Perde-se aí o sentido original da prudência
política como qualidade do agir, derivada de um saber prático capaz de escolher
meios adequados a fins que nunca são absolutos, primeiro porque sua validade é
sempre discutível em sociedades onde a pluralidade é fato; segundo, porque os
movimentos que a mesma pluralidade legitima e estimula pressupõem compromisso
das partes com a conservação de um mundo comum, onde valem regras e
procedimentos desapegados dos vários fins de cada agir.
A confusão não é pouca. Sente-se no ar tanto a escassez gritante desse saber prático, quanto a indiferença para com esse déficit, decorrente da percepção resignada de que um saber virtuoso seria impotente e inócuo no mundo político real. Gradativamente a ideia de prudência política sucumbe e confunde-se com um pragmatismo escravo de vontades de uma realeza que fabrica fatos. Elites políticas são canceladas em favor de mitos-guia e partidos viram times. Alega-se, num “positivismo” tosco, que se trata de nova configuração da política. O que é mesmo novo nessa evidente regressão?
Desde que se tornou estado nacional o Brasil
é um rico laboratório para estudo dessa universal e secular contenda entre a
prudência que racionaliza a vontade e a vontade que desconsidera a prudência.
Diferente do que um raciocínio raso pode concluir, não é uma contenda entre
amantes da conservação e da mudança, entre direita e esquerda. Como sabemos, há
modos prudentes e voluntaristas de defender ou criticar uma ordem política,
resultando em diferentes modos de ser direita ou esquerda. Atitudes políticas
reacionárias e revolucionárias são exacerbações equivalentes de voluntarismo,
simétricos opostos que entram em evidente contraste com qualquer atitude
moderada.
Contudo, os extremismos não são os únicos
filhotes do voluntarismo. Se são os mais imediatamente perigosos quando, apesar
de caricatos, adquirem base social (como ocorreu no Brasil com a emergência do
bolsonarismo), combatê-los é menos complexo do que localizar voluntarismos
políticos dissimulados e alertar contra os riscos de sua imprudência, porque
esses não ousam dizer seu nome e até condenam os extremismos. Os disfarces
servem-se de crenças arraigadas na cultura política para apresentarem-se como
praticantes realistas de um ceticismo distópico que deslegitima toda política
prudencial, de vocação estratégica, como um passeio nas nuvens. Entre as
crenças sociais manipuladas pela comunicação política da antipolítica estão as
de que políticos profissionais são cupins e que não há saída para interesses
das pessoas comuns senão confiar sua salvaguarda a um chefe ou corporação que
combata essa praga. Apelando a tais crenças constrói-se e constroem-se castas,
mitos e heróis. Se todos os políticos são abomináveis, sigamos os mais
eficazes, eis a moral que emerge dessa atitude blasé.
Já se vê que o déficit de saber prudencial,
quando dissimulado, não é próprio apenas do pensamento de "esquerda
negativa", aquela que, nos termos de San Tiago Dantas, coloca o seu valor
de mudança social como política e moralmente superior a compromissos com a
coesão nacional, a manutenção do estado de direito e da democracia política,
embora possa falar a favor da última e não confesse abertamente objeção aos
dois primeiros. Ele também aparece em voluntarismos de outras cepas
ideológicas, entre as quais algumas que habitam o assim chamado - muito a
grosso modo - “campo liberal”.
A preocupação também não é de hoje. Eis
exemplos não remotos de voluntarismos políticos que não pregavam extremismo,
mas ainda assim subordinavam a questão dos meios mais adequados à primazia
substancial dos seus fins: do campo liberal (ou de alguns de seus
recantos) saiu, na década dos 70, a ideia de “extinguir” o antigo MDB ou dele
expurgar os adesistas, por se achar moralmente impossível a convivência com
eles naquele espaço, mesmo sem descuidar da luta interna. Tratava-se de atitude
seletivamente afim com posições de esquerda que, não mais defendendo a luta
armada, denunciavam, porém, o MDB como um dos partidos da ditadura e viriam a
criar o PT. Mais tarde, no mesmo campo liberal circularam teses
jurídico-politicas como a da "Constituinte exclusiva”, doutrinariamente
assentada em que nada de efetivamente democrático poderia sair de um Congresso
Constituinte, por ser ele um corpo viciado pelo auto interesse. Posição afim à
da esquerda negativa que renunciara ao extremismo, mas não ao voluntarismo. Sem
falar em críticas a "imperfeições" da lei da anistia, seja (para
alguns políticos e juristas liberais) por anistiar "crimes de sangue"
de militantes da luta armada, seja (para outros) por perdoar torturadores,
restrição também compartilhada com aquela esquerda.
