sexta-feira, 4 de maio de 2018

Almir Pazzianotto Pinto*: A Carta de 1937 e o duplo grau de jurisdição

- O Estado de S.Paulo

É necessário eliminar o recurso especial de decisões proferidas por Tribunais de Justiça

A Carta Constitucional de 10 de novembro de 1937, redigida por Francisco Campos por determinação de Getúlio Vargas para justificar a implantação da ditadura do Estado Novo (1937-1945), pertence à esfera da ficção jurídica. Como disse o autor em entrevista, o documento nunca foi posto à prova, ficando “em suspenso desde o dia da sua outorga”. De valor exclusivamente histórico, segundo Francisco Campos, “entrou para o imenso material que, tendo sido ou podendo ser jurídico, deixou de o ser ou não chegou a ser jurídico por não haver adquirido ou perdido vigência”.

E inegável, porém, que a Carta de 1937 serviu de lastro a boas codificações, como o Código de Processo Civil de 1939, o Código Penal de 1940, o Código de Processo Penal de 1941, a Lei de Introdução ao Código Civil de 1942 e a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943, baixados mediante decretos-leis.

Segundo a Carta, o Poder Judiciário era integrado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), juízes e tribunais dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, e juízes e tribunais militares (artigo 90). A existência de Tribunais de Apelação estaduais completava a tripartição dos Poderes dos Estados-membros dos Estados Unidos do Brasil. Prescrevia a Norma autoritária que cada Estado decretaria a própria Constituição e, no papel, disporia de Poder Legislativo, de Poder Executivo e de Poder Judiciário composto por juízes de Direito e Tribunal de Apelação, mais tarde denominado Tribunal de Justiça (artigos 3.º, 21, 50, 90).

Da decisão do juiz de Direito ou proferida pelo Tribunal do Júri caberia recurso de apelação (Código de Processo Penal, artigo 593). A sentença condenatória de primeiro grau, mesmo recorrível, teria dupla consequência, “ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança” e “ser o nome do réu lançado no rol dos culpados” (artigo 393). Por determinação do código, o réu não poderia “apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança”, salvo se fosse “primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto” (artigo 594).

A Constituição de 1946 preservou o STF, os juízes e tribunais militares e a Justiça dos Estados, mas criou o Tribunal Federal de Recursos (TFR), juízes e Tribunais Eleitorais e os juízes e Tribunais do Trabalho (artigo 94). Ao TFR competia o julgamento de mandados de segurança quando a autoridade coatora fosse ministro de Estado, o próprio tribunal ou o seu presidente e, em grau de recurso, causas decididas em primeira instância quando a União fosse interessada como autora, ré, assistente ou opoente, exceto nas de falência; ou tratando-se de crimes cometidos em detrimento de bens, serviço, ou dos interesses da União (artigo 104).

Fernando Gabeira*: Grande problema, grande cidade

- O Estado de S.Paulo

Por que tragédias num lugar que pode ser um dos mais atraentes da metrópole?

Passei uma semana no centro de São Paulo, antes da queda do prédio de 24 andares no Largo do Paiçandu. Meu foco era a Cracolândia, mas não deixei de registrar a grande presença de moradores de rua, cerca de 25 mil na cidade, e os prédios ocupados pelos movimentos de sem-teto.

Um deles me impressionou. Tinha 20 andares, a pintura encardida e cortinas rosa, vermelhas, verdes, algumas improvisadas com papelão. A imagem me levou a alguns minutos de contemplação.

Um funcionário da Secretaria de Habitação me informou que havia negociações em curso para comprá-lo e achar uma saída, antes que as coisas ficassem mais graves. Um prédio com as mesmas características pegou fogo e desabou. Havia negociações em curso.

Como entendo pouco do tema, procurei saber algo mais com os atores envolvidos. Supunha que divergências ideológicas estivessem travando soluções de consenso. Saí de São Paulo com uma sensação de que o problema é tão complexo que o ideal seria definir pontos de convergência e tentar algumas soluções, inclusive para a Cracolândia.

José de Souza Martins: Previdência de criança

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Em decisão válida para todo o país, o Tribunal Federal de Recursos da 4ª Região (Porto Alegre) determinou que se inclua no cálculo da aposentadoria o trabalho infantil, caso daqueles que já trabalhavam quando chegaram à idade mínima prevista em lei para seu ingresso na força de trabalho. É aquele período em que os idosos de hoje trabalharam em vez de brincar e de estudar, forçados a ser adultos antes do tempo. Não reconhecer o trabalho como trabalho só porque o trabalhador é criança constitui violência e usurpação de direitos.

Muitos temem que esse justo reconhecimento vá danificar a engenharia econômica atual, que arquiteta o encolhimento dos direitos dos que tendo trabalhado a vida inteira tentam agora ter em velhice digna o que lhes foi tirado sob forma de infância indigna e imprópria. São aqueles que, ainda crianças, não pagaram a contribuição previdenciária porque o próprio sistema econômico os privou de meios para tanto.

A história do trabalho infantil, no Brasil, porém, é uma história contínua de injustiças e de lesão dos direitos dos imaturos. Que, no fim das contas, oneram o conjunto da economia. Reformas como a da Previdência, enquanto reforma atuarial e não como reforma social, empurram para a vítima os custos de problemas que não foram criados por ela.

Merval Pereira: Avanço republicano

- O Globo

O fim do foro privilegiado de deputados e senadores por unanimidade mostra que, apesar das diferenças de visão, o Supremo Tribunal Federal tem uma posição firme sobre o assunto, variando apenas a maneira de aplicar a decisão. Mesmo que os ministros que eram contra a proposta tenham aderido a ela apenas diante do fato consumado.

Quatro dos onze ministros ficaram vencidos na proposta de Alexandre de Moraes, que previa que o foro privilegiado seria mantido para os parlamentares durante o mandato, não importando que o crime tivesse sido cometido sem ligação com sua atuação parlamentar.

Mesmo assim, a proposta era um avanço, pois os parlamentares poderiam ser julgados por crimes passados, o que hoje não acontece. A maioria do Supremo decidiu, no entanto, avançar mais, e o foro só valerá para crimes cometidos no mandato e em função dele.

O recebimento de propina na campanha eleitoral, por exemplo, será julgado na primeira instância, pois o candidato não tem foro privilegiado. O interessante é que essa maioria de 7 a 4 está prevalecendo nas recentes decisões do STF, mas a composição da maioria não se repete.

Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes têm votado em bloco, enquanto os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Cármen Lúcia votam geralmente com a mesma posição. Os ministros Alexandre de Moraes, Celso de Mello e Rosa Weber são os swing votes, isto é, votos que podem ajudar a formar a maioria, sem tendência fixa.

Mas os ministros que hoje fazem a maioria na Segunda Turma, deixando quase sempre em minoria o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, e, em alguns casos, o decano Celso de Mello, raramente têm tido a maioria no plenário.

Eliane Cantanhêde: Fim do foro, fim da festa?

- O Estado de S.Paulo

Restrição ao foro foi grande passo, mas as dúvidas são muitas e vão durar

Ao restringir o foro privilegiado para senadores e deputados federais apenas por crimes cometidos durante o mandato e relativos a ele, o Supremo quebrou um paradigma, abriu uma ampla avenida para derrubar o foro de demais autoridades e lavou a alma da opinião pública. Mas isso é só o começo.

