O Globo
O que você acharia se a namorada do piloto
resolvesse sugerir ajustes no plano de voo?
O que você acharia se a mulher do médico
entrasse na sala de cirurgia para opinar sobre procedimentos, sedação, sutura?
Se o companheiro da dentista aparecesse para dar palpite sobre ser melhor
tratar o canal ou extrair o dente logo de uma vez? Se o marido do engenheiro se
manifestasse sobre a posição dos pilares, porque ficou encantado com o
“conceito aberto” num programa de televisão? Se a namorada do piloto resolvesse
sugerir ajustes no plano de voo ou no serviço de bordo?
Pois é. Mas aqui estamos nós, discutindo as interferências da atual primeira-dama na taxação de importações e na atuação do Gabinete de Segurança Institucional — sem saber até que ponto as críticas são fruto de nosso machismo estrutural.
Já se foi o tempo em que as digníssimas
esposas de presidentes, governadores e prefeitos estavam limitadas a fazer
presença VIP nas cerimônias oficiais e a participar de atividades
filantrópicas. Mudou o papel da mulher na sociedade, mas o das primeiras-damas
não foi reescrito. Até porque se trata de uma espécie singular de função
honorífica. Assim como mesários e jurados, primeiras-damas vêm com prazo de
validade, não têm vínculo empregatício nem recebem remuneração. Essa não é uma
função (mas um status) e tampouco honorifica (não configura homenagem às suas
notórias capacidades profissionais).
Foi Marcia Tiburi quem melhor resumiu o
paradoxo de essa figura continuar existindo num governo dito progressista:
— Eu acho que não combina com uma feminista
ser primeira-dama. (...) Eu sairia desse lugar inessencial e subalterno e iria
para um lugar de protagonismo.
A filósofa vai mais longe e aconselha a
renúncia ao cargo (impossível: o cargo não existe, e a opção do divórcio parece
fora de cogitação) e a “fazer alguma coisa realmente mais revolucionária”
(improvável, num governo que só involui).
A mulher de um governante daria ótimo
exemplo de protagonismo feminino se continuasse em sua área de atuação, onde se
destaca por seus próprios méritos, não por obra dos sagrados laços do
matrimônio. Sarah Kubitschek e Ruth Cardoso souberam usar a proximidade com o
poder para ampliar seu legado. Uma, com os centros de reabilitação (hoje, Rede
Sarah). A outra, com projetos de combate à pobreza (ajudou a criar o Comunidade
Solidária, depois transformado no Fome Zero).
Com sua habitual incontinência
verbal, Ciro Gomes causou
enorme mal-estar ao declarar, em 2002, que “a minha companheira tem um dos
papéis mais importantes, que é dormir comigo”. Por mais deselegante que tenha
sido (e foi), totalmente errado ele não estava. Nas monarquias, há uma família
reinante, que vira uma instituição (“A Firma”, como a chamam os britânicos);
nas repúblicas, o cônjuge e a prole do governante deveriam manter com o poder
relações mais... republicanas.
Margaret Thatcher, Angela Merkel e Jacinda
Ardern mostraram como se separa o público do privado nas questões conjugais.
Aqui, Itamar Franco e Dilma
Rousseff foram prova incontestável de que o país sobrevive
muito bem sem um primeiro-cônjuge.
Numa democracia, o poder é conquistado pela
força do voto. E os votos da primeira-dama (ou do primeiro-cavalheiro) estão no
altar, não nas urnas.
2 comentários:
A primeira dama tem o direito de opinar,penso eu.
A premissas de seu silogismo são, felizmente, falsas.
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