quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O espírito das leis - Luiz Carlos Azedo

- Correio Braziliense

• Foi um momento de inflexão na “judicialização” da política brasileira. O STF saiu da queda de braço entre Marco Aurélio e Renan menor do que entrou

“Dos três poderes acima mencionados, o judiciário é quase nada”, escreveu Montesquieu no Espírito das Leis, ao tratar da clássica divisão de poderes com o Executivo e o Legislativo, que perseguia um objetivo claro: a estabilidade dos governos. Segundo ele, a chave para alcançar esse objetivo era a moderação. A salomônica e “patriótica” decisão de ontem do Supremo Tribunal Federal (STF), que decidiu manter o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) na presidência do Senado, mas impedido de substituir Michel Temer como presidente da República, foi pautada pela moderação, para garantir a estabilidade política do país.

Todos os ministros concordaram que Renan está proibido de substituir Temer. Mas votaram para mantê-lo no cargo os ministros Celso de Mello, Teori Zavascki, Dias Toffoli, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski e a presidente do tribunal, Cármen Lúcia. Acompanharam o relator Marco Aurélio Mello, autor da polêmica liminar que determinara o afastamento de Renan, os ministros Edson Fachin e Rosa Weber. Gilmar Mendes, em viagem ao exterior, e Luís Roberto Barroso, que se declarou impedido de julgar, não participaram da sessão. O primeiro havia criticado duramente a decisão de Marco Aurélio; o segundo, era a favor.

Foi um gesto de humildade dos ministros evitar o agravamento da crise entre o Congresso e o Judiciário, uma vez que a Mesa do Senado havia decidido não cumprir a liminar de Marco Aurélio e Renan, num gesto condenado pelos mesmos juízes que o mantiveram no cargo. Celso de Mello, que é o ministro com mais tempo de STF, foi o primeiro a votar pela permanência de Renan. Quando isso acontece, ou seja, o decano inicia a votação, geralmente há um acordo de maioria, anterior à realização da sessão.

Celso de Mello criticou Renan por não aceitar o afastamento provisório na segunda-feira, mas também questionou a liminar de Marco Aurélio, “medida extraordinária” em meio à “gravíssima crise que atinge e assola o nosso país”. A decisão parece um samba do crioulo doido, diria Stanislaw Ponte Preta (o genial Sérgio Porto, que hoje seria chamado de homofóbico, machista e racista), mas visou restabelecer a harmonia e o equilíbrio entre os poderes.

A propósito, a harmonia entre os poderes é tão importante para a democracia como para um bom desfile na Marques de Sapucaí. Certa vez, numa reunião da Caprichosos de Pilares, o veterano carnavalesco Luís Fernando Reis resumiu o quesito em duas palavras: bom senso. Na magia do samba, harmonia significa sintonia entre o puxador do samba e os figurantes, para a escola não “atravessar” o canto; e entre a bateria e a cadência do desfile, para as alas não se dispersarem. E na política?

É mais complicado. O Supremo julgou a situação de Renan após o ministro Marco Aurélio Mello ter determinado em decisão liminar (provisória), na segunda-feira, seu afastamento do cargo e ser duramente criticado por políticos e pelo ministro Gilmar Mendes. Com apoio da Mesa Diretora do Senado, Renan recusou a ordem judicial e ficou à espera de decisão final do Supremo. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, queria que o STF mantivesse a decisão. Marco Aurélio, no julgamento, chegou a dizer que não afastar Renan seria um “deboche institucional’ e a atitude de Renan de não aceitar uma ordem judicial, “intolerável, grotesca”.

Constrangimento
O voto de Celso de Mello, porém, foi mesmo salomônico: “Os agentes públicos que detêm as titularidades funcionais que os habilitam constitucionalmente a substituir o chefe do Poder Executivo da União, em caráter eventual, caso tornados réus criminais perante esta Corte, não ficarão afastados dos cargos de direção que exercem na Câmara, no Senado ou no Supremo Tribunal Federal. Na realidade, apenas sofrerão interdição para exercício do ofício eventual e temporário de presidente da República”. Renan Calheiros trucou e levou.

A nota que divulgou após a decisão foi um gesto de falsa humildade. As declarações da presidente do Supremo, Cármem Lúcia, ao final do julgamento, revelam constrangimento criado por Renan, que pôs uma saia justa no Supremo: “Ordem judicial há de ser cumprida. E há de ser cumprida para que a gente tenha a ordem jurídica prevalecendo e não o voluntarismo de quem quer que seja. Ordem judicial pode ser discutida, é discutida, há recursos – e no Brasil, excesso de recursos – para que isso possa acontecer.”

A decisão de ontem foi um momento de inflexão na chamada “judicialização” da política brasileira. O federalista Alexander Hamilton (1755-1804), um dos pais da Constituição norte-americana, a propósito da citação de Montesquieu que abre a coluna, dizia que “o judiciário é, sem comparação, o mais fraco dos três poderes; que nunca poderá enfrentar com êxito qualquer um dos outros dois; e que deve tomar todas as precauções possíveis para defender-se dos ataques deles”. O STF saiu dessa queda de braço entre Marco Aurélio e Renan muito menor do que entrou.

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