Depois da sessão, perguntei à presidente Carmen Lúcia quando a mudança vai começar na prática: “Imediatamente”, ela respondeu, sem titubear. E pode ser hoje. As dúvidas, porém, são muitas:

1) O próprio STF terá de avaliar, caso a caso, o que é e o que não é crime relativo ao mandato. Receber propina para votar um projeto, evidentemente, é. O marido bater na mulher, ao contrário, não tem nenhuma relação com a função. E quando o deputado dá um tapa na cara de alguém num evento político, como aconteceu no Pará?

2) Após a decisão do STF, os advogados vão avaliar se é melhor para o réu ficar no STF ou ir para a primeira instância. E vem a maratona de recursos, numa direção ou outra. Quanto tempo isso dará ao réu e quanta energia tomará do ministro e de uma turma do STF?

2) Não haverá mudança de instância após a instrução do processo – quando o ministro dá prazo às partes para alegações finais –, pelo princípio da “prorrogação de competência”. Afinal, o juiz que acompanha um caso, ouve acusação e defesa e conhece as provas é o mais apto para proferir a sentença. Então, dois casos semelhantes poderão ter destinos diferentes por questão de timing. Um ficará no STF, outro irá para a primeira instância. Uma confusão.

Maria Cristina Fernandes: Os atropelos da história empurrada

Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Livro reproduz debate em torno da tese de Luiz Roberto Barroso de que, face a a um processo político paralisado, cabe ao Judiciário assegurar a vontade da maioria

Oscar Vilhena jantava sozinho num restaurante em Londres na primavera de 2015 quando uma mensagem de Luis Roberto Barroso entrou em sua caixa postal. Em anexo, o ministro submetia o artigo de 52 páginas ("A Razão sem Voto: o Supremo Tribunal Federal e o Governo da Maioria") ao seu crivo. Barroso, professor de direito na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, queria publicá-lo na revista da escola de direito da Fundação Getúlio Vargas.

"O que acha?", perguntou o ministro ao amigo, hoje diretor da escola. A resposta não era fácil. Autor da tese da supremocracia, com a qual reconhece os poderes exacerbados da Corte, mas os atribui às ambições do texto, Vilhena tem intimidade com as provocações de Barroso, a quem chama de Luís.

Desde a publicação de sua tese de livre-docência ("O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas"), logo depois da Constituinte de 1988, Barroso se tornara um dos expoentes em defesa do que o diretor da FGV chama de direito responsivo - "ativista é pejorativo".

Fizera-se conhecido pela tese de que é preciso dar mais eficácia à pretensão constituinte de mudança social. Aquele artigo, porém, parecia ir além. Nele, a vanguarda iluminista do colega adquiriu luzes de neon e, certamente, encandiaria o debate acadêmico.

No texto, Barroso se valeria da clareza habitual de seus votos, com citações ao alcance do leitor leigo - "A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará a seu tamanho normal" (Albert Einstein) ou "creia nos que procuram a verdade, duvide dos que a encontraram" (Andre Gide).

A linguagem, sem rodeios, não permitia dúvidas sobre onde pretendia chegar. Ministro havia três anos do Supremo, Barroso parecia ter ido longe demais. Sustenta que o processo político está paralisado e cabe ao Supremo assegurar a vontade da maioria, tese que põe em xeque as bases da separação e do equilíbrio entre os Poderes.

Hélio Schwartsman: Ideias verdes incolores

- Folha de S. Paulo

O que quer que Lula tenha feito de bom para o país não o autoriza a infringir a lei

“Colorless green ideas sleep furiously” (ideias verdes incolores dormem furiosamente) é o exemplo clássico de Noam Chomsky para mostrar que uma frase pode ser gramaticalmente correta, mas não possuir qualquer sentido semântico.

O genial linguista americano o concebeu com o intuito de mostrar que os modelos que explicam a linguagem em termos de relações probabilísticas entre palavras não funcionam. Para ele, é preciso recorrer a esquemas mais estruturados, nos quais a gramática desempenha papel central. Esse é um “hot topic” da ciência e costuma opor linguistas (em geral alinhados a Chomsky) a neurocientistas (que tendem a favorecer os modelos probabilísticos).

Na entrevista que deu à Folha, Chomsky sustenta que Lula está presoinjustamente, mas que o PT sucumbiu à corrupção. Desconfio que haja algo de ideias verdes incolores aqui.

No plano sintático, é possível afirmar simultaneamente que Lula é perseguido e que o PT “se lambuzou”, para tomar emprestada a feliz expressão do petista Jaques Wagner. Mas, quando analisamos o conteúdo semântico dessas declarações, os problemas aparecem.

Se o PT sucumbiu à corrupção, ou seus dirigentes toleraram esse comportamento, ou ignoravam o que se passava à sua volta, ou participaram da farra. Em nenhuma delas dá para exculpar Lula, e, para piorar sua situação, todos os indícios apontam para a terceira alternativa, que é a mais grave delas.

Murillo de Aragão: A Novidade da Vez

- Blog do Noblat | Veja

A pré-campanha eleitoral tem se caracterizado pelo surgimento de pré-candidatos que aparecem e desaparecem. São novidades de temporada. Alguns ficam, como Jair Bolsonaro e sua incírivel resiliência. Outros como João Dória e Luciano Huck passaram como cometas e desaparecerem no firmamento da sucessão presidencial.

A novidade da vez é Joaquim Barbosa. O ex-ministro do Supremo Tribunal Federal só não deve ser o candidato do PSB à Presidência da República se não quiser. Essa é a opinião de mais de uma dezena de parlamentares do partido ouvidos pela Arko Advice na última semana.

Hoje, entre os congressistas, praticamente não há vetos à sua candidatura. As resistências na legenda ao nome de Barbosa foram reduzidas sensivelmente após a divulgação de pesquisas de intenção de voto em que ele aparece bem posicionado (entre 8% e 10%, dependendo do cenário).

Os resultados incentivaram a pretensão da cúpula partidária de lançar a candidatura. Vários parlamentares veem grande potencial de crescimento futuro, a ponto de projetarem o candidato socialista já no segundo turno da eleição presidencial.

De acordo com alguns, há análises internas apontando que uma parcela significativa do eleitorado ainda não associa o nome de Barbosa à sua figura pública. Mas, ainda conforme essas análises, quando isso ocorrer e o ex-ministro assumir, de fato, a candidatura poderá deslanchar nas pesquisas.

A visão dos correligionários é de que Barbosa conjuga a imagem do homem ficha limpa, comprometido com o combate à corrupção e a seriedade na gestão pública, com a do cidadão negro de origem humilde que venceu na vida e está preocupado com as questões sociais no país.

As políticas de alianças regionais, principal argumento contrário à candidatura presidencial socialista, podem não ser ser empecilho. Há focos muitos pontuais de resistência. Em Pernambuco e na Paraíba, os governadores Paulo Câmara e Ricardo Coutinho trabalham para ter o PT em suas coligações, e uma candidatura nacional dificultaria essas costuras locais. O governador paulista Márcio França, contudo, já estaria avaliando apoiar Barbosa por entender que tal gesto poderia agregar mais a seu projeto de reeleição do que se apoiar Geraldo Alckmin (PSDB).

