EDITORIAIS
Recordes sinistros
O Estado de S. Paulo
Desemprego, inflação e endividamento batem recordes no Brasil, tornando mais inseguro o dia a dia de famílias ainda sujeitas a uma pandemia mortífera
Desemprego, inflação e endividamento batem
recordes no Brasil, tornando mais inseguro o dia a dia de famílias ainda
sujeitas a uma pandemia mortífera, num país com vacinação atrasada e governo
concentrado em arranjos políticos e objetivos eleitorais. As projeções da
inflação ao consumidor já se aproximam de 7% em 2021, superando de longe o teto
da meta, mas nenhum sinal de trégua aparece no mercado. Novos aumentos são
prenunciados pela alta dos custos de produção, turbinados pelas cotações
internacionais de matérias-primas, pelo encarecimento da energia e pela taxa de
câmbio. Nem tudo chegará ao comprador final, mas algum repasse ocorrerá, como
tem ocorrido, e assim o dinheiro já escasso ficará ainda mais curto.
O surto inflacionário hoje enfrentado pelos brasileiros é um dos legados da grande crise sanitária de 2020. Parte dos problemas é atribuível a desarranjos no sistema produtivo. A oferta de certos insumos e componentes industriais foi prejudicada e nem todos os desajustes foram corrigidos. Pelo menos as pressões daí derivadas devem ser temporárias. Mas, apesar desse adjetivo, a duração desses efeitos ainda é desconhecida. De toda forma, o aumento de custos continua intenso e dificulta qualquer previsão otimista.
Em junho, o Índice de Preços ao Produtor
(IPP) foi 1,31% maior que no mês anterior. Em maio havia subido 0,99%. A alta
acumulada no ano chegou a 19,11%. Em 12 meses atingiu 36,1%. Esses custos,
também conhecidos como preços em porta de fábrica, são contabilizados apenas na
indústria, sem impostos e sem frete. Na indústria de transformação esses preços
aumentaram 0,76% em junho. A alta chegou a 8,76% na indústria extrativa. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE). As duas taxas acumuladas, no ano e em 12 meses, são recordes da
série iniciada em 2014.
Também os preços por atacado (IPA) medidos
pela Fundação Getulio Vargas (FGV) subiram muito, desde o segundo semestre de
2020, e em 12 meses aumentaram 47,53%, segundo o Índice Geral de Preços –
Mercado (IGP-M) de junho. Esse indicador inclui também matérias-primas minerais
e agropecuárias.
Só uma parcela dos aumentos mostrados pelo
IPP e pelo IPA chega ao varejo de bens e serviços. Ainda assim, as altas de
preços no atacado acabam atingindo o consumidor e corroendo seu orçamento, já
muito precário no caso da maior parte dos brasileiros. Segundo a prévia da
inflação oficial, os preços ao consumidor, no período de 15 de junho a 13 de
julho, foram 0,72% maiores que no intervalo mensal imediatamente anterior. Essa
foi a maior variação para esse período desde 2004 – mais um recorde sinistro.
Os dados são do IPCA-15 de julho, divulgado no dia 23.
Essa onda inflacionária ocorre numa fase
marcada por dois outros recordes negativos. O pior deles é o desemprego. No
trimestre móvel encerrado em abril os desocupados eram 14,8 milhões, 14,7% da
força de trabalho. Essa porcentagem, alcançada já no trimestre de janeiro a
março, foi a mais alta da série iniciada em 2012.
Esse quadro se completa com o nível de
endividamento familiar. Em abril, as famílias deviam ao sistema financeiro
58,5% de sua renda anual, uma taxa recorde no período a partir de janeiro de
2005. Excluídas as dívidas imobiliárias, sobrariam débitos equivalentes a 36%
da renda – também um recorde nesse tipo de sequência. Em abril de 2020, a
dívida total das famílias com os bancos estava em 49,2% de sua renda. Com a
pandemia, as dificuldades aumentaram e os brasileiros buscaram empréstimos para
sobreviver ou para pagar outros compromissos. O quadro seria muito diferente se
tivessem tomado financiamentos para melhorar de vida, como em tempos de
prosperidade. As informações são do Banco Central.
Os dois últimos recordes infernais – do IPP
e do endividamento – foram divulgados na quarta-feira. No dia anterior, o
presidente Jair Bolsonaro, distante dessa realidade, havia completado o acerto
com o senador Ciro Nogueira, convidado para chefiar a Casa Civil e tomar conta
do governo em nome do Centrão.
