O Globo
Refém dos mesmos políticos e sindicatos
patronais de sempre, o Brasil continua apostando em receitas antigas
Nos próximos dias, o governo federal deve
divulgar um pacote de medidas de incentivo para a indústria automobilística,
enlatadas sob o marketing de um “novo carro popular”. Será o terceiro grande
pacote de estímulos para o setor em uma década, depois do Inovar-Auto (no
governo Dilma) e do Rota 2030 (no governo Temer).
Não é por falta de incentivos que o setor cambaleia. Ainda assim, sindicatos patronais e de empregados listam uma série de argumentos para justificar o pedido por novos auxílios. Em geral, o argumento vem pelo lado da demanda: como o setor se utiliza de insumos de vários outros, isso tenderia a estimular a produção (e o emprego) ao longo da cadeia de forma direta e indireta.
O interessante é perceber que, dada o que
conhecemos hoje sobre qual deve ser a política industrial ótima, esse argumento
mostra que o setor automobilístico brasileiro é precisamente o contrário do
setor ideal para se fazer política industrial. O leitor vai entender o porquê
em alguns parágrafos.
Quando o governo deve fazer política
industrial?
Política industrial é toda e qualquer
intervenção de estímulo que privilegia determinado setor. Não tem a ver,
necessariamente, com manufatura ou a indústria de transformação. Uma política
pública que se foca no setor agrícola, como a Embrapa, também é um tipo de
política industrial. Portos secos e zonas especiais de exportação são outros
tipos peculiares de política industrial.
Uma razão para o governo intervir na
economia é quando existe algum tipo de falha de mercado que leva a uma
ineficiência no processo produtivo. O que isso quer dizer? Por exemplo, se
pequenos produtores gostariam de expandir sua fábrica mas não conseguem pela
inexistência de um mercado de crédito em partes do país, isso é uma falha de
mercado.
Faz sentido, portanto, o governo “completar
o mercado”, provendo esse serviço por meio de bancos públicos.
Outra razão é quando existem em
determinados setores o que economistas chamam “retornos crescentes de escala”.
Por exemplo, para você sequer iniciar a operação em determinados setores,
talvez seja necessário um investimento muito alto, de modo que a empresa só se
torna competitiva depois de ter determinado tamanho.
Não é fácil saber em quais setores existem
essas motivações. Por isso, em geral, não é fácil fazer política industrial.
Contudo, num ótimo trabalho recente, o
Professor da Universidade de Princeton Ernest Liu demonstrou que aqueles
setores que fornecem insumos para outros tendem a ser os mais afetados por
essas distorções. Isto porque eles “absorvem” as distorções dos setores
subsequentes.
Entre outras razões, é por isso que faz
sentido o governo investir em ciência básica: pesquisa básica tende a servir de
insumo para vários setores. E é por isso também que uma instituição como a
Embrapa é um sucesso no Brasil: ela está no topo da cadeia produtiva.
Aqui fica claro porque o setor
automobilístico é o contrário disto. Ele produz um bem final que é usuário de
vários insumos, não um produtor de insumos. Corrigir distorções nesse setor não
vai beneficiar muitos outros setores exatamente porque quase não há setores que
usam carros como insumos. É, nesse quadro, o contrário de um setor ideal para
política industrial.
Uma alternativa não seria simplesmente
“investir na indústria”, poderiam perguntar? Infelizmente, não é tão simples.
Outro trabalho recente, dos economistas
Paula Bustos, Juan Castro-Vincenzi, Joan Monras e Jacopo Ponticelli, traz
resultados importantes. Ao estudar a expansão da soja geneticamente modificada
no Brasil, que induziu a realocação de trabalhadores da agricultura para a
manufatura, eles demonstram que estes se realojaram na manufatura de baixa
produtividade.
Ocorreu, portanto, uma “industrialização
sem inovação” no Brasil. A conclusão é que nem toda a indústria de manufatura é
igual. A composição setorial importa muito, e a produtividade cada setor
também.
Enquanto o mundo discute a política
industrial do futuro, estudando os casos de desenvolvimento recente com base na
melhor evidência científica disponível, o Brasil, refém dos mesmos políticos e
sindicatos patronais de sempre, continua apostando nas receitas do passado.
Se o governo quiser levar adiante a agenda
da política industrial é preciso abraçar o futuro e abandonar o fetichismo
pelas velhas ideias.
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