segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Camila Rocha* - Bolsonaro tentou, sim, dar um golpe

Folha de S. Paulo

Tentativa promovida pelo então presidente foi um processo e não se resume a um ato singular

No dia 12 de fevereiro, Joel Pinheiro da Fonseca, colunista da Folha que também escreve nesta seção, publicou um texto intitulado "Bolsonaro tentou ou só planejou o golpe?". Em seu entendimento, Bolsonaro teria apenas planejado, mas não tentado dar um golpe. O que confirmaria a tentativa seria a emissão do decreto golpista, preparado por Bolsonaro e seus assessores, o que não ocorreu.

Para Fonseca, "considerar uma reunião para combinar um golpe como sendo parte da execução do golpe parece uma interpretação bem exagerada e feita sob medida para condenar o alvo". Então, conclui que não seria possível punir Bolsonaro, pois a lei pune apenas a tentativa de golpe, e não seu planejamento.

No entanto, a tentativa de golpe promovida pelo então presidente e seus assessores e apoiadores em altos escalões foi um processo. Não se resume a um ato singular. Assim, a emissão do decreto pode ser interpretada como um passo decisivo neste processo ou como o próprio golpe em si. O "roteiro golpista", ou o "planejamento", como aponta Fonseca, já havia deixado o plano das ideias havia muito tempo. A referida reunião é justamente parte do processo golpista, e não um planejamento anterior.

Inúmeras ações em prol do golpe já haviam sido tomadas previamente, e, inclusive, continuaram a ser realizadas a despeito da pressão sofrida dentro e fora do país contra seu nítido caráter de atentado contra a democracia. Esse é exatamente o significado de tentar: empenhar-se em prol de um objetivo, inclusive sob condições adversas.

O articulista aponta ainda que, mesmo que fosse comprovada a tentativa de golpe, a lei condena apenas tentativas ocorridas mediante grave ameaça ou violência. Em sua visão, porém, a ideia de grave ameaça parece valer apenas para pessoas, o que não faz sentido. Afinal, não se trata de um crime comum, e sim de um golpe de Estado.

Em abril de 2021, Bolsonaro afirmou que só deixaria a Presidência se morresse. Um mês depois, no dia 6 de maio, declarou em uma live: "Vai ter voto impresso em 2022 e ponto final. Não vou nem falar mais nada. (...) Se não tiver voto impresso, sinal de que não vai ter a eleição. Acho que o recado está dado".

Em julho do mesmo ano, em um protesto, comparou seus eleitores a um Exército e disse que "eleições que não sejam limpas não são eleições". Duas semanas após a proposta de impressão do voto ter sido rejeitada pelo Congresso, em agosto de 2021, Bolsonaro declarou que só tinha três opções possíveis para o futuro: morte, prisão ou vitória. Todas estas afirmações são graves ameaças à democracia. Reiteradas mês após mês.

Finalmente, Fonseca argumenta que o ministro do STFAlexandre de Moraes, não teria sofrido grave ameaça pois não sabia que era monitorado. Em seu entendimento, "a grave ameaça depende da vítima saber que é ameaçada, de modo a mudar sua conduta por medo".

Mas então o que dizer da declaração de Bolsonaro, perante milhares de apoiadores no dia 7 de setembro, de que não cumpriria mais qualquer decisão de Moraes, vociferando: "Tem tempo ainda de arquivar seus inquéritos. Ou melhor, acabou o tempo dele. Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha"? Felizmente, Moraes não alterou sua conduta por medo.

*Doutora em ciência política pela USP e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

 

2 comentários:

Daniel disse...

Excelente resposta ao ridículo artigo de Joel Fonseca. Joel frequentemente quer se mostrar diferente, com fracas argumentações, como neste caso.

ADEMAR AMANCIO disse...

Eu gosto muito do Joel Pinheiro,mas nessa ele bobeou.