César Felício: Tragicomédia em mais de um ato

- Valor Econômico

Eleições deste ano vivem o risco da ilegitimidade

Na peça "Dom Juan", uma espécie de anti-personagem domina a cena e traça o destino do protagonista. Em um jantar promovido por Dom Juan, aparece o convidado de pedra, um fantasma de uma pessoa assassinada tempos atrás pelo anfitrião. Ao término da peça, o vilão é tragado pelo abismo. O convidado de pedra, que antes do desfecho oferecera a Dom Juan a possibilidade do arrependimento, está ali a mostrar o verdadeiro significado da vida de crimes do protagonista aos comensais. Chega como convidado para acabar com a festa.

O PT ameaça encenar esta peça este ano, seguindo por uma trilha já aberta por diversos precedentes no tempo e no espaço. Introduzir na eleição um fator disruptivo que deslegitima todo o processo.

A maneira mais extrema de se conseguir isso é a de apresentar a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para que ela seja declarada inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em pleno processo sucessório.

Nesta estratégia, a forma mais ardilosa de causar o maior dano possível ao processo seria a de registrar um preposto de Lula como candidato no dia 15 de agosto, o último dia legal para registro da candidatura. E vinte dias antes da eleição, no momento final para modificação de chapa, retirar o preposto e substitui-lo pelo ex-presidente condenado.

Em menos de três semanas, dificilmente o TSE teria como examinar a ilegalidade da candidatura de Lula antes do primeiro turno das eleições presidenciais. A cassação da candidatura de Lula aconteceria neste caso provavelmente entre o primeiro e o segundo turno da eleição presidencial, mergulhando a sucessão no caos.

Rogério Furquim Werneck: Chegar a outubro

- O Estado de S. Paulo

Há profusão de propostas de armações fiscais prontas para serem impostas a governo que se mostra cada vez mais frágil

A esperança de que o vigor da recuperação da economia pudesse ter efeito favorável sobre a evolução do quadro eleitoral vem se mostrando infundada. Na verdade, o que se observa no momento é justo o contrário: a prolongada indefinição do quadro eleitoral vem tendo efeito adverso sobre o vigor da recuperação. As expectativas de crescimento do PIB, em 2018, vêm sendo rapidamente revisadas para baixo. A expansão de 3%, que parecia crível em janeiro, já passou a ser considerada irrealista.

Com o país já a quase cinco meses das eleições e ainda em meio a tanta incerteza acerca do desfecho da disputa presidencial, a apreensão com a insustentabilidade do quadro fiscal tornou-se muito mais incômoda. Já não pode ser tão facilmente descartada com base na velha alegação escapista de que ainda há tempo de sobra para se equacionar o problema e que, de uma maneira ou de outra, a crise fiscal acabará superada. Não chega a ser uma surpresa que, nessas circunstâncias, a retomada dos investimentos, e até do consumo, continue em boa parte entravada.

É reconfortante que a saída de Henrique Meirelles da Fazenda, num momento em que o presidente passou a enfrentar novo processo de fragilização, não tenha dado ensejo a enfraquecimento da equipe econômica. Muito pelo contrário. Por paradoxal que possa parecer, a equipe se fortaleceu. A nova escalação da Fazenda é o melhor seguro com que agora conta o país para continuar a crer que as contas públicas permanecerão sob relativo controle até o final do ano.

Mas não há como ter ilusões. O jogo mudou. Tudo indica que o governo não conseguirá entregar a maior parte das 15 medidas alardeadas em fevereiro que, mesmo sem a reforma da Previdência, supostamente dariam força ao círculo virtuoso que se vislumbrava no final do ano passado. Assediado de novo pelo Ministério Público e fadado a perder boa parte do escasso capital político que ainda lhe resta, o presidente parece já não nutrir fantasias sobre o que o final do mandato lhe reserva. A agenda do Executivo com o Congresso passou a ter caráter essencialmente defensivo: proteger a retaguarda do presidente, no seu embate com o Ministério Público, e evitar a aprovação de medidas que tornem o quadro fiscal ainda mais difícil do que já é.

Míriam Leitão: Cenário econômico

- O Globo

A produção industrial de março caiu 0,1%, quando a expectativa geral era de alta de 0,5%. Isso já virou rotina, os indicadores deste ano têm sido sempre piores do que o esperado. Há diversas razões para isso, mas os economistas ainda acham que a queda da taxa de juros acabará fortalecendo a retomada da economia. A alta do dólar não assusta os especialistas, porque o governo não tem passivo externo, ele é credor.

Fernando Honorato, economista-chefe do Bradesco, acha que isso muda totalmente a situação em relação a outros momentos em que, por estresse político, o dólar subia. Ele acha que a volatilidade de agora não se deve à questão interna. O economista José Márcio Camargo, da Opus Investimento, também acha que o dólar ficará instável no segundo semestre pelas eleições, e que agora o movimento se deve à questão internacional. Mas também ele não está preocupado com a alta recente da moeda americana. Acha que é natural porque o real estava valorizado.

Entrevistei os dois ontem na GloboNews sobre a conjuntura econômica. O Bradesco reduziu a previsão de crescimento do PIB de 2,8% para 2,5%. José Márcio tinha uma projeção mais otimista, acreditava num PIB de 3,8%. Agora também acha que será bem menos. Disse que seu cenário otimista partia da hipótese de aprovação da reforma da Previdência. Como não foi aprovada, o grau de incerteza nas contas públicas ficou muito maior.

Em outras eleições em que o dólar subiu em cenários de incerteza econômica, a situação das contas externas era bem pior. Fernando Honorato explica com números.

— A dívida externa das empresas privadas é normal, e elas resolvem isso com hedge. O país como um todo tem dívida externa, mas o governo é credor. Os números são os seguintes: a dívida externa do país hoje é US$ 313 bilhões mais os US$ 235 bilhões de dívida intercompanhias, mas esta não produz estresse porque é uma empresa devendo à sua matriz. De toda essa dívida, apenas US$ 72 bilhões são do governo central, que tem também os US$ 380 bilhões das reservas, por isso é credor — me disse o economista, numa entrevista após o programa.

Há um fator perturbador na conjuntura internacional, que está afetando o mercado de moedas, que é a crise entre EUA e China. José Márcio acha que este ponto é mais grave do que está sendo entendido.

— Acabei de voltar de uma viagem aos Estados Unidos e a percepção geral, não só dentro do governo americano, mas entre economistas e leigos, é que os chineses são desonestos do ponto de vista das relações comerciais com outros países. Trump é uma consequência desse sentimento. Existe uma percepção de que a China está em busca de hegemonia econômica e política no mundo. Esse conflito é mais sério do que uma guerra comercial.

Esse cenário torna o mundo potencialmente mais instável. Fernando Honorato também acha que a política de Trump é a causa hoje da instabilidade do dólar.

— A gente está tentando monitorar de onde vem essa volatilidade. Tem dois aspectos cruciais. Primeiro a política econômica dos EUA. Trump está fazendo uma série de medidas protecionistas, fechando uma economia com pleno emprego, e isso gera inflação. Na frente interna, acho que se deu pouca importância ao diferencial de juros. Diante da nossa incerteza fiscal, o diferencial de juros não paga o risco de manter recursos no Brasil.

Sobre o mercado de trabalho, José Márcio chama a atenção de que a Pnad, por ser uma média móvel, muda mais devagar do que o Caged que é mensal.

— No primeiro trimestre desse ano, pelo Caged foram gerados 200 mil empregos formais, e pela Pnad foram destruídos 400 mil empregos. Tem um problema aí, é que a Pnad carrega o número ruim por mais tempo porque é trimestral.

