerciais globais cresciam a um ritmo até duas vezes maior do que o do PIB global. Nos últimos quatro anos, mal alcançou a evolução do PIB mundial, que também mostrou ritmo de evolução modesto.
A guerra comercial entre China e Estados Unidos, a prostração da Europa e a desaceleração da economia chinesa reduziram o dinamismo do comércio internacional. E, o que é fundamental para as exportações brasileiras, a Argentina mergulhou em outra crise profunda, após completar três anos de recessão. O resultado comercial de 2019 foi de US$ 46,65 bilhões, com queda de 7,5% das exportações, acompanhada de queda nas importações de 3,3%.
Mas fatores estruturais tem peso determinante. A perda de vitalidade da indústria deixou o saldo comercial ao sabor das cotações das commodities, bem mais voláteis historicamente que os preços dos manufaturados. Essa volatilidade foi amortecida pelo enorme apetite chinês, decorrente da elevação do nível de vida da população, que prossegue. Em 2000, do total vendido ao exterior, 23% eram produtos básicos e 59%, manufaturados. Em 2019, foram 53% de básicos e 35% de industrializados.
Não se trata de aumento de todos os setores da pauta em uma expansão comercial crescente, mas de perda de participação dos manufaturados. Era comum até o fim dos anos 1990 que retrações do mercado doméstico tivessem como contrapartida um aumento das exportações industriais, em busca de compensações pela redução do consumo interno. Essa reação era puxada pela indústria. Isso não ocorre mais ou ocorre com muito menos intensidade. Durante a maior recessão da história recente, em que as importações desabaram, as exportações industriais caíram - 2014 (-14%) e 2015 (-9%). Em 2019, diminuíram 10%.
Praticamente a metade do encolhimento do saldo comercial de 2019 (US$ 11,38 bilhões) ocorreu no Mercosul (- US$ 6 bilhões) e, no bloco, com a Argentina (- US$ 5 bilhões), uma das principais consumidoras de manufaturados brasileiros. Incluídos os países da América do Sul, a redução das exportações chegou a US$ 7,5 bilhões, com peso maior em bens industrializados.
As relações de troca tornaram-se desfavoráveis ao Brasil. Em 2019, no total, o Brasil teve volume de exportação maior (2,5%), com queda de valor (-4,5%). Mas, para os manufaturados, refletindo também a perda de competitividade, a queda do volume (-6%) foi superior à dos preços (-4,8%).
O país teve em 2019 o quarto ano consecutivo de saldos comerciais cadentes. Eles foram acompanhados pela erosão das vendas de bens industrializados no ranking mundial e consequente perda de participação no comércio global. Segundo o Iedi, em 2008, ano da crise financeira, o país ocupava a 22ª posição entre os exportadores do mundo inteiro, descendo para a 27ª em 2017, quase uma década depois. No caso dos manufaturados, está no 32º lugar em 2018, com 0,62% do total.
A tendência geral, de deterioração das perspectivas da indústria, não é nova, mas é confirmada à medida que as estatísticas são atualizadas. A cadente produtividade doméstica é o principal obstáculo, mas a ele se agregam outros fatores que pioram a competitividade na arena global, onde a China ocupou enorme espaço, desalojando concorrentes. É preciso corte radical de custos e modernização, o que, é sabido, se consegue com redução da burocracia, de tributos, melhoria da infraestrutura e uma abertura comercial inteligente e bem dosada. As chances de que isso ocorra a curto prazo são remotas.
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