sexta-feira, 15 de março de 2019

José de Souza Martins*: A ideologia na ciência no Brasil

- Eu &Fim de Semana / Valor Econômico

Nestes tempos de crise do pensamento crítico no Brasil, um dos aspectos de consideração urgente é o da dificuldade de muitos cientistas para ver sua própria ciência como objeto de conhecimento de outra ciência. E de compreender criticamente o caráter relativo e de certo modo provisório do conhecimento já acumulado em seu respectivo campo de saber.

É frequente, entre nós, que análises baseadas nas ciências sociais sejam confundidas com interpretações de senso comum por parte de cientistas das demais áreas do conhecimento. Não levam em conta o que é metodologicamente próprio das diferentes ciências. Provavelmente, nem sabem que uma das funções das ciências sociais é a de estudar e diagnosticar as consequências socialmente problemáticas do próprio desenvolvimento científico.

Uma inovação agrícola lucrativa e produtiva pode levar à miséria milhares de pessoas. Uma inovação médica, como uma vacina, pode aterrorizar multidões. Tivemos no Rio a Revolta da Vacina, em 1904, em reação à obrigatoriedade da vacinação contra varíola. A alta racionalidade da ciência não é imune a irracionalidades sociais sociologicamente explicáveis.

Num momento politicamente difícil como este, interpretações sociológicas e antropológicas da realidade podem ser essenciais para o desenvolvimento de uma consciência socialmente crítica da situação do país, até mesmo em relação a ameaças que pesam sobre o trabalho científico e o ensino da ciência.

João Sayad*: Ar fresco: o artigo do André

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

Não faz sentido exigir anos de contribuição quando o mercado de trabalho vai ser radicalmente alterado

Que alívio o artigo do André Lara Resende, aqui no Valor! Inteligente, ponderado e cheio de ideias. Contrasta com os artigos que congestionam os jornais e bradam como profetas que se a reforma da previdência não for aprovada volta a hiperinflação e continua a estagnação.

Pode ser. Mas falta análise, descrição, contra-argumento. São sermões ameaçadores - sem a reforma da previdência, o inferno. Mas não explicam como. Hiperinflação ou revolução popular pela falta de pagamento das aposentadorias e pensões? Talvez a unanimidade sem explicações resulte da fé num paradigma comum sobre o qual não há reflexões.

O André questiona o paradigma. O paradigma que usam é conhecido - com o déficit público, a quantidade de moeda cresce, vem a inflação ou a hiperinflação. Uma forma de pensar do final do século XIX e que Keynes, Minski, Kalecki e o Abba Lerner, que o André cita, substituíram por outro paradigma após a crise de 1930. O novo paradigma teve vida curta, de 45 a 80 aproximadamente, os anos dourados do capitalismo, a social democracia. A partir dos anos 80 e até hoje, voltamos ao pensamento do século XIX, repaginado, mas com os mesmos fundamentos. O pensamento econômico é assim mesmo - oscila para lá e para cá embalado pelas contradições da economia capitalista.

A crise de 2008 inaugurou um período de dúvidas e formulação de novas teorias na academia, no Banco Mundial e até no FMI. A dívida pública explodiu nos Estados Unidos e na Europa, é muito grande no Japão e não há sinais de inflação ou expulsão (crowding out) dos investimentos privados. No Brasil, o pensamento hegemônico não mudou.

César Felício: O mercado aposta em Maia e estuda Mourão

- Valor Econômico

Aprovação de alguma reforma é dada como certa

Nada parece mover o inabalável otimismo no mercado financeiro em relação à aprovação de uma reforma da Previdência: nenhum vídeo obsceno postado pelo próprio presidente, nenhuma intriga alimentada por Olavo de Carvalho, nenhum tuíte inexplicável do vereador Carlos Bolsonaro, ou trapalhada do ministro da Educação. Acredita-se que há duas esferas no poder em Brasília: uma é a movida a estrondo e fúria, navegando no mundo da instantaneidade e do espetáculo e tem o próprio presidente como protagonista.

A outra é bifronte e eficaz: são protagonistas o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), visto como o mais credenciado negociador da reforma da Previdência; e o vice-presidente Hamilton Mourão.
A banca não tem absoluta certeza, mas acredita que Mourão vocaliza e opera em nome de todo o grupo militar, visto como mais preparado e dotado de maior estratégia política do que Bolsonaro, sua família e seus aliados mais próximos, em um pacote que inclui o próprio ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni.

O grupo militar seria a verdadeira espada e escudo de interesses que convergem para o mercado, frente ao qual o restante seria espuma. A contenção dos desvarios bolsonaristas em relação a Venezuela e transferência da embaixada para Israel seriam sinais eloquentes neste sentido.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, está fora da equação, e não por ser desimportante, ao contrário. Guedes não é visto ainda como um homem do mundo de Brasília, um dos beligerantes na conflagração por poder. Ele é um universo à parte, que montou uma reforma da Previdência sólida do ponto de vista fiscal, com muita gordura para negociar. Não deve, contudo, ser o condutor do processo de barganha.

Claudia Safatle: Encontro do mercado com os bancos federais

- Valor Econômico

No mundo digital, os bancos públicos se reinventam ou morrem

Quando anunciar os novos presidentes dos conselhos de administração dos três maiores bancos federais - Banco do Brasil, Caixa e BNDES -, o ministro da Economia, Paulo Guedes, estará dando um passo importante e singular na blindagem dessas instituições. Os conselhos serão presididos por nomes do mercado. São eles: Luiz Fernando Figueiredo, ex-diretor do Banco Central e sócio da Mauá Capital, ocupará a presidência do conselho do Banco do Brasil; Hélio Magalhães, ex presidente do Citi Brasil, comandará o conselho da Caixa; e Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos, presidirá o conselho de administração do BNDES.

Os bancos públicos têm sido, historicamente, objeto de ataque das forças políticas perpetrado para a tomada de cargos por indicações partidárias. Mas tão danosa quanto a ocupação política de cargos importantes - em geral com o intuito de angariar fundos para o financiamento das campanhas eleitorais - é a ofensiva do próprio acionista controlador, o Tesouro Nacional. Este arrancou excessivos dividendos dos bancos federais e criou políticas públicas sem a devida análise de risco e de custos.