O desalento dos brasileiros
O Estado de S. Paulo
A consultoria Ipsos acaba de publicar a
pesquisa Broken-System Sentiment in 2021, realizada em 25 países,
que coloca a sociedade brasileira no topo do ranking mundial de desalento.
Para 69% dos mil brasileiros entrevistados pela empresa, o Brasil é um país “em
declínio”. Atrás do Brasil, os países com as piores percepções sobre si mesmos
são o Chile, a África do Sul e a Argentina, os três com 68%, e, em terceiro
lugar, a Colômbia, com 67%. Os brasileiros também têm uma das piores percepções
sobre coesão social: para 72% dos entrevistados, a sociedade está “falida”, o
que coloca o Brasil atrás apenas da Hungria (72%) e da África do Sul (74%).
Um resultado tão desolador como esse pode
levar muitos a crer que não há mais nada a ser feito a não ser cada cidadão
cuidar da própria vida e deixar os rumos do País largado à própria sorte.
Afinal, se o Brasil é um país “em declínio” e não há coesão social para mudar o
curso desta triste história, o que nos resta? Uma coisa, no entanto, não está
dissociada da outra, vale dizer, reverter estes sentimentos passa, fundamentalmente,
pela ação direta de cada cidadão. O desalento deve ser substituído pela ação
política, não necessariamente partidária. Fácil não é, mas, passado o susto, é
hora de identificar as razões do mal-estar social e, principalmente, resgatar o
valor da cidadania. Este será o passo determinante na direção do futuro melhor
que se pretende para o Brasil.
“Eu espero que esta pesquisa cumpra o papel
de dar um chacoalhão (nos brasileiros). A crítica às instituições
políticas é generalizada ao redor do mundo, mas não de forma tão aguda como no
Brasil”, disse Hélio Gastaldi, porta-voz da Ipsos, à BBC Brasil. De fato, ainda
que sejam as piores possíveis, as percepções dos brasileiros sobre o próprio
país e a sociedade não estão totalmente descoladas dos resultados apurados pela
Ipsos nos demais países pesquisados. Em média, 57% dos entrevistados veem seus
países em “declínio”, resultado muito próximo da percepção média acerca da
“falência” da sociedade (56%).
Mas tratemos do Brasil. Os brasileiros têm
alguma razão em não se sentirem senhores dos destinos do País. O custo da
cidadania – ou seja, de pensar e agir como membro de uma comunidade – parece
ser alto demais para muitos que aqui vivem, como se o retorno do Estado e da
sociedade para o esforço individual do cidadão não fosse perceptível. Há muitos
cidadãos que não se sentem representados em suas angústias e aspirações por
instituições como a imprensa, os partidos políticos, os governos e outras
esferas de representação. Nada menos do que 82% dos brasileiros ouvidos pela
Ipsos afirmaram que “a elite política e econômica não se importa com pessoas
que trabalham duro”. Para 80%, a economia é “manipulada para favorecer os mais
ricos e poderosos”.
Logo, não surpreende que dois dos mais bem
colocados pré-candidatos à Presidência nas pesquisas de intenção de voto para
2022 sejam dois populistas autoritários – Lula da Silva e Jair Bolsonaro. Cada
um à sua maneira, não passam de dois vendedores de baldadas ilusões, que, muito
antes de apresentarem planos concretos para atacar os reais problemas do País,
procuram explorar o desencanto da sociedade para auferir ganhos políticos –
quando não financeiros – para si e para um restrito círculo de aduladores.
Ademais, são líderes que promovem a cisão da sociedade, que governam para seus
nichos, o que só reforça a crise de representação traduzida em desalento pela
Ipsos.
Não haverá futuro auspicioso para o Brasil
enquanto parcelas expressivas da sociedade se deixarem capturar pela falácia do
discurso populista, irresponsável, desagregador, seja qual for o seu corte
ideológico. A solução para reverter os problemas de fundo do País – e,
consequentemente, a péssima imagem que os brasileiros têm do Brasil – passa por
um caminho diametralmente oposto à via tortuosa do populismo, o resgate da
cidadania e das instituições republicanas.
