segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Bruno Carazza* - O IBGE e o ministro da pedra lascada

Valor Econômico

Paulo Guedes é o responsável pelas mazelas que ele próprio critica

Na tarde do dia 29 de maio de 1936, Getúlio Vargas convocou ao seu gabinete o ministro das Relações Exteriores, José Carlos de Macedo Soares. Um dos seus mais fiéis apoiadores, o advogado, industrial e político paulistano estava à frente do Itamaraty havia quase três anos, período em que desempenhou missões delicadas, como a mediação das negociações de paz entre Bolívia e Paraguai na Guerra do Chaco.

Nas semanas anteriores, Vargas havia mandado esvaziar algumas salas do segundo andar do Palácio do Catete para abrigar um novo órgão. Para comandá-lo, nomeou Macedo Soares como seu presidente, função que seria exercida cumulativamente ao cargo de chanceler. Na cerimônia de posse, diante de seu ministério, anunciou: “Tenho tal interesse pelo Instituto Nacional de Estatística que lhes dei a minha Casa e o meu Ministro”.

Tamanho prestígio não se manteve. Em seus recém-completados 85 anos, o órgão oficial de estatísticas do país, rebatizado em 1938 como Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), viveu muitos altos e baixos. Essa saga é contada em detalhes por Nelson Senra no monumental História das Estatísticas Brasileiras, um conjunto de quase quatro mil páginas, organizadas em quatro volumes, que descrevem como as estatísticas brasileiras foram desejadas (1822-1889), legalizadas (1889-1936), organizadas (1936-1972) e formalizadas - de 1972 a 2002, último período coberto pela obra, publicada em 2006.

Dos levantamentos quase amadores à aplicação das mais modernas metodologias e técnicas adotadas internacionalmente, o caminho trilhado pelo IBGE foi repleto de desafios - e sobretudo de percalços. A ideia original de que o IBGE seria o órgão de cúpula que coordenaria toda a produção estatística do país, integrando e uniformizando dados e informações coletadas por todos as repartições federais, estaduais e municipais em seus registros administrativos, nunca chegou a ser plenamente implementada.

Pior do que isso, crises recorrentes abalavam a credibilidade do órgão. Depois do frenesi planejador do período de Vargas e JK, o IBGE viveu uma fase de ostracismo ao longo da década de 1960. A estagnação e o descontrole inflacionário dos anos 80 trouxeram inúmeras greves, desorganização administrativa e perda de servidores que colocaram em risco o censo de 1990, só realizado a duras penas no ano seguinte.

A situação chegou a tal ponto que, recém-nomeado para chefiar o IBGE em 1994, uma das primeiras providências tomadas pelo sociólogo Simon Schwartzman foi pedir ajuda externa. Mediante um acordo de cooperação, a agência de estatísticas do Canadá, considerada a melhor do mundo na época, enviou uma comissão de técnicos para fazer um diagnóstico da situação.

As conclusões da missão da Statistics Canada foram condensadas num relatório de 83 páginas. O diagnóstico lançava luz sobre a carência de um corpo profissional multidisciplinar, bem treinado e motivado; falta de consciência sobre custos de pesquisas; problemas na comunicação interna e externa; dificuldades na identificação das demandas dos usuários do sistema de informações e necessidade de se garantir uma fonte de recursos perenes para as atividades.

Entre as recomendações da equipe canadense para reverter a crise estava a construção de uma rede de aliados externos - políticos, acadêmicos, empresários e outros stakeholders que tivessem consciência do valor de um instituto de estatísticas sólido e sua contribuição para o desenvolvimento social e econômico do país. Na visão dos técnicos canadenses, isso seria fundamental para mobilizar ativos políticos e orçamentários, principalmente nos momentos difíceis.

27 anos depois, o IBGE revive muitos dos fantasmas que o assombravam naquele tempo. O instituto apresenta dificuldades em manter profissionais de primeira linha, com servidores concursados sendo substituídos por trabalhadores temporários. Enquanto pesquisas são descontinuadas ou sofrem atrasos por restrições orçamentárias, disputas ideológicas entre dirigentes, funcionários e a comunidade de usuários inviabiliza a busca de soluções e consensos técnicos.

São problemas que se arrastam e se agravam desde pelo menos o último censo (no já distante 2010), perpassando várias administrações do órgão e pelo menos os mandatos de Dilma, Temer e Bolsonaro.

Em seus 85 anos, o IBGE já esteve submetido à Presidência da República, ao Ministério do Planejamento ou à pasta da Fazenda/Economia. Durante todo esse tempo, houve presidentes da República e ministros (raros) que prestigiaram a entidade, reconhecendo o seu valor e demandando insumos para a tomada de decisões, enquanto outros (a maioria, infelizmente) simplesmente a relegaram ao segundo plano.

A situação sui generis enfrentada pelo IBGE hoje é que ele está hierarquicamente vinculado a um ministro que não apenas se recusa a apoiar a instituição, como não perde oportunidade de denegrir a sua imagem.

Como autoridade máxima à qual o IBGE se reporta, Paulo Guedes é o responsável em última instância pelas mazelas que ele próprio critica - como ficou evidente no novo adiamento do censo 2020, em que o ministro simplesmente lavou as mãos durante as negociações para viabilizar seu orçamento no Congresso Nacional.

No caso da polêmica da última semana, sobre as divergências sobre os números de emprego entre o Caged e a PNAD Contínua, muito se deve à falta de vontade política do ministro da Economia em contornar as resistências judiciais para a atualização da base de dados telefônicos do IBGE em meio à pandemia.

Nestes tempos em que a riqueza mundial se desloca da manufatura e do petróleo para as inovações desenvolvidas a partir de imensas bases de dados, um ministro da Economia que despreza seu instituto de estatísticas é quem, na verdade, vive na idade da pedra lascada.

*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.

 

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