Foi assim que a Caixa acumulou cerca de R$ 40 bilhões em instrumentos híbridos de capital e dívida. Agora, com a administração de Pedro Guimarães, a Caixa diz que vai devolver esses bilhões à União nos próximos quatro anos. Para isso, ele quer acelerar a venda de ativos.

A Caixa, talvez por ser uma empresa fechada sob total controle da União, sempre teve mais dificuldades para se defender de investidas político-partidárias com objetivos pouco transparentes.

O processo de melhoria da governança dos bancos públicos federais começou em meados dos anos de 1990. Em 1996, o governo de FHC capitalizou o Banco do Brasil em R$ 8 bilhões. Logo em seguida, o BB começou a introduzir melhores práticas de avaliação de risco assim como diversos outros mecanismos de melhoria da gestão.

Eliane Cantanhêde: Legítima defesa

- O Estado de S.Paulo

Pessoas, grupos e instituições cansaram de apanhar calados nas redes sociais. E reagem

Um por um, lentamente, os atingidos por fake news e calúnias pela internet começam a reagir. O Estado abriu a fila, depois de uma deturpação grosseira da declaração de uma repórter. Agora, é o próprio Supremo Tribunal Federal que cansou de “apanhar” nas redes e resolveu abrir investigação para identificar os criminosos. É uma postura corajosa, que não é apenas um direito como um dever.

Essa guerra pela internet começou lá atrás com o PT criando um feroz exército virtual para atacar todos e qualquer um que ousassem questionar o partido ou o governo do então presidente Lula. Com o tempo, como fatalmente iria acontecer, essa prática virou corriqueira entre os partidos e veio o efeito bumerangue: de estilingue, o PT passou a ser alvo.

A tropa bolsonarista aprofundou a prática e ganhou adesões pelo país afora. Foi um sucesso na eleição. Está sendo particularmente danoso no exercício do governo, quando é difícil distinguir o que é coisa de malucos agindo por conta própria e o que é movimento articulado e executado sob orientação de gente do próprio governo.

Isso tudo ganha ainda mais peso quando os ataques não são apenas contra a imprensa, contra o Supremo, contra inimigos (reais ou não), mas atingem até o vice-presidente e os militares, genericamente, com mensagens contendo impropérios. O que se pretende com isso?

Não é prudente, nem conveniente, reproduzir aqui as graves agressões disparadas por robôs e multiplicadas por irresponsáveis nas redes contra o STF, pilar da democracia. Seu presidente, Dias Toffoli, justificou a abertura de investigação com “a existência de notícias fraudulentas (fake news), denunciações caluniosas, ameaças e infrações (...) que atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo, de seus membros e familiares”.

É razoável supor que, após a reação corajosa do Estado e agora da investigação do Supremo – ambos em legítima defesa –, que outras vítimas se sintam animadas a dar um basta, não importa de onde, de que partidos, de que forças, eles partam. Tudo tem limite. Vamos ver se as fake news também.

Por trás da decisão do Supremo, está também a irritação diante de uma investida crescente contra o tribunal, contra ministros, contra até familiares. Essas coisas são assim: começam daqui, evoluem para ali e, de repente, contaminam a sociedade e ficam fora de controle. Aliás, já atingem o Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ninguém lucra com isso, nem o Judiciário, nem o Executivo, nem o Legislativo.

Elena Landau*: Obsessões

- O Estado de S.Paulo

Há esperança de que depois da reforma da Previdência, um novo governo começará

Difícil a tarefa de escrever uma coluna quinzenal neste momento. Todo dia uma novidade, nem sempre, ou quase nunca, positiva. O ativismo deste governo nas redes, não só do presidente, mas de seu entorno, família e gurus, é excessivo e desconcertante. Como se houvesse um obscuro desejo de autossabotagem.

Mesmo não tendo votado em Bolsonaro, entendo que é hora de deixar a campanha de lado e ter alguma boa vontade com o novo governo. Para isso, ajudaria se o presidente também entendesse que as eleições acabaram. Nada indica. Continua jogando para a mesma plateia já convertida. E os antigos cabos eleitorais que, hoje assustados com esse início de mandato, passaram a criticar o governo e agora são vistos como representantes da esquerda, cujo único objetivo é a desestabilização do governo. Narciso acha feio o que não é espelho.

Nem o mais ferrenho opositor de Bolsonaro poderia imaginar a quantidade de despautérios a serem declarados em tão pouco tempo. É para deixar qualquer um horrorizado.

Normal que o presidente procure cumprir suas promessas de campanhas, mas não deve fazer isso em detrimento dos interesses do País. O trio Araújo, Vélez e Damares reforça o clima de pessimismo. A postura dos três revela um retrocesso cultural e institucional assustador.

Há um fio condutor nas entrevistas desse grupo e nas postagens da família Bolsonaro: a repulsa ao sexo. Seja o horror ao carnaval, revelado no vídeo veiculado pelo presidente, a suposta erotização nas escolas ou a obsessão com masturbação infantil, tudo serve para tornar o sexo feio, sujo e proibido. Mais um pouco são capazes de adotar a cura gay como orientação nas escolas.

Almir Pazzianotto Pinto*: Sua Majestade o presidente

- O Estado de S.Paulo

MP 873 é um exemplo cabal de invasão da esfera da legislação do trabalho por Bolsonaro

É histórica a tendência dos nossos presidentes da República a dilatar o raio de ação delimitado pelas Constituições democráticas para invadirem a esfera reservada ao Poder Legislativo. Leia-se, a respeito, o livro Sua Majestade o Presidente do Brasil – Um Estudo do Brasil Constitucional (1889-1934), escrito por Ernest Hambloch (1886-1970), cônsul inglês que viveu no Brasil durante 25 anos. A obra, traduzida por Lêda Boechat Rodrigues, com apresentação de José Honório Rodrigues, foi editada pela Universidade de Brasília em 1981 e pertence ao rol das que devem ser consultadas por quem deseja desvendar as origens do autoritarismo tupiniquim.

A medida provisória (MP) é filha legítima do decreto-lei criado por Francisco Campos na Carta Constitucional de 1937. Durante o Estado Novo, Getúlio Vargas manteve trancado o Poder Legislativo e dele se serviu como instrumento de governo (1937-1945). Na Constituição liberal de 1946 não estava previsto; durante o regime militar, porém, foi reabilitado e frequentemente utilizado (1964-1985). A Constituição de 1988, apesar de comprometida com a instituição do Estado de Direito democrático, exibe a insólita figura da medida provisória, posta à disposição do presidente da República no artigo 62, para usá-la a pretexto de gravidade e urgência, quase sempre, porém, de maneira atabalhoada.