Fernando Honorato diz que no Departamento Econômico do Bradesco calcula-se que este ano serão criados entre 500 mil e 700 mil empregos formais.

— Ninguém está comemorando esse nível de desemprego. Ele está super elevado e ainda há o fenômeno do desalento.

A Selic e a inflação devem continuar muito baixas, segundo os economistas, e os juros menores vão elevar o ritmo de crescimento a médio prazo. O ritmo dependerá do cenário fiscal do país, que está ligado ao resultado das eleições.

Claudia Safatle: O cipoal jurídico em que se enredou o Brasil

- Valor Econômico

Há 25 mil projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional

O Brasil tem 180 mil leis federais, 80 milhões de processos em tramitação e 5,5 milhões de normas legais nos três níveis de governo (Federal, Estadual e municipal). A Constituição de 1988, com seus 250 artigos e 114 Disposições Transitórias, já teve 99 emendas.

No mapa estratégico da indústria, elaborado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) para o período de 2018 a 2022, um dos objetivos é melhorar a segurança jurídica. A meta é pelo menos interromper o crescimento de 4,5% (média dos últimos cinco anos) de normas editadas a cada ano, congelando o estoque atual de 5,5 milhões.

Se a quantidade de leis que regulam a vida do cidadão e das empresas é espantosa, a baixa qualidade é estarrecedora. Em sua grande maioria, são textos ambíguos, que reforçam a insegurança jurídica.

Nenhum brasileiro pode alegar, em sua defesa, o desconhecimento da lei. Mas é impossível a um cidadão saber se está cumprindo as 180 mil determinações legais emanadas do poder federal.

Segundo dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), uma boa parte do estoque de normas existentes no país se relaciona a temas tributários. Estes são uma verdadeira metamorfose ambulante.

Na semana passada, um diálogo entre o presidente do Chile, Sebastián Piñera, e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) foi ilustrativo e chegou a causar certo embaraço.

"Quando a Suprema Corte falha, a quem se recorre?", perguntou Piñera à presidente do STF, ministra Cármen Lúcia. Ela e o ministro Edson Fachin, também presente ao encontro, responderam que não cabe recurso a uma decisão do STF.

"Então cabe a Deus?", insistiu Piñera, que estava em visita oficial.

Fachin completou: "A última palavra, no sentido amplo e largo, é da sociedade".

Piñera contou que assiste julgamentos do STF que são transmitidos pela TV do Chile e quis saber, então, se a sociedade poderia revogar uma decisão do Supremo. Os ministros responderam que não.

STF restringe foro para políticos e Câmara reage

Judiciário. Supremo reduz o alcance da prerrogativa para deputados e senadores; parlamentares da base e da oposição cobram ampliação da decisão para todas autoridades

Amanda Pupo Rafael Moraes Moura / O Estado de S. Paulo.

BRASÍLIA - O STF reduziu o alcance do foro privilegiado para deputados e senadores. A prerrogativa dos parlamentares só vale para crimes cometidos no exercício do mandato e em função do cargo. A medida provocou reação. Partidos querem aprovar projetos que retiram o foro das demais autoridades, inclusive membros do Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal decidiu ontem reduzir o alcance do foro privilegiado para deputados federais e senadores. Por 7 votos a 4, os ministros estabeleceram que a prerrogativa dos parlamentares da Câmara e do Senado só vale para crimes cometidos no exercício do mandato e em função do cargo, conforme defendido pelo ministro Luís Roberto Barroso, relator do caso na Corte.

A decisão do Supremo provocou uma reação no Congresso, de partidos da oposição e da situação. Deputados e senadores querem levar adiante projetos que retiram o foro privilegiado das demais autoridades preservadas na decisão da Corte, inclusive os membros do Judiciário.

De acordo com cálculos do Supremo, tramitam na Corte 399 inquéritos e 86 ações penais contra autoridades – a maioria envolve parlamentares. Ainda não se sabe, porém, quantos processos devem ser remetidos para outras instâncias depois da decisão de ontem.

Barroso admitiu que “muitas situações ficaram em aberto”, o que levará o tribunal a ser provocado para responder a questionamentos que surgirem. “O foro deve ser repensado de alto a baixo. A ideia de que regime de privilégios não é bom irá se espraiar na sociedade. Acho que a matéria vai voltar para cá (Supremo)”, disse Barroso após a conclusão do julgamento.

No Brasil, segundo estudo da Consultoria Legislativa do Senado, existem, atualmente, 38,4 mil autoridades com foro privilegiado previsto na Constituição Federal, entre as quais estão os 513 deputados e os 81 senadores atingidos pela decisão do Supremo de ontem.

Parlamentares querem estender decisão

Deputados e senadores da base e da oposição se unem para ampliar fim do foro a mais autoridades, incluindo também o Poder Judiciário

Felipe Frazão, Julia Lindner, Igor Gadelha e Daiene Cardoso | O Estado de S. Paulo.

Logo após o Supremo Tribunal Federal restringir o foro privilegiado para parlamentares, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), mandou instalar a comissão especial que vai analisar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sobre o tema, parada desde o fim do ano passado, quando foi aprovada na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ). A norma já havia sido aprovada no Senado. A reunião de instalação da comissão especial deve ocorrer na próxima quarta-feira.

Um dos entraves à PEC é a impossibilidade de alteração da Constituição enquanto vigorar a intervenção federal na segurança pública do Rio, cujo decreto vence no fim do ano.

Segundo o deputado Efraim Filho (DEM-PB), que relatou a PEC na CCJ, o STF agiu porque o Legislativo demorou a tratar do tema. “A Câmara não pode reclamar daquilo que não ajudou a construir. A decisão do STF foi fruto da inércia do Poder Legislativo. O foro privilegiado é um instrumento obsoleto que transmite mensagem de impunidade e blindagem à corrupção”, disse o parlamentar ao Estadão/Broadcast.

Mesmo com a decisão do STF, Efraim afirmou que a PEC da Câmara não perde sentido, pois amplia o alcance da decisão da Corte para acabar com a prerrogativa nos três Poderes. “As autoridades do Judiciário e do Executivo não são diferentes do Legislativo. Devemos lutar para fazer valer o artigo 5.° da Constituição Federal, todos devem der iguais perante a lei.”

O líder do PT na Câmara, deputado Paulo Pimenta (RS), disse que o partido é favorável à revisão do foro, mas entende que o Supremo foi seletivo ao restringir apenas aos parlamentares. Ele assegurou apoio da bancada à ampliação do rol de autoridades sem foro e disse que o Judiciário agiu contra a classe política como numa “ditadura da toga”.

Supremo restringe foro especial de parlamentares

Por Maíra Magro e Luísa Martins | Valor Econômico

BRASÍLIA - O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por 7 votos a 4, restringir o foro privilegiado de parlamentares aos crimes cometidos durante o mandato e em razão dele. A decisão, histórica, terá impacto direto na forma de processar e julgar políticos acusados de crimes. Com o voto do ministro Gilmar Mendes, a Corte concluiu ontem o julgamento iniciado em 31 de maio do ano passado, envolvendo uma questão de ordem feita dentro de uma ação penal contra um ex-deputado.

Todos os ministros votaram por restringir o foro especial aos crimes cometidos durante o mandato. Esse período passa a ser contado a partir do exercício da função. Ou seja, se um deputado ou senador cometer um crime antes de exercer o cargo, ele será julgado por um juiz de primeiro grau, como qualquer cidadão.

