O Estado de S. Paulo
Sem autocrítica, militares estarão sempre contaminados pela cultura do intervencionismo
O fato verdadeiramente inédito criado pela
Operação Tempus Veritatis de ontem é que ela colocou a Polícia Federal no
encalço de militares de alta patente, todos suspeitos de participar de uma
conspiração para promover um golpe de Estado, desrespeitando o resultado da
eleição presidencial de 2022. Na lista estão 16 militares, entre os quais
quatro generais e um almirante que tiveram funções de destaque durante o
governo de Jair Bolsonaro.
Há um longo caminho a ser percorrido após a análise do material coletado nos endereços dos investigados, mas as evidências que embasaram a operação são contundentes: incluem, por exemplo, conversas em aplicativo de mensagem e vídeos de reuniões que mostram maquinações bastante evidentes contra a ordem democrática.
Se for comprovada a culpa dos envolvidos,
haverá o desafio de puni-los com a lei, muito recente, que substituiu a
obsoleta Lei de Segurança Nacional, e que tipifica como crimes, por exemplo, as
tentativas de golpe de Estado e de abolição do estado democrático de direito.
Atenção para a palavra “tentativa”. Ou seja, os atos de planejar e agir com o
propósito de impedir o “exercício dos Poderes constitucionais” ou de promover
um golpe já configuram crimes, não é preciso que eles atinjam seu objetivo.
Se os militares afetados pela operação da PF
vierem de fato a se tornar réus e forem condenados, teremos mais um fato
histórico – o Brasil tem uma tradição de anistiar militares golpistas, com base
na convicção de que a punição pode alimentar o ressentimento da caserna e criar
novos problemas mais à frente. Isso ocorreu na presidência de Juscelino
Kubitschek e também na transição do regime militar para a atual fase
democrática.
Uma eventual punição de militares de alta
patente, contudo, não será o bastante para eliminar a gestação de aspirações
golpistas nas Forças Armadas. O Brasil precisa reforçar o controle civil sobre
os militares, como fizeram outras democracias mais consolidadas, e isso passa
não apenas pela aprovação de regras que os afastem da interferência na
política, como a PEC que pretende proibir os oficiais da ativa de participar de
eleições ou do alto escalão do governo, mas também por uma reformulação no
ensino militar.
O que os militares em formação aprendem nas
instituições do Exército, por exemplo, estimula a mentalidade de que têm um
papel de salvadores da Pátria não apenas na defesa externa, mas também
internamente, no campo político. A doutrina de contrainsurgência contra grupos
políticos dos tempos do regime militar ainda tem influência nas Escolas
Militares e sequer a questão de 31 de março de 1964 está pacificada. Enquanto
prevalecer na cúpula das Forças Armadas, e portanto nos quartéis, o
entendimento de que o que ocorreu naquela data foi uma revolução e não um golpe
de Estado, não será possível confiar que os militares aceitam plenamente o
controle civil sobre eles.
Durante o governo Bolsonaro, permitia-se a
comemoração aberta do golpe que deu início à ditadura militar como um
“movimento” que fez muito bem ao País. O general Braga Netto, um dos que agora
foram alvos da operação PF, quando se tornou ministro da Defesa, em 2021,
afirmou que “devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31
de março” como um movimento que salvou o País de ameaças reais à democracia. O
general Hamilton Mourão, então vice de Bolsonaro, definiu 31 de março como uma
“revolução”, uma “intervenção no processo político” para conter, entre outras
coisas, o “caos social” e que resultou em um “regime que empreendeu as maiores
reformas de sua história”.
Enquanto não houver nas fileiras das Forças
Armadas uma autocrítica em relação ao seu real papel e impacto na história
recente do País, a formação das novas gerações de militares será sempre
contaminada pela ideia de salvacionismo político e pela cultura do
intervencionismo. E essa não é a função dos militares em uma democracia.
Um comentário:
Falou tudo!
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