O texto original do artigo 62 era constituído pela parte inicial, conhecida como caput, complementada por parágrafo único com a seguinte redação: “As medidas provisórias perderão eficácia, desde a edição, se não forem convertidas em lei no prazo de trinta dias, a partir de sua publicação, devendo o Congresso Nacional disciplinar as relações jurídicas delas decorrentes”.

O uso incessante e arbitrário de MPs, por sucessivos presidentes, provocou a reação do Congresso Nacional, cuja imagem se desacreditava diante da comunidade política, inconformada com a banalização de medida autoritária de caráter excepcional. Entre a data da promulgação da Lei Fundamental, 5/10/1988, e a entrada em vigor da Emenda n.º 32, 12/9/2001, haviam sido editadas 616 medidas provisórias, acrescidas de 5.513 reedições, o que significava 6.102 intromissões do Poder Executivo em assuntos do Poder Legislativo.

Merval Pereira: Disputa de poder

- O Globo

Agora existe a possibilidade de que todos os julgamentos da Justiça Federal venham a ser revistos

Confirmada a tendência da maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) de mandar para a Justiça Eleitoral todos os crimes conexos ao de caixa 2, como corrupção, lavagem de dinheiro e peculato, as críticas ao Supremo tomarão conta dos meios digitais.

Paralelamente, o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, anunciou que abriu processo, em caráter sigiloso, contra o que chamou de “notícias falsas (fake news)”, ações caluniosas, ameaças e infrações “que atinjam a honra de membros do STF e seus familiares”.

Como o ministro, ao mesmo tempo, ressaltou que o Supremo sempre defendeu a liberdade de imprensa e a livre expressão, é previsível que o inquérito se refira aos blogs militantes que estão espalhando falsas informações sobre ministros do STF e incentivando seus seguidores a atacá-los.

A guerra entre os procuradores e membros do STF também continuou, e será difícil, como veremos adiante, distinguir quem caluniou quem. O procurador da República Bruno Calabrich foi ao Twitter para afirmar que a decisão de Toffoli é inconstitucional, pois “foro por prerrogativa de função é definido pelo agente, não pela vítima; investigação pelo Judiciário é inconstitucional (violação ao princípio acusatório)”.

Míriam Leitão: Nova diplomacia encolhe o Brasil

- O Globo

Brasil corre risco de perder mercados e importância política com os erros sucessivos da política externa de Bolsonaro

Os riscos que a política externa corre neste momento são concretos. A bancada do agronegócio teme perder mercado na China, nosso maior parceiro. A ida do presidente Bolsonaro a Washington será boa por um lado, mas o perigo é o país tomar partido na guerra comercial e tecnológica com a China. O deputado Eduardo Bolsonaro representa no Brasil um movimento que se propõe a lutar contra a União Europeia, outro grande mercado brasileiro. A política externa está virando uma coleção de fios desencapados.

O embaixador Roberto Abdenur disse que a decisão de Bolsonaro de demitir 15 embaixadores para melhorar a imagem dele no exterior é uma intervenção sem precedentes:

— O presidente tem o direito de nomear ou demitir funcionários, mas, de uma vez só, decapitar 15 chefes de embaixada é um gesto muito radical. E o presidente se equivoca, porque a imagem dele não é feita no exterior, é feita no Brasil.

O embaixador Paulo Roberto de Almeida, que acaba de ser demitido do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais por ter postado em seu blog pessoal artigos dos quais o chanceler Ernesto Araújo não gostou, lembra outro problema:

— No caso da Venezuela, desde o começo, o chanceler demonstrou uma adesão ao aventureirismo trumpista. O chanceler foi contido e diretamente tutelado pelos militares, que fizeram um cordão sanitário, uma contenção de políticas indevidas. O general Mourão assumiu a chefia da delegação e disse claramente que não haveria intervenção. Os militares estão assumindo uma posição diplomática de respeito à Constituição e ao direito internacional.

Bernardo Mello Franco: Faturando na tragédia

- O Globo

O senador Major Olímpio propôs armar professores após a tragédia em Suzano. A indústria da bala deve ter se alegrado. O país tem 182 mil escolas, a metade delas sem bibliotecas

O massacre de Suzano deveria impor algum constrangimento aos políticos que investem na apologia das armas. Aconteceu o contrário. A turma aproveitou a tragédia para faturar mais um pouquinho, explorando o choque e a comoção dos eleitores.

Campeão de votos em 2018, o senador Major Olímpio abriu o festival de oportunismo. “Se tivesse um cidadão com arma regular dentro da escola, professor, servente, um policial militar aposentado, ele poderia ter minimizado o tamanho da tragédia”, afirmou.

A indústria da bala deve ter gostado da sugestão. Segundo o MEC, o país tem 182 mil escolas. Em quase metade não há bibliotecas, mas o major entende que a carência mais urgente é de revólveres e pistolas.

O deputado Eduardo Bolsonaro disse que uma arma é “um pedaço de metal, que faz tão mal quanto um carro”. Faltou explicar como os atiradores teriam matado oito inocentes sem a ajuda de um 38.

O senador Flávio Bolsonaro não quis ficar atrás do irmão. Disse que a chacina comprovava “o fracasso do malfadado Estatuto do Desarmamento”. Uma hora antes do massacre, seu pai anunciou que prepara novas medidas para facilitar o porte de armas.

Hélio Schwartsman: Lições da tragédia

- Folha de S. Paulo

Ataques a colégios não devem determinar política de controle de armas do Brasil, mas nortear prevenção ao suicídio

O massacre de Suzano é uma daquelas tragédias que geram perguntas que ninguém será capaz de responder. “Por quê?” é a que grita mais alto. Há, contudo, questões para as quais temos respostas.

Uma delas é que políticas públicas devem ser formuladas tendo em vista os eventos mais comuns e não as exceções. E chacinas como a da escola Professor Raul Brasil são, felizmente, raras no Brasil. Elas não passaram de meia dúzia nos últimos dez anos e não produziram mais do que 30 mortos. Cada vida precocemente interrompida é uma catástrofe, mas, em termos epidemiológicos, estamos falando de menos de três mortes por ano.