Os poderes da CPI e os direitos individuais
O Estado de S. Paulo
Ministra Rosa Weber manteve a quebra de sigilo decretada pela CPI da Pandemia
Em junho, a CPI da Pandemia quebrou os
sigilos telefônicos e telemáticos do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e de
três assessores da Presidência da República, Mateus Matos Diniz, José Matheus
Salles Gomes e Tercio Arnaud Tomaz, integrantes do chamado “gabinete do ódio”.
A Advocacia-Geral da União (AGU) protocolou
no Supremo Tribunal Federal (STF) um Mandado de Segurança (MS 38.053), pedindo
a suspensão da quebra dos sigilos de Tercio Arnaud Tomaz. Entre outros motivos,
alegou que a medida seria desproporcional e dependeria de decisão judicial.
É de observar, em primeiro lugar, que o
papel constitucional da AGU é a defesa dos interesses da União. A Lei
9.028/1995 autorizou o órgão a representar judicialmente agentes públicos em
relação “a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais,
legais ou regulamentares, no interesse público, especialmente da União”. Ou
seja, a AGU apenas pode defender em juízo um servidor público quanto a ato
praticado no exercício de suas funções regulares. A atuação do “gabinete do
ódio”, difundindo desinformação e mensagens enganosas, está longe de ser
exercício regular de função pública.
De toda forma, e aqui está o núcleo da
questão discutida no MS 38.053, a ministra Rosa Weber, vice-presidente do
Supremo, indeferiu o pedido de liminar, mantendo a quebra de sigilo decretada
pela CPI. Segundo a ministra, a decisão da comissão foi devidamente
fundamentada, com a indicação de indícios “perfeitamente adequados” ao objetivo
da CPI, que é “buscar a elucidação das ações e omissões do governo federal no
enfrentamento da pandemia”. No requerimento da CPI da Pandemia, foi relatado o
envolvimento de Tercio Arnaud Tomaz no “gabinete do ódio”, que, entre outras
ações, defendia a utilização de medicação sem eficácia comprovada.
De acordo com a comissão parlamentar, cabia
ao assessor da Presidência papel de destaque na “criação e/ou divulgação de
conteúdos falsos na internet”, com “intensa atuação na escalada da
radicalização das redes sociais por meio de fake news”.
“Parece inquestionável, desse modo, que os
indícios apontados contra o impetrante – que teria participado de diversas
reuniões cuja pauta envolvia a negociação de vacinas e supostamente era
responsável por disseminar notícias falsas contra a aquisição de imunizantes e
em detrimento da adoção de protocolos sanitários de contenção do vírus
SARS-CoV-2 – sugerem a presença de causa provável, o que legitima a
flexibilização do direito à intimidade do suspeito, com a execução das medidas
invasivas ora contestadas”, disse a vice-presidente do STF.
A Constituição assegura à CPI “poderes de
investigação próprios das autoridades judiciais”. Há jurisprudência consolidada
no sentido de que a comissão pode decretar quebra de sigilo bancário, fiscal e
de dados, incluindo o extrato da conta telefônica. O que ela não pode fazer – e
a CPI da Pandemia em nenhum momento fez isso – é determinar interceptação
telefônica ou quebra de sigilo de correspondência.
Dois aspectos se sobressaem na decisão da
ministra Rosa Weber. Primeiro, é papel do Judiciário defender as atribuições
constitucionais de cada Poder e o seu normal funcionamento. O Supremo cumpre
sua função institucional ao assegurar o direito da minoria de instaurar uma CPI
– mesmo com os requisitos preenchidos para a comissão, o presidente do Senado,
Rodrigo Pacheco (DEM-MG), tentou postergar sua instauração –, bem como ao
proteger os poderes de investigação da comissão. Para muito pouco valeria uma
CPI tolhida de seus poderes.
O segundo aspecto refere-se aos direitos
das pessoas investigadas pela CPI da Pandemia. Tal como Lula faz nos processos criminais
aos quais responde, há quem diga ser vítima de perseguição da comissão. A plena
vigência das garantias constitucionais, com a possibilidade de interpor mandado
de segurança – permitindo que o Judiciário revise a legalidade dos atos da CPI
–, mostra a falácia desse discurso. Há direito. O que não pode haver é
impunidade.
Dólar fora do lugar
Folha de S. Paulo
Queda do real, que favorece contas
externas, reflete pouca confiança no governo
Em meio às dificuldades da pandemia, a
economia brasileira passa por ajustes em áreas fundamentais que podem abrir
caminho de crescimento, apesar da inoperância da política do governo federal.