Para crimes cometidos durante a função, o caso só será remetido à primeira instância quando o mandato terminar, a não ser que o processo já esteja prestes a ser julgado (na fase de alegações finais), situação em que permanecerá no Supremo. Atualmente, parlamentares são sempre julgados pelo STF, mesmo para crimes anteriores ao cargo.

Apesar da unanimidade pela restrição do foro, houve divergência quanto a sua extensão. Para a corrente vencedora, só os crimes cometidos em razão do exercício do mandato serão processados e julgados no STF. Crimes comuns, como agressão ou extorsão, serão remetidos ao primeiro grau. A solução foi proposta pelo relator, Luís Roberto Barroso, acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio, Celso de Mello e a presidente da Corte, Cármen Lúcia.

Do lado vencido, quatro ministros defenderam uma mudança mais branda, pela qual todos os crimes cometidos durante o mandato - estando ou não relacionados a ele - ficariam no STF. A ideia partiu do ministro Alexandre de Moraes, que nesse ponto foi acompanhado por Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.

Políticos pedem fim do privilégio para todos e Maia instala comissão

Por Fabio Murakawa, Marcelo Ribeiro e Vandson Lima | Valor Econômico

BRASÍLIA - Políticos de diversos partidos defenderam ontem a extinção do foro privilegiado para todas as autoridades, após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que impôs apenas a deputados e senadores restrições ao privilégio. Terminado o julgamento, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), determinou a instalação da comissão especial para analisar a proposta de emenda constitucional (PEC) que prevê o fim do foro por prerrogativa de função também para os demais beneficiados.

Aprovada no ano passado pelo Senado, a PEC aguardava a indicação dos membros pelos líderes partidários da Câmara para que a comissão especial fosse instalada. Apesar disso, a proposta não pode ser votada em plenário enquanto durar a intervenção militar no Rio, prevista para terminar em 31 de dezembro - um veto imposto pela Constituição.

No ato que determina a formação da comissão especial, Maia estabelece a eleição do presidente do colegiado e escolha o relator do projeto na próxima quarta-feira, 9 de maio. Os mais cotados para as funções são os deputados Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Efraim Filho (DEM-PB), respectivamente.

Presidente do Senado, Eunício Oliveira (MDB-CE) disse ontem ser favorável à extinção do foro privilegiado para todas as mais de 50 mil pessoas que desfrutam desse privilégio no Brasil. Para ele, porém, as autoridades deveriam ter um "foro centralizado" para que não sejam alvo de ações espalhadas pelo país.

Pré-candidatos à Presidência, Álvaro Dias (Pode) e Marina Silva (Rede) também defenderam que o fim do foro se estenda às demais esferas do serviço público.

Marina classificou a decisão do Supremo como "um passo importante, mas ainda insuficiente para o fim da impunidade". "É fundamental acabar com esse privilégio para todos os políticos e autoridades públicas, além de combiná-lo com a prisão em segunda instância", disse em sua conta no Twitter.

Já Álvaro Dias afirmou "o foro só terá fim quando a Câmara deliberar sobre a PEC". "A partir daí, sim, teremos a inauguração de uma nova Justiça no País com todos iguais perante a lei. Enquanto isso não ocorrer continuamos com a mesma sensação de seletividade."

STF restringe foro a crimes cometidos no mandato

Apenas deputados federais e senadores são atingidos pela nova medida

Congressistas só serão processados no Supremo por fatos relacionados ao mandato, durante exercício do cargo. Casos de Aécio Neves e Fernando Bezerra serão enviados à primeira instância

Em decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu o foro privilegiado para deputados federais e senadores, que só serão processados na Corte quando investigados por crimes relacionados ao mandato, durante o exercício do cargo. Entre os casos que serão enviados à primeira instância estão os dos senadores Aécio Neves e Fernando Bezerra. Autor da proposta aprovada, o ministro Luís Roberto Barroso disse que a decisão é “simbolicamente importante” por limitar um regime de privilégio, mas que “há muitas situações em aberto”. Não se sabe ainda o número de processos que serão afetados. Dos 21 inquéritos da Lava-Jato e seus desdobramentos no STF, dez devem ficar na Corte, dez geram dúvidas e um deverá ser baixado.

Foro limitado

Só serão julgados pelo STF crimes cometidos durante o mandato e relacionados ao cargo

Carolina Brígido, André de Souza, Eduardo Bresciani | O Globo

-BRASÍLIA- Por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal(STF) decidiu ontem restringir o foro privilegia dopara deputados e senadores. E por maioria devotos (7 a 4) ficou defini do que só serão processados na Corte os parlamentares investigados por fatos relacionados ao mandato, cometidos durante o exercício do cargo. A decisão vai provocara transferência de inquéritos e ações penais para a primeira instância do Judiciário.

Ainda não há um levantamento de quantos processos serão afetados, até porque muitas situações, segundo o próprio autor da proposta, o ministro Luís Roberto Barroso, continuam em aberto. Ele reconheceu que, em alguns casos, será difícil definir se o crime cometido durante o mandato tem ou não relação com o exercício do cargo. Entre os 21 inquéritos com denúncia e ações penais que integram a Lava-Jato e seus desdobramentos no STF, dez devem permanecer na Corte, dez geram dúvidas sobre qual será seu destino e apenas um deve descer. Barroso destacou a importância de decisão: — É uma decisão simbolicamente importante porque ajuda a restringir um regime de privilégio em um momento em que a sociedade brasileira tem uma grande demanda por republicanismo e igualdade.

O ministro afirmou que cada caso terá de ser analisado por seu relatora partir doque foi definido no julgamento.

— Há muitas situações em aberto. É um princípio geral que estabelecemos. É preciso que venham outros casos com suas peculiaridades para que se possa definir cada situação. Você vai ter certezas negativas (sem ligação com o mandato). Por exemplo, um atrito com um vizinho. E vai ter certezas positivas (ligação com o mandato), como uma propina para aprovar uma medida provisória — disse Barroso.

Dificuldades à vista: Editorial | Folha de S. Paulo

STF atende à demanda por restrição do alcance do foro especial; aplicação da regra gera dúvidas

A mudança nas regras do foro especial, tal como decidida nesta quinta (3) pela maioria do Supremo Tribunal Federal, sem dúvida guarda correspondência, em linhas gerais, com as expectativas gerais da sociedade —que, notoriamente, perdeu a tolerância com a impunidade de seus representantes.

Não poderia ser mais eloquente o caso que motivou as alterações agora aprovadas. Tratava-se de um candidato à prefeitura de uma cidade fluminense, acusado de compra de votos. Conforme se desenvolvia sua carreira política, o processo mudava de mãos, seguindo as prerrogativas de cada cargo que ocupava ou deixava de ocupar.

Tantos vaivéns jurídicos, como se observa, acarretam o risco de que expire o prazo legal para que um réu seja condenado.

Relator do processo, o ministro Luís Roberto Barroso apresentou uma questão de ordem, propondo novo entendimento para as regras da prerrogativa de foro estabelecidas na Constituição de 1988.

Passariam a ser julgados pelo Supremo apenas os crimes que um parlamentar tenha cometido no cargo e em razão de seu cargo. Crimes de outra natureza teriam o destino da primeira instância.

Ademais, uma vez encerradas as investigações, o processo não mais poderia reencaminhar-se a outros foros de julgamento, mesmo na hipótese de o réu deixar seu cargo.