Não são, portanto, ataques a colégios que devem determinar a política de controle de armas do Brasil, nem no sentido de facilitar o porte para professores, como agora defende a bancada da bala, nem de erigir a carnificina no principal argumento pró-desarmamento. Terroristas na Europa mostraram que, quando há determinação e planejamento, até carros podem ser transformados em artefatos maciçamente letais.

O motivo relevante que temos para restringir a posse e o porte é o mar de evidências estatísticas mostrando que, quanto mais armas de fogo em circulação, mais suicídios, mortes acidentais e óbitos decorrentes de conflitos por motivos banais. São dezenas de milhares de vidas perdidas por ano.

Bruno Boghossian: Alta tensão no tribunal

- Folha de S. Paulo

Pancadaria entre tribunal e procuradores chega a ponto de tensão e não deve terminar bem

O procurador Diogo Castor deu o primeiro soco. Escreveu que o Supremo preparava um “golpe à Lava Jato” e que a operação era vítima de “ataques covardes engendrados nas sombras”. O ministro Gilmar Mendes contra-atacou. Referiu-se a integrantes do Ministério Público como gangsters, cretinos e gentalha. A pancadaria não vai terminar bem.

Os dois lados desse conflito se estranham há anos, mas a tensão chegou a um ponto alto. Nesta quinta (14), o STF decidiu que crimes como corrupção e lavagem de dinheiro relacionados a caixa dois devem ser processados na Justiça Eleitoral. A força-tarefa da Lava Jato queria que esses casos ficassem na Justiça Federal e acusou o tribunal de trabalhar contra a operação.

O julgamento foi uma reação clara dos ministros aos procuradores que fazem campanha para pressionar a corte. O decano Celso de Mello afirmou que o Supremo precisa conter abusos e que não pode se expor a “panfletagens insultuosas”.

Naquela sessão, o presidente do STF ainda abriu inquérito para apurar a divulgação de informações falsas e ofensas aos integrantes da corte. São alvos procuradores como Castor e Deltan Dallagnol.

O Supremo tenta dar uma demonstração de força. Além da ameaça de punição a seus críticos, o tribunal decidiu traçar uma linha no chão para impor limites à Lava Jato. Ainda que a remessa à Justiça Eleitoral possa levar algum prejuízo a casos envolvendo corrupção, a corte mostrou que não vai reinterpretar a lei segundo as conveniências da força-tarefa.

Os procuradores devem reagir, em sintonia com parte da população e com grupos políticos. O Supremo será alvo de manifestações, de pedidos de impeachment cada vez mais frequentes e, agora, de um requerimento de CPI no Senado para investigar irregularidades nos tribunais.

A briga deve ficar feia. Jair Bolsonaro já deu cotoveladas no STF, mas pode estar diante de uma guerra institucional que atrapalharia seu governo. Talvez ele precise sair a campo com uma bandeira branca.

Reinaldo Azevedo: Lava Jato sem caixa forte

- Folha de S. Paulo

Quando esses valentes estão na arena, só uma postura é aceitável: dizer 'sim'

A Lava Jato viu frustrada a sua maior jogada até agora em sua luta para ocupar nas consciências o lugar do imperativo categórico. Não terá a sua bilionária fundação de direito privado com grana da Petrobras. E os juros multimilionários que ela ensejaria.

Os já nem tão novos utopistas —ou distopistas— estão furiosos. E atribuem seu insucesso a uma grande conspiração liderada por aqueles que teriam interesse no fim da operação, e claro!, por Gilmar Mendes, do STF. Dada a estupefação unânime do mundo jurídico e associados, concluí que o ministro manda em todo o Judiciário, no TCU, nas entidades de classe de juízes, nos órgãos de representação dos advogados...

Não consegui encontrar um só defensor daquela estrovenga, a não ser os membros da força-tarefa, coordenada por Deltan Dallagnol. A Constituição veda expressamente a maracutaia em pelos menos três artigos. E um quarto impede a homologação do acordo, o que feria de morte o despacho da juíza Gabriela Hardt, que não vale mais.

Tratei do assunto aqui na sexta passada. À tarde, o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, ex-Batman do Menino Prodígio, foi às redes sociais esculhambar os críticos da fundação. Num trecho notável de seu ataque, compartilhado por Robin, lia-se: “Sobre as críticas à destinação de 2 bilhões e 500 milhões de reais, pode-se dizer que há os que não leram e criticam; há os que leram, não entenderam, e criticam; e há os que leram, entenderam, e, por má-fé, criticam.”

Notem que esse arauto de um novo tempo da democracia brasileira não considera a hipótese de haver alguém que tenha lido e entendido e que discorde de boa-fé. Quando esses valentes estão na arena do debate, só uma postura é aceitável: dizer “sim”. Não é por acaso que a Lava Jato pegou carona em Jair Bolsonaro, e Jair Bolsonaro, na Lava Jato. E também não é à toa, para quem sabe como funciona o circo, que o presidente da República busca agora meios de conter a escalada de Sergio Moro, seu “indemissível ad nutum”...

Vinicius Torres Freire: Quem quer comprar a nossa alma

- Folha de S. Paulo

Ministro cria teoria biruta do comércio para justificar nova ideologia do Itamaraty

A China passou a ser o maior parceiro comercial do Brasil e, “por coincidência ou não, tem sido um período de estagnação do Brasil”.

De qualquer modo, ainda que queiramos vender soja e ferro aos chineses, não o faremos em troca da nossa alma.

Essa teoria geral impressionista estocástica dos efeitos do comércio no crescimento econômico foi apresentada por Ernesto Araújo aos novos estudantes do Instituto Rio Branco.

Araújo ocupa a cadeira de ministro das Relações Exteriores e, pelo jeito, a cátedra de economia sideral do Itamaraty.

Segundo Araújo, o Brasil era o país que mais crescia no mundo quando “seu principal parceiro de desenvolvimento eram os Estados Unidos”. “Parceiro de desenvolvimento” é, digamos, uma expressão mais sentimental, mas suponha-se, por paralelismo, que o diplomata ainda tratasse de exportações.

É verdade. Nos quinquênios de crescimento mais rápido da história do Brasil, 1957-61 e 1969-73, o principal destino das nossas vendas externas eram os Estados Unidos. Mas, como nos casamentos antigos, que o diplomata deve prezar, os americanos estiveram conosco na saúde e na doença. Ainda eram nossos principais fregueses no pior quinquênio do crescimento brasileiro, 1989-92.