Ulisses Guimarães fez, no atacado (embora
fizesse também concessões de varejo), ouvidos moucos a todos esses reclamos
saídos da sua cozinha. Por isso, pôde fazer o barco da frente democrática
navegar quando, como e por onde foi preciso. Pagou por isso alto preço pessoal,
quando precisou de torcida nas eleições de 1989 e até para conseguir sua última
reeleição à Câmara. Mas com ele a prudência venceu a batalha da transição, com
a construção de um sistema político guiado pela bússola constitucional. Evidência
dessa vitória foi o modo como, logo a seguir, o voluntarismo foi expelido do
topo do sistema. O país dividido na eleição de Collor, uniu-se, por aquela
mesma bússola, para atalhar seu mandato
Fernando Henrique Cardoso, com perfil menos
épico, foi ainda mais resoluto no tapar de ouvidos ao mal-estar tucano, devido
à aliança estratégica com o PFL. Assim conseguiu que o Plano Real não só
tivesse êxito político presencial, como adquirisse força de instituição
nacional que ainda hoje é uma referência através da qual a obra de uma geração
passada ajuda a atual a conduzir pactos que incluem as do futuro também. Mais
que pactos de governabilidade imediata (que também foram) era um pacto de
gerações, que um conservadorismo de luzes reconhece como o que sustenta uma
nação no tempo.
FHC é reconhecido por isso, assim como
Ulisses o foi pela condução da transição democrática. Assim como Ulisses, nem
ele nem seu partido tiveram apoio das torcidas pósteras de cada dia. Mas
durante seus governos a prudência venceu o voluntarismo mais difícil de
enfrentar, qual seja, aquele que se abriga em grupos moderados e até adota a
moderação como bandeira política.
Atual século adentro, a contenda continua.
Nos anos do PT no poder a prudência seguiu vencendo, a princípio. Começou a
inflexionar ainda com Lula, perdeu-se na sua própria trilha e o processo
desembocou no voluntarismo forte dos governos Dilma. A ruptura do impeachment sinalizou
novo pacto para retomar o fio condutor do plano Real. O governo Temer, tal qual
o de Itamar Franco, ergueu uma pinguela, mas dessa vez a ela não sucedeu ponte.
Outro voluntarismo, oposto simétrico ao decaído, dinamitou a passagem por onde
a prudência supostamente poderia retornar. A Lava-jato guindou o voluntarismo à
condição de catarse política e abriu a picada para a eleição de Bolsonaro. Com
ela, o acesso ao palácio não mais de um voluntarismo que, a seu modo,
assimilara a democracia. Aflorava aquela versão extremista, reacionária, bomba relógio
fácil de detectar e perigosa de desativar, o que foi consumado entre outubro de
22 e janeiro de 23. A saga é recente, todos lembramos e não faltam atores e
instituições empenhados, dia e noite, em prolongá-la, para não nos deixar
esquecer. Nem perdoar.
Arenas do embate atual
Este é um problema atualíssimo: o que fazer
com a derrota do voluntarismo da extrema-direita. A ele sucederá /está
sucedendo uma política prudencial, ou seu lugar será/está sendo ocupado por
alguma versão de voluntarismo dissimulado por alguma reputação, ou auto
qualificação, de “moderado”? O jogo do poder ainda não foi suficientemente
jogado, mas já está em pleno curso, no âmbito dos três poderes e das
corporações relevantes da República. Boa peleja, até aqui travada como luta
interna ao espaçoso governismo lato sensu que periga fazer a política
brasileira revisitar sotaques regionais da I República. A oposição é, até aqui,
em sua maior parte, inimigo comum e, noutra parte, mais invisível, coadjuvante.
Na cúpula do Legislativo, Rodrigo Pacheco e
Arthur Lira são arquétipos do prudencial e do voluntarista. O barco do
Judiciário tem adernado para o segundo polo, por invisibilidade (espera-se
momentânea) de manejo prudencial de timões, após a gestão e aposentadoria de
Rosa Weber. No governo, o contraste entre ministros é capítulo à parte. Apesar
da luta interna, movem-se todos, por ora, ao redor de Lula, como candidatos a
gênio da lâmpada de Aladim. O que não impede distinguir os arquétipos. Dentre
outros, Fernando Haddad, Camilo Santana e José Mucio estão claramente postados
no polo prudencial.