Começa, enfim, a ser reduzido o privilégio do foro: Editorial | O Globo

A aprovação, pelo Supremo, de uma versão restrita do tratamento especial na Justiça a deputados e senadores é apenas o início deste processo de mudanças

Deve-se comemorar o desfecho do longo julgamento da proposta de revisão do foro, feita há um ano pelo ministro Luís Roberto Barroso. Mesmo com as prováveis dificuldades e ainda indefinições que serão encontradas à medida que casos concretos comecem a ser examinados, o fato de a cobertura do foro para deputados e senadores se restringir a crimes cometidos nos mandatos e relacionados às suas funções significa um avanço.

Mais uma vez, o Supremo expôs a fratura em que “garantistas” como Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski assumiram posição conservadora na defesa do mínimo possível de mudanças na blindagem do foro. Registre-se a defecção no grupo de Marco Aurélio Mello. E o mínimo possível era a fórmula que havia sido proposta por Alexandre de Moraes de fixar o marco zero na diplomação do parlamentar, para cobrir todos os crimes ocorridos a partir daí com o manto do foro.

Dias Toffoli, diante da derrota prevista para os defensores do privilégio, aderiu à ideia básica de Moraes, sendo seguido por Lewandowski e Gilmar Mendes, com nuances. Não vingou. E ontem propôs estender a restrição do foro a todas as autoridades. Não prosperou.

O pano de fundo dos debates é o terror petrificante que toma conta dos políticos ao se imaginarem nas mãos de um juiz de primeira instância — se for Moro ou Bretas, muito pior —, e ainda mais na vigência da jurisprudência do STF da prisão decretada na segunda instância. Assunto incandescente que vagueia pela agenda da Corte. Que se tornou mais radioativo com a prisão do ex-presidente Lula, demonstração prática, ao vivo e em cores, de que a Justiça no Brasil pode ser mesmo republicana.

Na essência dos embates sobre o alcance do foro privilegiado está, na verdade, a redução da larga margem de impunidade que beneficia ricos e poderosos. Por isso, conhecido estudo da faculdade de Direito da Fundação Getulio Vargas voltou a ser alvejado nos debates. Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes dispararam contra o trabalho, que revelou índices de prescrições no Supremo e de condenações, refletindo uma baixa eficácia da Corte em ações penais, como são as de corrupção. Ei-los: apenas 0,61% dos réus são condenados de forma definitiva e ínfimos 5% dos processos são de fato julgados, porque muitos crimes prescrevem, devido à demora na tramitação. Eis por que o foro privilegiado é tão desejado.

EUA dão ultimato e impõem cotas para o aço brasileiro: Editorial | Valor Econômico

Brasil, Argentina e Coreia do Sul dobraram-se às exigências americanas e concordaram em limitar, via cotas, suas exportações de aço para o mercado americano. Pelo peso de suas economias e a importância de suas exportações do produto para os Estados Unidos, a União Europeia se insurgiu e deixou claro que não está disposta a aceitar os ditames protecionistas de Donald Trump. A resistência europeia aumenta a importância da decisão chinesa sobre o assunto, que tem nessa semana um capítulo importante, com as reuniões entre os principais integrantes da equipe de comércio de Trump e os burocratas de Pequim. A posição chinesa pode, se a intenção inicial se mantiver, abrir uma das maiores batalhas comerciais da história da Organização Mundial do Comércio (OMC).

O governo brasileiro deveria definir melhor sua estratégia diante dos ímpetos protecionistas de Trump, que não deverão se restringir ao aço e alumínio. O motivo inaugural da iniciativa americana não para em pé - riscos à segurança nacional das importações - e mesmo este argumento esdrúxulo foi abandonado no decorrer do tempo. Ficou explícito nas declarações da trinca Wilbur Ross, secretário do Comércio, Robert Lighthizer, da USTR, e Peter Navarro, conselheiro especial da Casa Branca para o tema, que os EUA pretendem obter vantagens comerciais com as sanções, o que simplesmente desmente o objetivo original.

O alvo principal da ação para barrar a entrada do aço nos EUA, assunto do qual Lighthizer, titular da USTR, é especialista, após décadas advogando como lobista para o setor, tinha como meta a China, o maior produtor mundial. No entanto, a China, diretamente, é um exportador marginal para o mercado americano, e o impacto tarifário foi desviado em cheio para os exportadores tradicionais, como Brasil e Coreia do Sul.

A truculência vence, até agora: Editorial | O Estado de S. Paulo

Sem força para reagir à truculência do presidente Donald Trump, os líderes da indústria brasileira do aço decidiram aceitar cotas de exportação para os Estados Unidos, solução menos custosa, segundo eles, que uma tarifa de 25%. Os produtores de alumínio indicaram preferência pela tarifa de 10%. Os dois setores serão prejudicados, mas as perdas, segundo seus dirigentes, serão menores que seriam se o acesso ao mercado americano se tornasse impossível. “O acordo não foi de todo ruim, principalmente porque era pegar ou largar”, disse o presidente executivo do Instituto Aço Brasil (IABr), Marco Polo Mello Lopes. Essa avaliação é compreensível, mas a palavra acordo é um tanto exagerada. Nenhum compromisso foi firmado entre governos, o poder público brasileiro ficou fora de qualquer entendimento, e a medida aplicável a cada caso – cota ou tarifa – dependerá, afinal, das autoridades americanas.

O presidente Trump anunciou na segunda-feira, em Washington, um acordo preliminar a respeito das importações provenientes do Brasil. Não houve acordo, segundo o governo brasileiro, até porque a Casa Branca havia informado no dia 26 a decisão de interromper a negociação e impor barreiras ao aço e ao alumínio, sob a forma de tarifas ou de cotas. Não houve participação do governo brasileiro, segundo a nota emitida em Brasília, no desenho de qualquer restrição às importações de produtos originários do Brasil.

Com ou sem acordo, a ação protecionista anunciada em março por Donald Trump vem sendo realizada com sucesso considerável. Por acerto entre governos, a indústria sul-coreana, terceira maior exportadora de aço para os Estados Unidos, atrás da canadense e da brasileira, será submetida a cotas. Os exportadores argentinos, com participação muito modesta nesse mercado, também serão submetidos a limites quantitativos.

Karl Marx: 200 anos

No bicentenário de Karl Marx, celebrado amanhã, o blog faz um convite para que se releia alguns textos do pensador, filosofo, sociólogo, historiador, economista e fundador de uma nova concepção de mundo.

Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

Teses sobre Feuerbach

O Capital / Prefácio da 1ª Edição (1867)

O Capital / Posfácio da 2ª Edição Alemã (1873

Karl Marx: Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel

O texto foi escrito entre dezembro de 1843 e janeiro de 1844 e publicado nos Anais Franco-Alemão em 1844

Na Alemanha, a crítica da religião chegou, no essencial, ao fim. A crítica da religião é a premissa de toda crítica.

A existência profana do erro ficou comprometida, uma vez refutada sua celestial oratio pro aris et focis [oração pelo lar e pelo ócio].

O homem que só encontrou o reflexo de si mesmo na realidade fantástica do céu, onde buscava um super-homem, já não se sentirá inclinado a encontrar somente a aparência de si próprio, o não-homem, já que aquilo que busca e deve necessariamente buscar é a sua verdadeira realidade.

A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o autosentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual.

A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espirito. É o ópio do povo.

A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade.

A crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva. A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A religião é apenas um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em torno de si mesmo.