Mas esses argumentos e contra-argumentos são birutas. Pelo método da associação livre comercial, é possível chegar a outras conclusões, “coincidência ou não”.

Nos anos JK, nossos principais produtos de exportação eram café (56% do total), açúcar, algodão e minérios, pauta quase idêntica à dos anos 1870, no Império da escravidão e do atraso, período que marcou tão fundo a nossa alma (ou o caráter nacional brasileiro?), tema caro ao diplomata.

Dora Kramer: Estreita vigilância

Militares tentam enquadrar Bolsonaro e não deixar o governo descarrilar

Hoje o conselheiro mais influente do presidente Jair Bolsonaro é o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, o porta-¬voz informal da ala já tida como a mais ponderada do governo e que, embora repudie a caracterização de “grupo dos militares”, é toda composta de altas patentes oriundas das Forças Armadas com atuação bem-vista em setores sociais e oficiais, mas muito criticada nos chamados bolsões radicais do governismo.

Na linha de frente, destaca-se o vice-¬presidente Hamilton Mourão, com suas declarações públicas de caráter apaziguador em relação a crises e atritos provocados ora por posições do presidente da República, ora por integrante daquela outra ala que numa definição amena poderíamos chamar de polêmica, para não dizer folclórica. Numa tradução simples, o general Heleno atuaria “para dentro” e o general Mourão, “para fora”. Se um aconselha, o outro funciona como uma espécie de corretor de texto do presidente e companhia.

Isso num cenário em que a racionalidade, o bom-senso, a lógica e o rumo a partir do interesse coletivo parecem ter saído de férias. Donde a necessidade de transitar entre essas autoridades para detectar de que maneira o panorama está sendo visto por elas e tentar formular algo próximo das perguntas recorrentes em toda parte: para onde vamos? No que vai dar tudo isso? Ainda é possível reencontrar o eixo a fim de evitar um descarrilamento de consequências fatais?

Ricardo Noblat: Outra prensa no Congresso

- Blog do Noblat / Veja

Fraquejada do Posto Ipiranga

Este é um governo de brutos, fanfarrões e desajeitados. Mal a proposta de reforma da Previdência começa a tramitar no Congresso, o que fez Paulo “Posto Ipiranga” Guedes?

O todo poderoso ministro da Economia e de tudo o mais que tenha alguma coisa a ver com ela falou em pedir demissão se a reforma acabar desidratada por deputados e senadores.

Auxiliares dele que ouviram o seu discurso na cerimônia de posse do novo presidente do Banco Central correram a dizer que tudo não passara de brincadeira.

Nem a fala foi dita em tom de brincadeira, nem o ministro confirmou que apenas brincara. De resto, o assunto não admite brincadeiras. É sério demais, e, como tal, deve ser tratado.

Guedes é o único fiador de um governo que vai mal das pernas desde que começou há quase 100 dias. Não será na base da prensa que empurrará a reforma da Previdência goela abaixo do Congresso.

Cidadãos acima de quaisquer suspeitas

Entre a crítica e o desrespeito
Doravante, embora a critério do ministro Alexandre de Moraes possa valer para trás, ai daquele que distribuir notícias falsas contra membros do Supremo Tribunal Federal (STF). Ai de quem se valer delas para caluniar, difamar ou injuriar qualquer um dos ministros ou seus familiares. Simplesmente será processado.

O ministro Dias Toffoli, presidente do tribunal, abriu um inquérito para apurar notícias falsas (fake news) que tenham a Corte como alvo. E designou o colega Alexandre de Moraes como relator da investigação, sem dar detalhes sobre o alvo específico do inquérito, se é que tem um. Tudo se passará em sigilo.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apressou-se em divulgar nota de apoio à decisão de Toffoli. E para tirar uma casquinha dela, anunciou que acionará a Polícia Federal para que investigue os autores de ataques contra advogados nas redes sociais. Por ora não foi esclarecido o que distinguirá ataques de meras críticas.

Em dezembro último, em vídeo gravado por ele mesmo, o advogado Cristiano Caiado Acioli disse ao ministro Ricardo Lewandowski, seu companheiro de voo entre São Paulo e Brasília, que o Supremo era “uma vergonha”. Lewandowski ameaçou prendê-lo. Ao desembarcar em Brasília, Acioli foi detido e logo solto.

A Polícia Federal acaba de concluir que Acioli quis “humilhar, menosprezar, desrespeitar e menoscabar” a função de Lewandowski. E ao fazê-lo, poderia ainda ter causado “risco aos demais passageiros, ante um eventual acirramento de ânimos”. O resultado do inquérito foi encaminhado à justiça.

Falta Toffoli deixar claro se ministro do Supremo, nas redes sociais ou fora delas, que calunie, difame ou injurie algum colega ou terceiros, ficará também sujeito a ser investigado por Alexandre de Moraes e – quem sabe ao cabo? – até mesmo processado. A dúvida tem cabimento, sim.

Por exemplo, ontem, referindo-se aos procuradores da República ligados à Lava Jato, o ministro Gilmar Mendes chutou o balde: “Gentalha, são uns cretinos, não sabem o que é processo civilizatório. É preciso combater a corrupção dentro do Estado de Direito, e não cometendo crime, ameaçando”.

Se algum procurador tivesse dito sobre o Supremo o que Gilmar disse sobre eles, togas inflamadas pediriam sua cabeça. Mas sobre Gilmar, o ministro Luís Roberto Barroso já disse: “O senhor é a mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”. Ou: “Vossa Excelência é uma vergonha, é uma desonra para o tribunal”.

Barroso foi mais longe: acusou Gilmar de ter “parceria com a leniência em relação à criminalidade do colarinho branco”, de frequentar palácios e de trocar mensagens amistosas com réus. Ao que Gilmar respondeu: “Não sou advogado de bandidos internacionais”. Barroso foi do italiano Cesare Battisti.

