Valor Econômico
Paulo Guedes é o responsável pelas mazelas
que ele próprio critica
Na tarde do dia 29 de maio de 1936, Getúlio
Vargas convocou ao seu gabinete o ministro das Relações Exteriores, José Carlos
de Macedo Soares. Um dos seus mais fiéis apoiadores, o advogado, industrial e
político paulistano estava à frente do Itamaraty havia quase três anos, período
em que desempenhou missões delicadas, como a mediação das negociações de paz
entre Bolívia e Paraguai na Guerra do Chaco.
Nas semanas anteriores, Vargas havia
mandado esvaziar algumas salas do segundo andar do Palácio do Catete para
abrigar um novo órgão. Para comandá-lo, nomeou Macedo Soares como seu
presidente, função que seria exercida cumulativamente ao cargo de chanceler. Na
cerimônia de posse, diante de seu ministério, anunciou: “Tenho tal interesse
pelo Instituto Nacional de Estatística que lhes dei a minha Casa e o meu
Ministro”.
Tamanho prestígio não se manteve. Em seus recém-completados 85 anos, o órgão oficial de estatísticas do país, rebatizado em 1938 como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), viveu muitos altos e baixos. Essa saga é contada em detalhes por Nelson Senra no monumental História das Estatísticas Brasileiras, um conjunto de quase quatro mil páginas, organizadas em quatro volumes, que descrevem como as estatísticas brasileiras foram desejadas (1822-1889), legalizadas (1889-1936), organizadas (1936-1972) e formalizadas - de 1972 a 2002, último período coberto pela obra, publicada em 2006.
Dos levantamentos quase amadores à
aplicação das mais modernas metodologias e técnicas adotadas internacionalmente,
o caminho trilhado pelo IBGE foi repleto de desafios - e sobretudo de
percalços. A ideia original de que o IBGE seria o órgão de cúpula que
coordenaria toda a produção estatística do país, integrando e uniformizando
dados e informações coletadas por todos as repartições federais, estaduais e
municipais em seus registros administrativos, nunca chegou a ser plenamente
implementada.
Pior do que isso, crises recorrentes
abalavam a credibilidade do órgão. Depois do frenesi planejador do período de
Vargas e JK, o IBGE viveu uma fase de ostracismo ao longo da década de 1960. A
estagnação e o descontrole inflacionário dos anos 80 trouxeram inúmeras greves,
desorganização administrativa e perda de servidores que colocaram em risco o
censo de 1990, só realizado a duras penas no ano seguinte.
A situação chegou a tal ponto que,
recém-nomeado para chefiar o IBGE em 1994, uma das primeiras providências
tomadas pelo sociólogo Simon Schwartzman foi pedir ajuda externa. Mediante um
acordo de cooperação, a agência de estatísticas do Canadá, considerada a melhor
do mundo na época, enviou uma comissão de técnicos para fazer um diagnóstico da
situação.
As conclusões da missão da Statistics
Canada foram condensadas num relatório de 83 páginas. O diagnóstico lançava luz
sobre a carência de um corpo profissional multidisciplinar, bem treinado e
motivado; falta de consciência sobre custos de pesquisas; problemas na
comunicação interna e externa; dificuldades na identificação das demandas dos
usuários do sistema de informações e necessidade de se garantir uma fonte de
recursos perenes para as atividades.
Entre as recomendações da equipe canadense
para reverter a crise estava a construção de uma rede de aliados externos -
políticos, acadêmicos, empresários e outros stakeholders que tivessem
consciência do valor de um instituto de estatísticas sólido e sua contribuição
para o desenvolvimento social e econômico do país. Na visão dos técnicos
canadenses, isso seria fundamental para mobilizar ativos políticos e
orçamentários, principalmente nos momentos difíceis.
27 anos depois, o IBGE revive muitos dos
fantasmas que o assombravam naquele tempo. O instituto apresenta dificuldades
em manter profissionais de primeira linha, com servidores concursados sendo
substituídos por trabalhadores temporários. Enquanto pesquisas são
descontinuadas ou sofrem atrasos por restrições orçamentárias, disputas
ideológicas entre dirigentes, funcionários e a comunidade de usuários
inviabiliza a busca de soluções e consensos técnicos.
São problemas que se arrastam e se agravam
desde pelo menos o último censo (no já distante 2010), perpassando várias
administrações do órgão e pelo menos os mandatos de Dilma, Temer e Bolsonaro.
Em seus 85 anos, o IBGE já esteve submetido
à Presidência da República, ao Ministério do Planejamento ou à pasta da
Fazenda/Economia. Durante todo esse tempo, houve presidentes da República e
ministros (raros) que prestigiaram a entidade, reconhecendo o seu valor e
demandando insumos para a tomada de decisões, enquanto outros (a maioria, infelizmente)
simplesmente a relegaram ao segundo plano.
A situação sui generis enfrentada pelo IBGE
hoje é que ele está hierarquicamente vinculado a um ministro que não apenas se
recusa a apoiar a instituição, como não perde oportunidade de denegrir a sua
imagem.
Como autoridade máxima à qual o IBGE se
reporta, Paulo Guedes é o responsável em última instância pelas mazelas que ele
próprio critica - como ficou evidente no novo adiamento do censo 2020, em que o
ministro simplesmente lavou as mãos durante as negociações para viabilizar seu
orçamento no Congresso Nacional.
No caso da polêmica da última semana, sobre
as divergências sobre os números de emprego entre o Caged e a PNAD Contínua,
muito se deve à falta de vontade política do ministro da Economia em contornar as
resistências judiciais para a atualização da base de dados telefônicos do IBGE
em meio à pandemia.
Nestes tempos em que a riqueza mundial se
desloca da manufatura e do petróleo para as inovações desenvolvidas a partir de
imensas bases de dados, um ministro da Economia que despreza seu instituto de
estatísticas é quem, na verdade, vive na idade da pedra lascada.
*Bruno Carazza é mestre em
economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as
engrenagens do sistema político brasileiro”.
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