O Globo
A provável assunção de André Mendonça como
ministro do STF faz parte de uma sedição urdida ainda na década de 1960. Por
trás da indicação de alguém “terrivelmente evangélico”, esconde-se a reação de
alguns bispos católicos à modernização pregada pelo Concílio Vaticano II.
Enxergaram ali uma guinada intolerável na
Igreja.
Em oposição às ideias saídas do encontro
convocado pelo Papa João XXIII, houve uma união inédita entre bispos
conservadores, teólogos e ativistas moralistas. E ainda políticos oportunistas.
Por rejeitar uma sintonia da religião com uma postura em defesa da justiça
social, menos vetusta (o abandono do latim nas missas…), os descontentes
iniciaram um processo reacionário de tomada do poder em todos os níveis da
sociedade. Touché: décadas depois, vemos a ocupação de espaço político no
Congresso, na mídia e na Justiça.
O recém-lançado livro do professor Benjamin Cowan, “Moral majorities across the Americas: Brazil, the United States, and the creation of the religious right”, traz toda a história da reação conservadora, com nomes aos bois e documentos, além de seguir as relações dos sediciosos brasileiros com os americanos. Sim, as vitórias do Bozo e de Trump seguem um roteiro ideológico traçado pelos militantes moralistas ali nos sessentas do século passado. É de fato um troço transnacional. Bem sabe o Mourão ao suar pela Universal em terras africanas.
Os nomes dos principais bois: os bispos
Geraldo de Proença Sigaud e Antônio de Castro Mayer, depois aliados
(financiados também) por Plínio Corrêa de Oliveira, fundador da TFP (Tradição,
Família e Propriedade). Em documentos levantados por Cowan, observa-se a
construção de um discurso político-religioso capaz de juntar católicos
tradicionalistas, evangélicos conservadores, protestantes e militares
brasileiros.
Cada um dos grupos tem suas idiossincrasias
e interesses, porém a junção resulta numa salada à base de fake news,
hipocrisia e desejo autocrático. De um lado, há o ódio à modernidade,
representada pelo ecumenismo, pela liberdade de escolhas e de costumes; de
outro, a tentativa de manter o controle sobre a vida e a consciência alheias.
Vale lembrar que o mercado acabara de inventar o jovem com suas vontades e
contestações (o sexo livre e a minissaia são problemões…).
A melhor arma, portanto, é o medo.
Instaurá-lo em meio à ingenuidade da população menos instruída. Inspiram-se no
passado, quando a tática deu resultados: a figura do demônio consumindo os
pecadores no inferno; o Deus onisciente capaz de vigiar até seus pensamentos.
E houve então a criação do bode. No caso, o
comunismo. Inicia-se a retórica do perigo vermelho como ameaça à família, aos
valores cristãos (discurso compartilhado pela direita americana). Da destruição
do lar papai e mamãe pela esquerda, passa-se para a guerra cultural, outro
campo visto como arena da modernidade.
Os carolas enxergam a pornografia, a
mudança de costumes, até as drogas como elementos capazes de desestabilizar o
mundo sonhado pelos conservadores. Miram um retorno a um passado idealizado,
localizado na Idade Média! Os integrantes da TFP se vestirão com batas de
inspiração medieval, mas seus cortes de cabelo se assemelham (oh, meu deus) aos
balillas de Mussolini.
Os milicos golpistas de 1964 encampam logo
alguns dos ódios dos tradicionalistas moralistas. Contrários ao ecumenismo, à
secularização, à justiça social pregada pelo clero progressista (embora esse
discurso venha direto de Jesus Cristo), antiestatistas e, depois, neoliberais.
A bagunça dos militares saiu fora do
desenho dos moralistas. Embora avidamente estatizantes, mas abraçados ao
capitalismo, entre outros setores, incentivam a cultura de mercado, como a
indústria cinematográfica e a música popular brasileira (criam legislação e
incentivos específicos). Com esse descuido, o gênio sai da lâmpada — a fornada
de contestadores, alguns claramente sátiros (Chico, Mautner, Taiguara, Caetano,
Odair José), ou… as grandes bilheterias das pornochanchadas, como “A virgem e o
machão” ou “A dama da zona”. (O funk carioca é neto dessa turma...).
Para causar um pânico moral, os ativistas
moralistas, como Sigaud e a TFP, forçam a barra e juntam liberação sexual e
revolução de costumes à esquerda. Outra lorota. Logo viriam as campanhas contra
o aborto e a liberação de armas.
Pensando bem, a conta não fecha. Não
importa. Ponha a culpa nos malditos comunistas.
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