O Estado de S. Paulo
Entra uma legislatura, sai outra, e o nível médio do Legislativo continua deixando a desejar
Sobre o recente aumento do número de
deputados, direi apenas o que aprendi na juventude: entre as virtudes de um
homem público, vergonha e caráter são tão importantes quanto a cultura.
Em 1985-86, quando fazia parte da Comissão Presidencial Pré-Constituinte (Comissão Afonso Arinos), coube-me elaborar a proposta inicial sobre a Câmara. Propus que se mantivesse simplesmente o número de deputados federais então existente – 420 –, que poderia ser aumentado ao longo do tempo, à medida que a proporcionalidade das bancadas estaduais em relação às relativas populações fosse também ajustada. Já não sendo ingênuo, não imaginei que tal proposta fosse aprovada em Brasília. E o que ocorreu, de fato, foi um incremento par a 513 representantes na Câmara. Quinhentos e treze, vejam só!
Ora, se a intenção de Suas Excelências era
abrir mão de qualquer critério, por que não foram direto ao ponto, instituindo
logo uma Câmara com 5.130 deputados? Feito isso, deixariam claro que estavam se
lixando para a repercussão de tal aumento nas assembleias estaduais, bem como
para provável aumento no número de secretárias e assessores, na quantia de
combustível e passagens de avião a que eles têm direito, e até para a qualidade
dos carros oficiais e apartamentos funcionais. O que deixaram claro – e não é
pouco – é que pouco conservavam do senso do ridículo.
O problema, como antes assinalei, é que, além
de vergonha e caráter, mister se faz que os representantes reúnam alguma
cultura, lendo livros e, nos dias que correm, tirando proveito da infinidade de
fontes eletrônicas diariamente postas a seu dispor. Infelizmente, tudo faz crer
que nosso esforço para escolher os melhores não surtiu efeito. Entra uma
legislatura, sai outra, e o nível médio do Legislativo continua deixando a
desejar. No Congresso Constituinte de 1987-88, qualquer pessoa informada
apontaria, sem nenhuma dificuldade, de uma ponta à outra do espectro
doutrinário, pelo menos 20 nomes dignos de respeito e admiração. Hoje, quem
chegar a cinco merece palmas.
Os candidatos pouco afeitos à leitura nem
precisam ir tão longe. Um único volume, já velho de quase 250 anos, daria conta
do recado. Refiro-me a O Federalista, composto por artigos publicados pelos
jornais de Nova York entre o fim de 1787 e o início de 1788, referentes à
áspera controvérsia a respeito da ratificação de um novo projeto de
Constituição para o país. Recorde-se que o adjetivo “federalista” não sugeria
“descentralização”, como é habitual entre nós, mas justo o oposto: recomendava
a instituição de um poder central forte, acima dos Estados, que se manteriam
autônomos em suas respectivas esferas. O autor do volume – em boa hora
publicado em português pela Editora da Universidade de Brasília –, que
rapidamente teve 40 edições, tornou-se conhecido como Publius, pseudônimo
coletivo para Alexander Hamilton, John Jay e James Madison.
O Federalista número 55, redigido por James
Madison, suscita a questão do número de representantes nos seguintes termos:
“(...) Nenhum problema político é menos suscetível de uma solução precisa do
que o relativo ao número mais conveniente para uma legislatura representativa,
nem há qualquer outro tema sobre o qual a orientação dos diversos Estados seja
mais variada, se compararmos suas assembleias entre si ou considerarmos os
porcentuais que, em cada uma, determinam o número de representantes em relação
ao de constituintes.”
Desse ponto em diante, os autores prosseguem,
e eu com eles:
“Outra observação de ordem geral a registrar
é que a relação entre o número de representantes e a população não deve ser,
nos Estados onde esta for muito grande, a mesma que nos menos populosos. Se a
representação de Virgínia fosse regulada pelo padrão adotado em Rhode Island,
ela chegaria hoje a quatrocentos ou quinhentos deputados, alcançando o milhar
dentro de vinte ou trinta anos. Por outro lado, aplicando-se em Delaware o
padrão da Pensilvânia, a assembleia representativa deste Estado se reduziria a
sete ou oito membros. Nada pode ser mais ilusório do que basearmos nossos
cálculos políticos em regras aritméticas”.
Sessenta ou setenta homens podem ser mais confiadamente investidos de determinado grau de poder do que seis ou sete, mas não se conclua daí que seiscentos ou setecentos seriam proporcionalmente mais dignos de confiança. E se extrapolarmos a hipótese para seis ou sete mil, todo o raciocínio será invertido. A verdade é que, em qualquer caso, parece ser necessário um número mínimo para assegurar os benefícios de uma livre troca de ideias e a proteção contra possíveis conluios com finalidades inconfessáveis; por outro lado, é indispensável observar-se certo limite máximo, a fim de evitar a confusão e a intemperança próprias das multidões. Em todas as assembleias muito numerosas, qualquer que seja sua finalidade, as paixões nunca deixam de sobrepujar a razão. Mesmo que cada cidadão ateniense fosse um Sócrates, ainda assim as assembleias de Atenas não deixariam de ser tumultuárias”.
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