Luiz Carlos Azedo: A polêmica do caixa dois

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Rejeitada a tese de que o caixa dois em conexão com outros crimes, como corrupção e lavagem de dinheiro, possa ser desmembrado, ficando a Justiça Eleitoral com o crime eleitoral e os demais, com a Justiça comum”

O Supremo Tribunal federal (STF) manteve sua jurisprudência sobre o caixa a dois, numa votação apertada — 6 a 5 —, na qual o voto decisivo foi o do presidente da Corte, ministro Dias Toffoli. Com isso, os crimes de caixa dois continuarão sendo julgados na Justiça Eleitoral, e não pela Justiça comum, como desejava o Ministério Público Federal (MPF). A decisão é um muro de contenção à ofensiva da força-tarefa da Operação Lava-Jato de Curitiba contra os políticos citados nas delações premiada da Odebrecht e JBS.

Na legislação vigente, o caixa dois eleitoral é punido com denegação ou cassação do diploma do candidato; suspensão do repasse dos recursos do Fundo Partidário aplicável às agremiações que descumprirem as regras atinentes à arrecadação e gastos de recursos financeiros; e rejeição das contas dos partidos e candidatos. Sempre foi julgado pela Justiça Eleitoral, nunca foi tipificado como um crime comum, apesar dos muitos projetos apresentados no Congresso para isso, o mais recente, no pacote anticorrupção do ministro da Justiça, Sérgio Moro.

A decisão do Supremo rejeitou a tese de que o caixa dois em conexão com outros crimes, como corrupção e lavagem de dinheiro, possa ser desmembrado, ficando a Justiça Eleitoral com o crime eleitoral e os demais, com a Justiça comum. Na votação de ontem, foram vitoriosos os ministros Marco Aurélio Mello, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Dias Toffoli. Defenderam a tese de compartilhar os processos com crimes conexos os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux, Rosa Weber e Cármem Lúcia.

Comentando o julgamento, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que defendeu o compartilhamento, minimizou os riscos de retrocesso na Lava-Jato. A tese principal do MPF era de que a Justiça Eleitoral não tem estrutura para analisar os crimes mais complexos. O impacto imediato da decisão pode ser o envio de alguns casos que estão na alçada da Justiça Federal de Curitiba para a Justiça Eleitoral.

Monica De Bolle*: Sangue latino

- Época

O que dizer de um país que tenta levar adiante uma das mais importantes reformas econômicas para seu futuro enquanto imperam a desordem e a incansável balbúrdia do bolsonarismo?

Minha vida, meus mortos
Meus caminhos tortos

Sangue latino México, Argentina, Brasil, Equador. Separadamente, a Venezuela. A América Latina atravessa momento econômico — e político — bastante complicado. O risco sistêmico na região é, sem exageros, o mais elevado desde os anos 80. Não digo com isso que estamos prestes a testemunhar quebradeiras em série como naquela época, mas que a elevada vulnerabilidade de diferentes países resultante de caminhos tortos perseguidos no passado e no presente assusta.

Comecemos pelo México, onde a situação é fascinante e dramática em igual medida. Andrés Manuel López Obrador, ou AMLO, como é conhecido, anda colocando em prática vários truques do populismo de esquerda que sempre foi característico da região em diferentes épocas. Transformou o palácio presidencial em museu e foi morar em um apartamento modesto.

Vendeu o avião presidencial e viaja de econômica em voos comerciais. Circula em automóvel modesto apenas com seu motorista e um guarda-costas. De segunda a sexta-feira se apresenta, das 7 até às 8 horas da manhã, para entrevistas coletivas com a imprensa, durante as quais estabelece o assunto da conversa e fala de forma simples para o povo que ele diz representar — não tuíta muito.

O povo, por enquanto, está gostando: AMLO foi eleito com 54% dos votos, mas as últimas pesquisas de opinião mostram que ele tem índice de 80% de aprovação. Ou seja, quem não votou em AMLO está satisfeito com o que tem visto. Enquanto isso, o mercado anda preocupado.

A Pemex, empresa estatal de petróleo, foi recentemente rebaixada pelas principais agências de risco internacionais em razão das políticas de AMLO para a empresa e para o setor. O presidente insiste em construir refinarias que muitos julgam custosas e ineficientes e prometeu durante a campanha desfazer as reformas de seu antecessor responsáveis pela abertura do setor de óleo e gás. A Pemex é, hoje, a empresa de petróleo mais endividada do planeta, posição já ocupada pela Petrobras. Após o rebaixamento da nota de risco da Pemex e dos alertas das agências sobre a nota de risco do México, AMLO decidiu atacar as mensageiras em vez de reverter as políticas, em clara atitude populista.

Em clara atitude populista, AMLO também prometeu expandir programas de assistência social cujos retornos são baixos e cujos custos para o Orçamento são elevados, contrariando parte de sua equipe econômica. Caso leve esses planos adiante, porá em risco a situação fiscal do México, que poderá vir a ser agravada por rebaixamentos adicionais da Pemex ou da nota soberana. Caminhos tortos.

Entrevista/Anthony Giddens: Brexit não é simples caso de populismo

Para Anthony Giddens, ideólogo da Terceira Via, o Brexit não é simples caso de populismo e vivemos luta global sobre o futuro da democracia

Vivian Oswald | Valor Econômico

"Sou contra a ideia de que o mundo está se tornando dividido, caótico, porque é uma grande mistura. Isso é parte do problema", afirma Giddens

LONDRES - O divórcio do Reino Unido da União Europeia (UE) está num impasse e seu destino ainda é uma incógnita. "Ninguém sabe como vai terminar. Infelizmente, o processo causou muitos danos", diz Anthony Giddens, um dos mais importantes sociólogos britânicos. Ele foi ideólogo da Terceira Via e uma das principais influências do Novo Partido Trabalhista do ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair (1997-2007), além de ter ocupado cargos em diversas instituições públicas, acadêmicas e de ter sido consultor para países da Ásia, América Latina e Europa.

Em entrevista ao Valor, na casa de chá da Casa dos Lordes, da qual faz parte, Giddens lamentou o Brexit, falou de populismo e da revolução digital, um dos temas que o fascina. Defendeu o que chamou de "esquerda vanguardista", uma espécie de releitura pós-era digital da sua Terceira Via de 20 anos atrás - como resposta às grandes questões das sociedades contemporâneas, a britânica inclusive.

Nascido há 81 anos em Edmonton, no Norte da Inglaterra, uma das regiões que mais pode sofrer com a saída do Reino Unido da União Europeia, Giddens afirma que o Brexit não é um caso simples de populismo. O que está por vir ao fim desse processo que se arrasta desde o referendo de junho de 2016, diz, é motivo de preocupação. "Falta um plano aceitável e coerente para o país."

