O Globo
A nova panaceia para tentar remediar o
irremediável é apelar para o sentido figurado
Acabamos de ter a prova cabal de quão
desnecessária é a importação de um especialista chinês — pleiteada pelo
presidente e pela primeira-dama — para pôr ordem no galinheiro das redes
sociais no Brasil.
A foto de um casal e sua filha — 5 anos, roupa combinando com a dos pais, laçarote na cabeça e uma bolsa avaliada em R$ 14 mil — causou indignação e uma marola (não chegou a ser uma onda) de ódio entre a galera da empatia, do acolhimento, do atravessamento, da decolonialidade, da sororidade, do não binarismo e da defesa da democracia.
“Os bolcheviques estavam certos”, pontificou
um psicólogo junguiano e mestre em psicologia social, com bandeirinhas do
Brasil, Rússia, Palestina, Cuba e Coreia do Norte no perfil. “Só
guilhotina...”, corrigiu o professor de uma universidade federal, bandeirinhas
do Brasil e da Palestina tremulando ao lado. “Tem que mtr mesmo! PQP!!!!!!”,
ecoou, noutra postagem a “esquerdista e psicanalista em (constante) formação” —
com um coraçãozinho vermelho. “Inadmissível ainda não ter uma imagem dessa
menina no moedor de carne”, protestou a “princesinha comunista” — sem
profissão, bandeira ou coração.
Bastou as vítimas do ataque avisarem que
acionarão a Justiça, pedindo a aplicação de leis já existentes, e
guilhotinadores, pelotão de fuzilamento e trituradores de criancinha
transmutaram-se em colegas de Castro Alves, Cruz e Souza, Augusto dos Anjos, Alphonsus
de Guimaraens — cultores da mais nobre das figuras de linguagem: a metáfora.
Sim, dizer que a frase “infeliz” foi tirada
de contexto é muito anos 1980. Alegar que era ironia... hmmm, difícil colar. A
nova panaceia para tentar remediar o irremediável é apelar para o sentido
figurado.
“De minha parte, eu acho que tem mesmo que
descer a porrada em fascistas, nazistas, racistas, bolsonazis,
fundamentalistas, terraplanistas, lavajatistas, entreguistas, canalhas em
geral”, escreveu o professor, em 2019. “Porrada”, aqui, é claramente uma metáfora,
no sentido de abrir o diálogo, apresentar argumentos, acatar a pluralidade de
opiniões e implementar o livre debate de ideias. “Só meu instinto de
autopreservação me impede de listar quem eu adoraria fuzilar... de qualquer
modo não caberia em 240 caracteres” — “fuzilar” certamente como alegoria de
ouvir, procurar entender, buscar convergências. “Só guilhotina. E não é
metáfora” é, muito claramente, uma meta-metáfora, uma metáfora metafórica: é a
guilhotina como não guilhotina, praticamente um cachecol.
Como a direita não pensou nisso antes? “Tão
feia que não merece ser estuprada” era só uma metáfora. “Lamento profundamente,
mas é um número insignificante” (de crianças mortas na pandemia): metáfora.
Golpe de Estado, fechar o STF, matar o presidente? Metáforas, metáforas.
E, quando a desculpa já estiver desgastada,
pode-se evocar a hipérbole, a metonímia, a catacrese — ou, nos momentos mais
delirantes (ninguém pesquisará mesmo), dizer que foi uma anadiplose, uma
onomatopeia, uma epizêuxis.
Todos os linchadores virtuais fecharam suas
contas (sem precisar de ordem judicial). Resta pensar no que leva um professor
universitário ou um profissional de saúde mental a tanta violência (por
enquanto apenas) simbólica, a tanto sadismo verbal, a destilar tanto ódio. Deve
ser o amor, que mexe com a cabeça dessa gente e a deixa assim.
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