Assim, superada a crença no que está além da verdade, a missão da história consiste em averiguar a verdade daquilo que nos circunda. E, como primeiro objetivo, uma vez que se desmascarou a forma de santidade da autoalienação humana, a missão da filosofia, que está à serviço da história, consiste no desmascaramento da autoalienação em suas formas não santificadas. Com isto, a crítica do céu se converte na crítica da terra, a crítica da religião na critica do direito, a crítica da teologia na crítica da Política.

Karl Marx: Teses sobre Feuerbach

Escrito por Marx na primavera de 1845. Publicado pela primeira vez por Engels, em 1888, como apêndice à edição em livro da sua obra Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Alemã Clássica, Estugarda 1888, pp. 69-72. Publicado segundo a versão de Engels de 1888, em cotejo com a redação original de Marx.

1
A principal insuficiência de todo o materialismo até aos nossos dias - o de Feuerbach incluído - é que as coisas [der Gegenstand], a realidade, o mundo sensível são tomados apenas sobre a forma do objeto [dês Objekts] ou da contemplação [Anschauung]; mas não [são tomados] como atividade sensível humana, praxes, não subjetivamente. Por isso aconteceu que o lado ativo foi desenvolvido, em oposição ao materialismo, pelo idealismo - mas apenas abstratamente, pois que o idealismo naturalmente não conhece a atividade sensível, real, como tal. Feuerbach quer objetos [Objekte] sensíveis realmente distintos dos objetos do pensamento; mas não toma a própria atividade humana como atividade objetiva [gegenständliche Tätigkeit]. Ele considera, por isso, na Essência do Cristianismo, apenas a atitude teórica como a genuinamente humana, ao passo que a praxe é tomada e fixada apenas na sua forma de manifestação sórdida e judaica. Não compreende, por isso, o significado da atividade "revolucionária", de crítica prática.
2
A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na praxe que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da praxe é uma questão puramente escolástica.
3
A doutrina materialista de que os seres humanos são produtos das circunstâncias e da educação, [de que] seres humanos transformados são, portanto, produtos de outras circunstâncias e de uma educação mudada, esquece que as circunstâncias são transformadas precisamente pelos seres humanos e que o educador tem ele próprio de ser educado. Ela acaba, por isso, necessariamente, por separar a sociedade em duas partes, uma das quais fica elevada acima da sociedade (por exemplo, em Robert Owen). A coincidência do mudar das circunstâncias e da atividade humana só pode ser tomada e racionalmente entendida como praxes revolucionante.
4
Feuerbach parte do fato da auto-alienação religiosa, da duplicação do mundo no mundo religioso, representado, e num real. O seu trabalho consiste em resolver o mundo religioso na sua base mundana. Ele perde de vista que depois de completado este trabalho ainda fica por fazer o principal. É que o fato de esta base mundana se destacar de si própria e se fixar, um reino autônomo, nas nuvens, só se pode explicar precisamente pela autodivisão e pelo contradizer-se a si mesma desta base mundana. É esta mesma, portanto, que tem de ser primeiramente entendida na sua contradição e depois praticamente revolucionada por meio da eliminação da contradição. Portanto, depois de, por exemplo a família terrena estar descoberta como o segredo da sagrada família, é a primeira que tem, então, de ser ela mesma teoricamente criticada e praticamente revolucionada.
5
Feuerbach, não contente com o pensamento abstrato, apela ao conhecimento sensível [sinnliche Anschauung]; mas, não toma o mundo sensível como atividade humana sensível prática.
6
Feuerbach resolve a essência religiosa na essência humana. Mas, a essência humana não é uma abstração inerente a cada indivíduo. Na sua realidade ela é o conjunto das relações sociais. Feuerbach, que não entra na crítica desta essência real, é, por isso, obrigado: 1. a abstrair do processo histórico e fixar o sentimento [Gemüt] religioso por si e a pressupor um indivíduo abstratamente - isoladamente - humano; 2. nele, por isso, a essência humana só pode ser tomada como "espécie", como generalidade interior, muda, que liga apenas naturalmente os muitos indivíduos.
7
Feuerbach não vê, por isso, que o próprio "sentimento religioso" é um produto social e que o indivíduo abstrato que analisa pertence na realidade a uma determinada forma de sociedade.
8
A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na praxe humana e no compreender desta praxe.
9
O máximo que o materialismo contemplativo [der anschauende Materialismus] consegue, isto é, o materialismo que não compreende o mundo sensível como atividade prática, é a visão [Anschauung] dos indivíduos isolados na "sociedade civil".
10
O ponto de vista do antigo materialismo é a sociedade "civil"; o ponto de vista do novo [materialismo é] a sociedade humana, ou a humanidade socializada.
11
Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo

Karl Marx: O Capital / Prefácio da 1ª Edição (1867)

A obra cujo primeiro volume apresento ao público é a continuação de um trabalho publicado em 1859 sob o titulo: "Para a Crítica da Economia Política". Este longo intervalo que separa as duas publicações foi-me imposto por uma doença de vários anos.

A fim de dar a este livro um complemento que lhe é necessário, resumi no primeiro capitulo a obra que o precedeu. É certo que me pareceu dever modificar neste resumo o meu primeiro plano de exposição: um grande número de pontos, ali simplesmente indicados, são aqui amplamente desenvolvidos, enquanto outros, completamente desenvolvidos antes, são apenas indicados agora. A História da Teoria do Valor e do Dinheiro, por exemplo, foi suprimida; em compensação, o leitor encontrará nas notas do primeiro capitulo novas fontes para a história dessa teoria.

Em todas as ciências o começo é árduo. O primeiro capítulo, principalmente a parte que contém a análise da mercadoria, será pois um pouco difícil de compreender. No que se refere à análise da substância do valor e à grandeza do valor, fiz todos os esforços para tornar a exposição tão clara quanto possível e acessível a todos os leitores.

A forma-valor realizada na forma-dinheiro é algo de muito simples. No entanto, o espírito humano tem procurado em vão, desde há mais de dois mil anos, penetrar no seu segredo, quando afinal chegou a analisar, pelo menos aproximadamente, formas muito mais complexas e portadoras de um sentido mais profundo. Porquê? Porque o corpo organizado é mais fácil de estudar do que a célula que o constitui. Por outro lado, a análise das formas econômicas não pode socorrer-se do microscópio nem de reagentes químicos; a abstração é a única forma que pode servir-lhe de instrumento. Ora, para a sociedade burguesa atual, a forma-mercadoria do produto do trabalho, ou a forma-valor da mercadoria, é a forma celular econômica. Para o homem pouco culto, a análise desta forma parece perder-se em minúcias; de facto são, necessariamente, minúcias, mas apenas como as que se encontram na anatomia microscópica.

A parte o capítulo sobre a forma-valor, a leitura desta obra não apresentará dificuldades. Suponho naturalmente leitores que queiram aprender algo de novo e, consequentemente, pensar também por si próprios.

O físico, para se esclarecer acerca dos processos da natureza, ou estuda os fenômenos quando estes se apresentam sob a forma mais perfeita e menos obscurecida por influências perturbadoras, ou procede a experiências em condições que assegurem tanto quanto possível a regularidade do seu movimento. O que estudo nesta obra é o modo-de-produção capitalista e as relações de produção e de troca que lhes correspondem. O lugar clássico desta produção é, até agora, a Inglaterra. Eis por que é a este país que vou buscar os factos e os exemplos principais que servem de ilustração ao desenvolvimento das minhas teorias. Se o leitor alemão se permitisse um farisaico encolher de ombros a propósito da situação dos operários, industriais e agrícolas ingleses, ou se se embalasse na ideia optimista de que as coisas estão muito longe de ir tão mal na Alemanha, seria obrigado a gritar-lhe: De te fabula narratur!