Nas contas externas, por exemplo, há boas
notícias. O choque nos preços das matérias-primas continua a impulsionar as
exportações e o saldo das transações comerciais.
Neste ano, até junho, as vendas ao exterior
atingiram US$ 137,7 bilhões, um salto de 36% ante o mesmo período de 2020. A
retomada da atividade, mais intensa do que se esperava, também deu impulso às
importações, que passaram de US$ 88,3 bilhões para US$ 117,9 bilhões na mesma
comparação.
O saldo acumulado, de US$ 19,8 bilhões,
deve se expandir mais e terminar o ano acima de US$ 60 bilhões, um recorde
histórico.
No agregado das transações de bens e
serviços, as remessas de lucros e o pagamento de juros da dívida externa ainda
levaram a um déficit no primeiro semestre, de US$ 7 bilhões (1,3% do Produto
Interno Bruto), embora as projeções apontem para um pequeno resultado positivo
neste ano.
O mais importante a notar é a redução
considerável do desequilíbrio externo desde o início da pandemia. Em 2019, o
déficit nessas operações chegou a US$ 65 bilhões (3,5% do PIB), patamar
arriscado em razão da volatilidade dos fluxos internacionais de capitais.
A combinação de termos de troca (a relação
entre preços de exportações e importações) favoráveis com a taxa de câmbio
desvalorizada coloca o país, em tese, numa boa condição de competitividade, o
que deveria favorecer a atração de mais investimentos.
Os sinais parecem apontar nessa direção,
mas de forma ainda incipiente. O ingresso líquido de investimento direto no
semestre ficou em US$ 12,3 bilhões. Esse saldo é bem menor que o do período
correspondente de 2020, devido a remessas, mas a entrada total se manteve em
patamar alto, de US$ 25,7 bilhões.
Ademais, há melhora substancial na chegada
de recursos em carteira (os que agregam aportes em títulos de renda fixa e na
Bolsa de Valores), rubrica na qual o déficit de US$ 2,6 bilhões do ano passado
deu lugar a um superávit de US$ 17,6 bilhões. São evidências de que o pior
momento de insegurança durante a pandemia passou.
Não há escassez de dólares, portanto.
Qualquer perspectiva positiva que se pretenda duradoura, contudo, depende de
maior confiança nos rumos da gestão econômica, exatamente o que falta hoje.
A desvalorização do real, a mais intensa
registrada desde o Plano Real (se ajustada pela inflação e pelos termos de
troca), deve-se a essa insegurança. E, pior, deságua em pressões inflacionárias
que afetam principalmente os mais pobres.
A cepa Bolsonaro
Folha de S. Paulo
Presidente não é só mais um a reclamar da
imprensa e desejar adesão sem poréns
Ao final da dantesca transmissão de quinta
(26) em que atacou
as urnas eletrônicas, Jair Bolsonaro encontrou tempo para queixar-se da
imprensa. “Eu quero voltar a ler a Folha, O Globo, O Estado de S. Paulo. Mas
tem de mudar essa linha. Cair na real. Esquecer o mas, o porém, o talvez, o não
é bem assim.”
Fosse possível isolar a declaração de seu
contexto deprimente, o presidente pareceria apenas mais um governante a
reclamar da cobertura crítica dos veículos de comunicação, neste caso com baixo
nível de pudor e sofisticação, ou a desejar um adesismo sem poréns.
Mas Bolsonaro é de outra cepa. Seu
interesse não está em contestar eventuais erros ou excessos da cobertura —que,
sim, são inevitáveis na atividade jornalística e merecem debate constante. O
que ele faz é uma campanha sistemática de ataque e intimidação, como parte
essencial de seu projeto de poder.
Levantamento
da organização Repórteres Sem Fronteiras contou nada menos que 87
investidas do presidente contra a imprensa no primeiro semestre deste ano. Uma
a cada dois dias, portanto, com alta de 74% ante o semestre anterior.
Na contagem não faltam agressões diretas
com termos chulos a profissionais, mulheres em especial, além das usuais
arengas sobre uma suposta perseguição ao governo e à gestão ruinosa da
pandemia.
Seus filhos —um senador, um deputado
federal e um vereador no Rio— seguem a mesma conduta, assim como nomes do
primeiro escalão, parlamentares aliados e, claro, a claque de seguidores
inflamados nas redes sociais.