Haverá tempo, com o correr das semanas, para
justificar, além de outros, cada um desses “enquadramentos”, feitos, a
princípio, de modo arbitrário. Mas não se espere que comentários aos embates
travados pelos quadros do polo prudencial refiram-se a pelejas binárias. Os
voluntarismos que se interpõem às suas ações frequentemente formam coalizões de
veto muitas vezes por motivações ad-hoc. Vale lembrar, a esse respeito, a
múltipla pressão sofrida pela estratégia do ministro da Fazenda, vindas de
interesses da liderança da Câmara, do PT, de setores reticentes do empresariado
e de quadros técnicos e acadêmicos desenvolvimentistas, pressões que se fazem
diretamente ao ministro, ou por meio de outras pastas e órgãos do governo, ou
pelo seu próprio chefe. Na Educação, a resistência do corporativismo do
movimento docente do Ensino Médio, simultânea às críticas e pretensões das
universidades federais e de setores do empresariado, tudo isso a cobrar do
ministro mais e mais “vontade política”, na contramão dos limites prudenciais
que adota. Além desses limites, uma onda desestabilizadora vinda de setores
ruralistas tornados ou em vias de se tornarem governistas.
A questão militar
Sem espaço para desdobrar agora cada um
desses tópicos, finalizarei comentando desafios oferecidos à estratégia
prudencial do ministro da Defesa com vistas à pacificação e distensão do
ambiente das forças armadas. Por todos os ângulos que se analise, tem sido uma
estratégia claramente exitosa. Desde a operação de desmonte, iniciada antes da
posse de Lula, em entendimento com os comandos militares, dos acampamentos de
protesto contra os resultados das urnas, os quais estavam significativamente
esvaziados quando aconteceram os atos golpistas de 8 de janeiro. Igualmente
eficaz nas substituições realizadas nos comandos, as quais geraram um clima de
menos tensão e mais confiança e cooperação entre o poder civil e as corporações
militares, com subordinação das segundas ao primeiro.
A mensagem conciliadora marca um tipo de
êxito que incomoda o ânimo de voluntaristas. O afã de punir exemplarmente tanto
militares golpistas como supostos prevaricadores - o que atestaria uma
cumplicidade das forças armadas com a tentativa de golpe - difunde um tipo de
percepção que tende a confundir joio e trigo. A partir de critérios de
investigação discutíveis, a Polícia Federal induz a sociedade a pensar que os
comandantes militares poderiam ter evitado a conspiração e não o fizeram porque
eram cúmplices, ou coniventes, ou simplesmente covardes. Nessa discussão sobre
intenções, perde-se o que é objetivamente essencial, isto é, o comando do
Exército não evitou a conspiração, mas evitou o golpe. Com eficácia discreta,
sem tumultuar a eleição, que era o objetivo da extrema-direita.
É plenamente pertinente dizer que é inseguro
confiar a proteção da democracia a decisões contingentes de comandantes
militares. Eles não devem ter possibilidade de escolha. Devem ser
institucionalmente obrigados a obedecer à ordem constitucional e aos poderes
constituídos que a regulam, operam e garantem, poderes esses todos de caráter
civil, como reza o constitucionalismo liberal. Bem vindas, portanto, as
iniciativas de reformas, legislativas ou não, que assegurem essa subordinação.
Nada disso, porém, justifica que articulistas de formação liberal embarquem na
tese da prevaricação e não reconheçam como positivas condutas de quem agiu
corretamente, mesmo sob ambiguidade institucional, instabilidade e avarias na
cadeia de comando, provocadas por insídia política continuada.
Esse ângulo de argumentação vem sendo
amplamente questionado por opiniões de articulistas e especialistas acadêmicos
em assuntos militares. As objeções acenam a uma desconstrução dos objetivos da
pacificação e da conciliação, como se nelas estivesse embutido o vírus da
impunidade (o que é falso). Quanto à esquerda negativa, contrapõe a tese da
oportunidade “histórica” de um acerto de contas com o golpismo não apenas
“nas”, também “das” forças armadas. Típico argumento voluntarista pelo qual se
pretende extirpar uma atitude entranhada na nossa cultura política, como se
militares fossem ETs que se impuseram a uma sociedade democrática. Se o
golpismo pudesse ter tratamento cirúrgico, o bisturi teria que cortar muito
mais embaixo, até onde a metástase corporativa contaminou a própria sociedade.
Se não queremos nos automutilar nem descer aos infernos, a prudência sugere o
tratamento conservador do ministro Múcio. Oxalá Lula o conserve e proteja de
lógicas faxineiras (as liberais e as esquerdistas) que estão na praça num
momento em que um espírito lavajatista de sinal ideológico trocado e incitado
desde cima volta a emburrecer, politicamente, o país.