Não se trata aqui do grande desenvolvimento mais ou menos completo dos antagonismos sociais, que resultam das leis naturais da produção capitalistas. Trata-se sim destas leis em si mesmas, de tendências que se manifestam e realizam com uma necessidade de ferro. O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais que mostrar aos que o seguem na escala industrial a imagem do seu próprio futuro.

Mas deixemos de lado estas considerações. No nosso país, nos lugares em que a produção capitalista se implantou, por exemplo nas fábricas propriamente ditas, o estado de coisas é muito pior que na Inglaterra, porque falta o contrapeso das "leis de fábricas" inglesas. Em todas as outras esferas, aflige-nos, como em todo o ocidente da Europa continental, não só o desenvolvimento da produção capitalista, como também a falta deste desenvolvimento. Além dos males próprios da época atual, temos de suportar uma longa série de males herdados, resultantes da sobrevivência de modos-de-produção antigos, ultrapassados, com o seu cortejo de relações sociais e políticas extemporâneas. Temos de sofrer não só da parte dos vivos mas também da parte dos mortos. Le mort saisit le vif ! (O morto se apodera do vivo)

Karl Marx: O Capital / Posfácio da 2ª Edição Alemã (1873)

Para começar, devo prestar ao leitor da primeira edição alguns esclarecimentos sobre as alterações feitas nesta segunda edição. A divisão mais clara do livro salta aos olhos. As notas acrescentadas vão sempre assinaladas como notas da segunda edição. No que respeita ao próprio texto, as alterações mais importantes são as seguintes:

No Capítulo I,1 faz-se com maior rigor científico a dedução do valor a partir da análise das equivalências nas quais se exprime todo o valor-de-troca; de igual modo, a conexão entre a substância do valor e a determinação da grandeza do valor pelo trabalho socialmente necessário, que na primeira edição era apenas indicada, é agora expressamente acentuada.

O Capítulo I,3 (A Forma-Valor) foi totalmente refundido, o que se tornou necessário desde logo pela dupla exposição do assunto na primeira edição. (Note-se, de passagem, que essa dupla exposição se ficou a dever ao meu amigo Dr. L. Kugelmann, de Hanover. Encontrava-me de visita em sua casa na Primavera de 1867, quando as primeiras provas chegaram de Hamburgo, tendo-me ele convencido que para a maior parte dos leitores se tornava necessária uma explicação suplementar, mais didática, da forma-valor.) A última secção do primeiro Capítulo, O fetichismo da mercadoria, foi em grande parte modificada. O Capítulo III,1 (Medida dos Valores) foi cuidadosamente revisto, dado que esta matéria tinha sido descuidadamente tratada na primeira edição, remetendo-se para a análise já contida em Para a Crítica da Economia Política (Berlim, 1859). O Capítulo VII, especialmente a parte 2, foi sensivelmente refundido.

Seria inútil pormenorizar as alterações textuais, muitas vezes apenas de estilo. Estão espalhadas por todo o livro. Contudo, agora, ao rever a tradução francesa, a publicar em Paris, noto que várias partes do original alemão exigiriam, nuns casos uma refundição integral, noutros um maior rigor estilístico bem como uma cuidadosa eliminação de algumas deficiências ocasionais. Não dispus, porém, do tempo necessário, pois só no outono de 1871 - no meio de outros trabalhos prementes - é que recebi a notícia de que o livro se esgotara e que a impressão da segunda edição haveria de começar já em Janeiro de 1872.

A compreensão que O Capital rapidamente encontrou em largos círculos da classe operária alemã é a melhor paga do meu trabalho. Um homem, situado economicamente numa perspectiva burguesa, o Sr. Mayer, fabricante de Viena, numa brochura publicada durante a guerra franco-prussiana, pôs justamente em evidência que o grande espírito teórico, considerado património hereditário dos alemães, desapareceu completamente das chamadas classes cultas da Alemanha, ressurgindo pelo contrário na sua classe operária.

A economia política, na Alemanha, tem sido, até agora, uma ciência estrangeira. Circunstâncias históricas particulares, já em grande parte denunciadas por Gustav de Gulich na sua História do comércio, da indústria, etc., impediram durante muito tempo entre nós o surto da produção capitalista e, por consequência, o desenvolvimento da sociedade moderna, da sociedade burguesa. Por isso, a economia política não foi, na Alemanha, um fruto próprio; chegou-nos já pronta da Inglaterra e da França como um artigo de importação. Os nossos professores permaneceram alunos; mais do que isso, nas suas mãos a expressão teórica de sociedades mais avançadas transformou-se numa colecção de dogmas interpretados por eles no sentido de uma sociedade atrasada, [do mundo pequeno-burguês que os rodeava,] interpretados portanto ao contrário. Para dissimular a sua falsa posição, a sua falta de originalidade, a sua impotência científica, os nossos pedagogos ostentaram um verdadeiro luxo de erudição histórica e literária; ou então juntaram à sua mercadoria outros ingredientes tirados dessa salsada de conhecimentos heterogéneos que a burocracia alemã adornou com o nome de Kameralwissenschaften (ciência administrativa).

A partir de 1848, a produção capitalista enraizou-se cada vez mais na Alemanha e, hoje, já conseguiu metamorfosear este país que fora de sonhadores em país de realizadores. Mas os nossos economistas, decididamente, não têm sorte. Quando podiam fazer economia política sem dissimulação, faltava-lhes o meio social que esta pressupõe. Pelo contrário, quando esse meio surgiu, as circunstâncias que permitem o seu estudo imparcial, mesmo sem transpor o horizonte burguês, já não existiam.

Com efeito, a economia política, enquanto burguesa - isto é, enquanto vê na ordem capitalista não uma fase transitória do progresso histórico, mas antes a forma absoluta e definitiva da produção social -, não pode permanecer uma ciência, enquanto a luta de classes permanecer latente ou só se manifestar por fenómenos isolados.

Consideremos a Inglaterra. O período em que a luta de classes ainda aí não está desenvolvida, é também o período clássico da economia política. O seu último grande representante, Ricardo, é o primeiro economista que faz deliberadamente do antagonismo dos interesses de classe, da oposição entre salário e lucro, lucro e renda, o ponto de partida da sua investigação. Este antagonismo, que é efetivamente inseparável da própria existência das classes que compõem a sociedade burguesa, formula-o ele ingenuamente como a lei natural, imutável, da sociedade humana. Era atingir o limite, que a ciência burguesa não transporá. A crítica ergueu-se perante ela ainda em vida de Ricardo, na pessoa de Sismondi.

Gal Costa - Chega de Saudade (João Gilberto)

Carlos Drummond de Andrade: Hino Nacional

Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás as florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonettes dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas...

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil!
Se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão
de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

Eduardo Alves da Costa
Quanto a mim, sonharei com Portugal
Às vezes, quando
estou triste e há silêncio
nos corredores e nas veias,
vem-me um desejo de voltar
a Portugal. Nunca lá estive,
é certo, como também
é certo meu coração, em dias tais,
ser um deserto.