A estratégia não se limita à retórica. O
Ministério da Justiça pediu formalmente investigações com base na Lei de
Segurança Nacional mirando críticos do Planalto —e o ex-titular da pasta, André
Mendonça, foi premiado com indicação ao Supremo Tribunal Federal.
Na mesma corte, o outro escolhido de
Bolsonaro, Kassio Nunes Marques, pediu ao Ministério Público Federal uma ação
criminal contra o colunista Conrado Hübner Mendes, devido a opiniões publicadas
neste jornal.
Trata-se da ofensiva mais ampla, agressiva
e cotidiana contra o direito à informação e a liberdade de manifestação desde
que foi restaurada a democracia no país, ainda que no período tenhamos
testemunhado não poucas tentativas de desacreditar a imprensa por parte dos
detentores do poder.
É hora de acelerar a consolidação fiscal
Valor Econômico
É temporada de pressão política sobre os
instrumentos que buscam ajustar as contas públicas
A proximidade das eleições e o crescimento
da arrecadação na União e nos Estados formam uma combinação que, se mal
aproveitada, pode custar à sociedade brasileira mais um par de anos de
crescimento à base de voos de galinha. É temporada de pressão política, vinda
inclusive do Planalto, sobre os instrumentos que buscam ajustar as contas
públicas.
No ataque especulativo que resultou na
cisão do Ministério da Economia, com a conversão da Secretaria Especial de
Previdência e Trabalho em um novo Ministério do Trabalho e Previdência, o
ministro Paulo Guedes privilegiou “segurar o caixa”, conforme relata uma pessoa
próxima a ele. Não abriu mão do naco de poder sobre as despesas federais.
Pelo contrário, fez um arranjo de forte
simbolismo na estrutura de seu próprio ministério. Criou uma nova secretaria
especial, a de Tesouro e Orçamento, que se dedicará exclusivamente ao controle
do ciclo orçamentário: o planejamento do gasto, sua execução e a avaliação de
seus resultados.
Extinguiu a Secretaria Especial de Fazenda,
que tinha essas mesmas funções ligadas à despesa, mas cuidava também de outras
frentes, como a gestão de loterias e de políticas para a energia.
Esses apêndices foram redistribuídos no
organograma. A Secretaria de Política Econômica, responsável pela formulação de
novos instrumentos, ganhou um upgrade e ficará ligada diretamente ao ministro.
A nova Secretaria Especial de Tesouro e
Orçamento materializa a recusa de Guedes em permitir a recriação do Ministério
do Planejamento. Pressões para isso sempre existiram e recrudescem em tempos de
reforma ministerial. Um governo politicamente enfraquecido é habitat ideal para
o florescimento dessa ideia.
Guedes impediu essa divisão mais uma vez, e
nisso foi apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro. De quebra, ainda manteve sob
seu guarda-chuva a Dataprev, estatal que processa os benefícios do INSS e que,
pelos planos originais, iria para o novo ministério. A empresa está na lista de
privatizações e o arranjo a preserva de tentações fisiologistas.
O controle sobre o ciclo orçamentário,
porém, não é suficiente para manter a trilha da consolidação fiscal. Os números
ainda não estão finalizados, mas o volume dos precatórios para 2022 pode ser
bem maior do que os R$ 54,7 bilhões projetados para este ano, aproximando-se de
R$ 90 bilhões. Trata-se, portanto, de mais um elemento a ser resolvido.
Não tardarão a ganhar espaço as pressões
para que o teto de gastos seja flexibilizado para acomodar o crescimento das
despesas que acompanha o ciclo eleitoral.
O teto tem sido um instrumento de contenção
da gastança que, em outros tempos, teria sido a consequência direta do
crescimento das receitas.
De janeiro a junho deste ano, a arrecadação
foi R$ 216 bilhões maior, em termos correntes, do que a vista na primeira
metade de 2020. Está no horizonte, além disso, uma redução das despesas.
Tudo somado, há na área técnica quem veja
condições de elevar a meta fiscal de 2022 em algo como R$ 60 bilhões a R$ 70
bilhões. Com isso, o avanço das receitas e a economia nas despesas iria para
abater a dívida.
O Tesouro veria com bons olhos se o excedente
fosse usado para acelerar a consolidação fiscal, disse o secretário Jeferson
Bittencourt. Mas ele mesmo reconheceu que há limites, ao afirmar que há muitas
questões ainda não endereçadas, em relação ao orçamento de 2022, para afirmar
se tal providência será possível.
