Valor Econômico
É significativo que em São Paulo, o estado
mais rico, estejam 40% dos idosos moradores de rua do Brasil
Estudo recente, da Universidade Federal de
Minas Gerais, mostrou que há no país quase 24 mil idosos vivendo nas ruas,
quase 10% de todas as pessoas que estão nessa condição. O número delas, entre
nós, aumentou sete vezes nos últimos dez anos. Estamos, portanto, em face de
uma tendência na demografia etária dos brasileiros.
É compreensível que seja difícil explicar
essa anomalia social. Em parte porque a busca das causas prováveis tende a ser
a das mais simples, mais óbvias ainda que menos prováveis, não as invisíveis.
Chama atenção que diferentes estudos sobre moradores de rua tendam a identificar como causa de sua situação de abandono os chamados defeitos de caráter, como alcoolismo e droga. Ou seja, nessa perspectiva, a culpa é da vítima.
O que, na verdade, nada explica. É muito mais
fácil culpar o frágil pelos problemas sociais que protagoniza do que buscar
causas, e não culpas, na própria estrutura social e em suas disfunções, num
país em que as irracionalidades da economia se expressam como anomia social.
As sociedades são relacionais, tramas de
causas recíprocas, tanto no que dá certo quanto no que dá errado, tanto em
relação ao rico quanto em relação ao pobre. No caso de São Paulo, na chamada
cracolândia, a incidência da marginalização decorrente do uso de drogas sugere
o protagonismo da classe média. Observei isso na cracolândia da rua Helvétia,
há alguns anos.
Caso em que se pode levantar a hipótese
legítima de que o viciado desses ajuntamentos é alguém que busca a
sociabilidade coletiva da rua porque é ela não excludente.
Ela se dá fora dos mecanismos de controle
social dos diferentes grupos sociais de pertencimento e de referência. Como a
família e a vizinhança e outros grupos de orientação social comunitária e
afetiva.
Pessoas repelidas e reprimidas pela
sociabilidade individualista dos agrupamentos formais, societários, os do
indivíduo e não os da pessoa. Os do sujeito da cultura da produção lucrativa e
não os da cultura do afeto.
As dificuldades do morador de rua para
permanecer na sociabilidade da família parecem provir do fato de que a família
em boa parte se tornou complemento e instrumento do sistema produtivo e
lucrativo, isto é, da racionalidade econômica e não mais exclusivamente da
afetividade social.
Sociologicamente, efeitos socialmente
desorganizadores da vida em família, em muitos casos, não contam com a reação
afetiva, compensatória e reintegradora do grupo familiar. Em boa parte porque
os laços de família estão significativamente mediados e abalados pelo primado
de relações de interesse.
A afetividade familista permanece na
estrutura familiar, especialmente dos mais velhos em relação aos mais novos. E
só residualmente presente, porque no sentido oposto e negativo, antissocial,
dos mais novos em relação aos mais velhos. Avós tendem a ser muito mais
generosos no acolhimento e proteção a netos e filhos do que os mais novos em
relação aos mais velhos.
Isso tem muito a ver com as cada vez mais
limitadas condições de vida das famílias. Com o chamado arrocho salarial dos
anos iniciais da ditadura militar, o salário de duas pessoas em cada família
tornou-se necessário para cobrir o que antes um único salário cobria. Aqui,
isso tornou-se estrutural. Essa dificuldade desenvolveu um egoísmo peculiar nas
gerações mais jovens, em começo de vida adulta, mesmo na família.
Mas não só nem principalmente isso. O sistema
econômico, cada vez mais, tem transformado o trabalhador em matéria-prima da
produção ao privá-lo dos meios de sua própria reprodução social, ao consumi-lo.
E nele negar o meio de realização do capital. É um equívoco político supor que,
na teoria das classes sociais, o trabalhador se explica apenas pela produção e
não, também, pelo consumo de bens e serviços, condição da reprodução do
capital.
É significativo que em São Paulo, o estado
mais rico, estejam 40% dos idosos moradores de rua do Brasil. Entre as
anomalias e contradições do sistema econômico brasileiro está a do banimento de
seres humanos para os espaços de deterioração social, como os define Lewis
Mumford.
O idoso de rua é o ser humano que chegou ao
limite da procura de reintegração no mercado de trabalho. Da crescente
dificuldade para conseguir emprego, o tempo cada vez maior de desemprego entre
um emprego e outro define o ritmo da dessocialização do idoso no grupo familiar
e na sociabilidade do trabalho, os vínculos sociais cotidianos mutilados pelo
desemprego.
Sobram-lhe a necessidade de ressocialização
para um modo de vida, um cotidiano marginal e não integrativo, na referência
social dos grupos de rua a do viver de restos, ele próprio reduzido a resto da
condição humana.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. É autor de, entre outros livros, “Capitalismo e escravidão na sociedade pós-escravista” (Editora Unesp, São Paulo, 2023).
Nenhum comentário:
Postar um comentário