O polo prudencial tem adquirido voz no
debate. Marcelo Godoy, jornalista do Estadão, especializado no assunto, tem
escrito artigos instigantes desde o 8 de janeiro de 2023, alguns já citados
nesta coluna, como faço agora com o mais recente (“Cúpula bolsonarista tentou
dividir Exército para dar golpe, mas fracassou” – Estado São Paulo/coluna
Opinião/08.02.24). Tiberio Canuto, também jornalista e coordenador da Roda
Democrática, acaba de contribuir com um artigo interpretativo de importância
estratégica (“O inimigo do meu inimigo é meu amigo - Reflexões do cabo
conscrito Portela, 417” – Facebook / Página “Roda Democrática” - 15.02.2024),
que recebeu tratamento detido por Luiz Carlos Azedo na sua coluna
“Entrelinhas”, no Correio Braziliense e no Estado de Minas (“Preservar as
forças armadas faz bem à democracia” – 16.02.2024).
Essas vozes esperam que o presidente Lula
continue a não dar ouvidos e torne vãos os reclamos de parte de sua cozinha, a
que crê ser a muralha de aço do poder civil que exorcizará os militares da
política nacional. Se mantiver sua atual conduta, o exorcismo reclamado terá
desfecho similar ao que parte dos "autênticos' do MDB queriam fazer com os
"adesistas" ou àquele que o tucanato-raiz, de São Paulo, imaginava
fazer com o "atraso patrimonialista" de "coronéis" nordestinos
do PFL. Cabe dúvida porque se essa prudência política tiver um preço eleitoral
relevante, Lula tende a não pagar porque não aceitará tranquilamente a hipótese
de um poente eleitoral. É muito suscetível às urnas, o que, para muitos
assuntos, é uma virtude democrática, mas para "resolver" a questão
militar, decididamente não. Sem me deter nesse ponto tão subjetivo, digo apenas
que é prudente reconstruir o consenso conciliador no Brasil sem depender apenas
do tirocínio de Lula. Ao contrário, a reconstrução é, também, para conter,
monitorar e governar (ou neutralizar) esse tirocínio.
À parte esse detalhe que pode ser posto na
conta da minha rabugice, penso que a análise de Tibério Canuto ecoa - como
comentou Luiz Sergio Henriques e ele próprio confirmou - uma tradição de
esquerda positiva da qual San Tiago Dantas foi o anunciador e o comunista
prudencial, Armênio Guedes, a referência política e moral estelar. Mas o
espírito da análise revela também, acredito, uma sugestiva aproximação (por
afinidade mais do que por estratégia política comum) dessa tradição com outra,
de uma certa disposição conservadora de um iluminismo prudencial que preserva
os edifícios construídos pela experiência, da hubris reformadora de
racionalismos voluntaristas liberais.
Esse clássico contencioso político inglês -
outrora tão presente entre nossas elites e antropofagicamente metabolizado
pelas ambiguidades de Joaquim Nabuco - volta a fazer sentido hoje, quando a
sociedade civil namora o identitarismo e entrega-se a outros flertes
anti-iluministas como forma de se rebelar contra uma "modernização por
cima" da qual, ao fim e ao cabo, ela própria resulta. Modernização por
cima, nacional e estatal, que setores de esquerda (mas não só), alguns
instalados no governo com visível conforto, querem reeditar. A luta interna
travada no âmbito do governismo lato sensu transborda para a sociedade por
osmose política, como uma "briga de branco" (sem trocadilho além da
ironia).
Dois voluntarismos conspiram, em paralelo,
para interditar o caminho de uma nova sinergia entre estado e sociedade.
República platônica e democracia de mitos, quando incursionam pelo campo da
ação e interação políticas podem produzir justiça de catões e política de
aventureiros miúdos.
A questão militar pode cair nessa cilada
involuntária de infortúnios voluntaristas. Tratados como virtuais criminosos
pela PF, como réus confessos pela Justiça e como espantalhos por políticos de
parca visão, os militares não terão terceiro caminho além da rendição sem honra
ou do entrincheiramento ressentido na corporação. Dois riscos de infortúnio
grave para a República, que o saber prático latente em análises prudenciais
pode ajudar a evitar. É preciso sim, difundir e aprofundar essa visão, até ser
possível servir o resultado final em compotas, para ser consumido pela elite
política que aí está.
*Cientista político e professor da UFBa.
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