A proposta do governo para o orçamento de
2022 terá de chegar ao Congresso até o dia 31 de agosto. Um ponto de atenção é
o novo Bolsa Família. Pelo menos até o momento, o programa tem sido formulado
sem atentar contra as regras de controle fiscal. Até porque existe espaço sob o
teto de gastos para lançar o programa pagando os R$ 300,00 defendidos por
Bolsonaro, disse Bittencourt.
A pandemia expandiu a dívida pública do governo geral para 88,8% do Produto Interno Bruto (PIB) em um país que já estava entre os mais endividados entre seus semelhantes. É preciso aproveitar o período favorável da economia para recolocar as contas públicas na trilha do ajuste. Ceder a tentações populistas é receita certa para se desviar desse caminho. A economia dará sua resposta de imediato.
O Globo
É um erro manter
isenção para o Simples Nacional
É preciso
restringir o Simples ao objetivo original, banindo abusos
Pelo que revelou
o relator Celso Sabino (PSDB-PA), a proposta ruim de reforma tributária que
tramita na Câmara poderá ficar pior. Entre os desatinos que anunciou, chamaram
a atenção a intenção de preservar a isenção de impostos sobre dividendos
distribuídos por empresas que declaram pelo regime do Simples Nacional, a de
ampliar a faixa de isenção nos demais regimes para acima de R$ 20 mil e a de
reduzir as alíquotas para o regime do lucro presumido. Sob o pretexto de
agradar a micro e pequenas empresas, a proposta continuará a ampliar as
distorções que fazem do sistema tributário brasileiro um dos mais injustos e o
mais complexo do mundo.
O Simples foi
criado como um regime especial para unificar a cobrança de tributos e facilitar
a vida dos pequenos empresários. Foi tão bem-sucedido que, com o tempo, uma
sucessão de acréscimos acabaram por torná-lo um labirinto cheio de desvãos,
capazes de abrigar qualquer negócio cujo faturamento anual esteja abaixo de R$
4,8 milhões — em particular, profissionais liberais ou executivos que preferem
se transformar em pessoas jurídicas para fins tributários, expediente conhecido
como “pejotização”. A faixa de enquadramento é muito superior à praticada em
programas similares no mundo.
De acordo com o
próprio governo, o Simples representou em 2019, quando era adotado por 3,3
milhões de empresas, uma perda de arrecadação de R$ 76 bilhões, um quarto do
total de subsídios tributários e a maior renúncia fiscal da União, equivalente
a 1% do PIB. Hoje o cadastro do regime reúne 4,2 milhões de empresas. Muitas
são mesmo pequenos negócios que mereceriam benefícios. Mas é escandalosa a
quantidade cujo objetivo é apenas a engenharia tributária.
Em vez de
corrigir o festival de abusos, a proposta de Sabino contribui para agravar as
distorções. A criação do imposto sobre dividendos tinha ao menos a qualidade de
tentar fechar a brecha para a “pejotização”. Pelos cálculos do economista
Bernard Appy, quem ganha R$ 100 mil por mês está sujeito hoje à alíquota média
de 38% se for funcionário de empresa, 26% se for servidor público, 16% se
declarar pelo Simples e 12% pelo lucro presumido (descontando o que recebe em
benefícios). Na proposta anterior do relator, a cobrança de dividendos elevaria
as duas últimas alíquotas a, respectivamente, 23% e 21%, reduzindo a distorção.
Na faixa de
isenção para quem faturasse até R$ 20 mil, porém, elas cairiam — de 9,7% para
4,7%; e de 3,3% para 2,6% —, aumentando, até esse patamar de renda, a distância
para funcionários contratados (que hoje pagam 29%) e servidores (21%). A
expansão do limite que dá direito à isenção só contribuiria para levar mais
distorção às faixas que ganham mais de R$ 30 mil — o 1% com maior renda na
população. Reduzir alíquotas sobre o lucro presumido teria efeito semelhante.
A dificuldade do governo e do relator é entender que o redesenho dos regimes tributários exige atitude oposta à que têm demonstrado. Em vez de ceder às pressões para preservar os privilégios de quem paga menos do que pode e deveria, ambos têm o dever de enfrentá-las. É preciso restringir o Simples ao objetivo original, banindo abusos. E criar um sistema que não favoreça quem tem mais renda e, para compensar, lance a carga tributária escandalosa necessária para sustentar o Estado nas costas de quem investe para gerar emprego — e dos mais pobres.
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