Giddens observa que o mundo nunca enfrentou tantos perigos, mas diz acreditar que as oportunidades são maiores. A resposta certeira ao "como vai?" do garçom que traz seu chá verde mostra, com boa dose de humor britânico, como se sente hoje: "Estou bem. Em melhor forma do que o mundo, espero".

Valor: O Reino Unido vive um momento decisivo. Com ou sem Brexit, o país continua dividido. É a mesma onda populista que varre o resto do mundo?

Anthony Giddens: O Brexit não é um caso simples de populismo. Não se pode encaixar o que está acontecendo com a história britânica em algum tipo de premissa global sobre o populismo. Temos que partir do princípio de que a relação entre o Reino Unido e o resto da Europa sempre foi marginal e difícil. [O primeiro-ministro] Winston Churchill foi uma das pessoas que lançou a União Europeia, mas disse que "vamos estar sempre meio destacados e vamos olhar para o 'mar aberto'". Isso significava o resto do mundo e o Atlântico, a seus olhos. Era uma época em que o império [britânico] estava substancialmente intacto. O Reino Unido sempre teve relação deslocada a respeito do resto da UE. Tem sido um processo fragmentado e caótico. Isso se soma às divisões a que você se refere, porque, quando iniciado, não foi um processo autêntico. [O ex-primeiro-ministro] David Cameron era pró-UE e só convocou o referendo para tentar sanar divisões dentro do seu partido, e não por visar o interesse nacional.

Valor: Por que a vitória do Brexit foi tão apertada diante dessa bagagem histórica?

Giddens: A coisa foi sequestrada por um grupo composto, em parte, por indivíduos bizarros. Isso pode ter contribuído para as fraturas no país. Mas o Reino Unido sempre debateu-se com a sua identidade. A famosa indagação de que o "Reino Unido perdeu o império e ainda não encontrou um papel para si" ainda se aplica. Esse é o pano de fundo do que acontece na vida real em diferentes partes do país. O Reino Unido é por si só uma entidade frágil. É por isso que o tema da Irlanda é tão central. Estive marginalmente envolvido com esse assunto no governo Tony Blair. Na Irlanda do Norte, criou-se o processo de paz, que agora está muito vulnerável. O que aconteceu foi [que o Brexit tratou de criar] uma espécie de efeito em cascata. O resultado foi muito apertado. Sabe-se que referendos podem ser afetados até pelo fato de estar chovendo. No dia seguinte, o resultado poderia ter sido outro. Se houvesse um líder trabalhista diferente, a direção poderia ter sido outra. Se o Brexit não tivesse acontecido, é possível que [Donald] Trump não fosse presidente dos EUA, porque o resultado foi definido por 134 mil votos em um universo de cerca de 130 milhões de eleitores. Há incertezas nesses processos, mas, depois que acontecem, não dá para voltar atrás facilmente. Para mim, há muitas coisas interligadas. Difícil prevê-las.

Valor: Qual a origem dessa polarização aqui?

Giddens: No caso do Reino Unido, são a história, o referendo e questões estruturais mais amplas, algumas das quais globais. Vivemos no mundo mais interconectado da história. Os eventos locais afetam os globais, e vice-versa. O pano de fundo estrutural para o que ocorre em tantos países pode ser a transição geopolítica da sociedade mundial, que é o relativo declínio da Europa e a dificuldade dos EUA com potências emergentes no começo do século asiático. As conquistas da China são inacreditáveis em termos de desenvolvimento econômico, saindo de um período de fome em massa nos anos de Mao [Tsé-tung]. Trump tem dificuldade de lidar com isso, e o Brexit está ligado a essa transição geopolítica em certa medida.

Valor: Qual o caminho para o mundo dividido?

Giddens: Todos vivem falando em divisões e antagonismos, mas é um mundo mais cheio de nuanças. Existem processos tremendos de integração global. Todo mundo está fazendo um "oba oba" em relação a uma crise da democracia. Ela existe, mas tem nuanças. Não sabemos no que vai dar, mas em quase todos os lugares existe uma reação. Estamos em meio a uma espécie de luta global sobre o futuro da democracia. Não acho que esteja resolvida. As forças opostas são muito fortes. O que acontecer nos EUA vai influenciar o futuro da história. Não sei como Trump vai reagir se for marginalizado na sua segunda eleição.

Continuação e inovação no BC: Editorial / O Estado de S. Paulo

Transformar o real em moeda conversível, negociada e usada muito mais amplamente, é a meta mais ambiciosa anunciada pelo novo presidente do Banco Central (BC), o economista Roberto Campos Neto. Mas ele precisará, com muito mais urgência, cuidar de assuntos mais prosaicos e fundamentais para a segurança, a recuperação e a dinamização da economia brasileira.

O primeiro ponto da agenda é muito claro: manter a inflação controlada por meio de uma política monetária prudente bem calibrada, como fez nos últimos anos a equipe chefiada por seu antecessor, Ilan Goldfajn. O segundo é cuidar da solidez e da segurança das instituições financeiras, prosseguindo um trabalho já bem executado no Brasil. O terceiro é avançar na pauta modernizadora, para tornar o mercado mais inclusivo, mais concorrencial, mais diversificado e mais eficiente na oferta e na canalização de recursos para a expansão e a transformação da economia.

Contrastando com vários colegas de governo e principalmente com o presidente da República, o novo chefe do BC reconheceu o importante trabalho realizado a partir de 2016. A primeira parte de seu discurso de posse, na quarta-feira, foi um balanço da política executada nesse período pela autoridade monetária.

Nesse período a inflação caiu de mais de 10% ao ano para pouco menos de 4%, e os juros básicos foram reduzidos de 14,25% para 6,50%. Ao mesmo tempo, o Executivo propôs e conseguiu a aprovação do teto de gastos e da reforma trabalhista e melhorou sensivelmente a gestão orçamentária. Reconhecer esses fatos foi mais que uma demonstração de polidez e de civilidade. Foi também um recado tranquilizador para quem espera equilíbrio e racionalidade na execução de complexas e importantes tarefas.

Desfecho positivo: Editoria / Folha de S. Paulo

Espera-se que cadastro de bons pagadores, com novas regras enfim aprovadas pelo Congresso, seja capaz de elevar a competição no sistema financeiro

Depois de longa tramitação, o Congresso aprovou o projeto de lei que amplia o alcance do cadastro positivo de crédito. Espera-se que o texto receba a sanção presidencial e facilite aos bons pagadores usufruir de sua condição, se assim quiserem, para obter empréstimos bancários a juros mais baixos.

De acordo com as regras previstas, informações atinentes ao histórico individual de pagamentos vão se tornar disponíveis para centrais gestoras de dados. Estas entidades poderão atribuir a cada pessoa física e jurídica uma nota, aberta para consulta por parte de potenciais ofertantes de financiamento.

As fontes de tais dados serão instituições que concedem crédito, comerciantes que realizam vendas a prazo e até prestadores de serviços de água, eletricidade e telecomunicações, entre outros.

Inverte-se o critério anterior, que exigia autorização prévia do cliente para que as informações pudessem ser oferecidas. Conforme o projeto, todos terão seus cadastros montados, a não ser que optem explicitamente pela exclusão.

Economia tenta recuperar o ímpeto perdido em abril: Editorial / Valor Econômico

A economia brasileira tenta agora, devagar, a recuperação da recuperação - os indicadores da indústria e do varejo de janeiro tentam voltar ao nível alcançado em abril de 2018, mês anterior ao esmorecimento das atividades, o da greve dos caminhoneiros. Falta ímpeto para a retomada, o que aparece nas revisões generalizadas do crescimento para o ano, em direção aos 2%, com viés de baixa. Há algum dinamismo na ponta (comparação de janeiro com dezembro), mas o resultado no acumulado em doze meses mostra recuo em vários setores do comércio e, especialmente, na indústria.

Emprego, crédito, dívidas e confiança devem dar pequena contribuição para o crescimento que, se tudo der certo, adquirirá mais dinamismo ao longo do ano. A perspectiva menos favorável é a do emprego, que não deve evoluir de forma significativa. Os números da massa salarial e da evolução dos salários deixaram de ser animadores, como foram quando a inflação desabou a partir de setembro de 2017. Os ganhos reais são mirrados e as contratações, idem.

O grau de endividamento é agora menor do que no início da recessão, a oferta de crédito voltou a crescer para as pessoas físicas, mas os juros ainda estão altos, o que reforça a cautela no consumo, ao lado da insegurança no emprego. Há grande expectativa com o choque de confiança que poderá vir da aprovação de uma boa reforma da previdência. Ainda que isso ocorra, ele só será sentido no segundo semestre, quando o Congresso terá colocado ponto final no assunto.

Arriscados acenos de mudanças na política externa: Editorial / O Globo

Teses do novo chanceler afrontam o pragmatismo e o multilateralismo com que o Itamaraty precisa agir

A opção de Jair Bolsonaro pelo embaixador pouco experiente Ernesto Araújo para ser ministro das Relações Exteriores podia ser entendida como um saudável interesse pela renovação. Sem nunca ter chefiado uma embaixada, nada impedia que Araújo pudesse levar novos e bem-vindos ares ao Itamaraty.

O secular ministério, como toda instituição do tipo, tem ritos e liturgias. Vários foram quebrados com a ascensão de Ernesto Araújo. Mas o problema mesmo são as teses que o novo chanceler tem defendido. Ao ser anunciado, houve a natural busca por informações sobre o perfil do futuro chanceler, e as que foram levantadas não se mostraram animadoras.

Pelos textos publicados nas redes sociais e fora delas, Araújo se alinha ao conservadorismo religioso em que o presidente americano Donald Trump se sustenta. Em si, nenhum problema. Mas o chanceler demonstrou professar uma visão de mundo do trumpismo, que dificilmente desbancará os Estados Unidos da posição hegemônica que ocupa. Porém, aplicada ao Brasil, país com mazelas decorrentes de uma cultura atávica de fechamento ao exterior, poderá ser trágica, atrasando ainda mais a modernização de sua economia.

A pergunta permanece: Editorial / Veja

A quem interessava matar Marielle Franco?

Na edição em que noticiou a execução de Marielle Franco, VEJA trouxe na capa algo bastante raro — uma pergunta. Algo raro porque a revista evita estampar interrogações na capa por entender que sua missão é oferecer respostas aos leitores, e não perguntas. A execução da vereadora carioca, assassinada com quatro tiros na cabeça, mereceu tratamento incomum por duas razões. Primeiro, porque estava evidente, desde a primeira hora, que Marielle fora vítima de um crime encomendado. Segundo, porque, exercendo ela um mandato parlamentar conquistado nas urnas, seu assassinato representa, como bem definiu o então presidente Michel Temer, um “atentado à democracia”. Por tudo isso, a pergunta se apresentava como um imperativo: a quem interessava matar Marielle Franco?

Pois na semana passada, um ano depois do crime, a polícia prendeu dois suspeitos. Um é o policial militar reformado Ronnie Lessa, suspeito de disparar os catorze tiros que atingiram o carro que levava a vereadora, matando a ela e seu motorista, Anderson Gomes. O outro é o ex-policial militar Elcio Vieira de Queiroz, expulso da corporação há quatro anos, acusado de dirigir o veículo usado na emboscada. Os dois são apontados como membros de uma praga que se dissemina no Brasil, particularmente no Rio de Janeiro: as chamadas milícias — organizações criminosas formadas por policiais e ex-¬policiais que, ditando a lei do mais forte, espalham o terror nos morros e favelas cariocas.

Como acontece com quase tudo no Brasil de hoje, o crime tem servido para fomentar disputas ideológicas, uma vez que a vítima era vereadora do PSOL, negra, feminista, gay e defensora dos direitos humanos — e a disputa tende a ficar ainda mais acirrada agora que veio a público que os principais suspeitos da execução são milicianos tradicionalmente avessos às bandeiras de esquerda. O proselitismo político vai perdurar, mas a busca pela identidade dos mandantes do crime não decorre de nenhuma exigência ideológica. Não é uma demanda de esquerda ou de direita. É uma questão de sobrevivência da democracia, da integridade das instituições, da civilidade.

A resposta que falta: Editorial / Época

Às vésperas de o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes completar um ano, a Polícia Civil e o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro prenderam e formalizaram a acusação por duplo homicídio contra um policial militar reformado e um ex-policial militar. A longa demora na apresentação de resposta ao crime gerou reiteradas — e justificadas — manifestações de preocupação por parte de entidades ligadas à defesa dos direitos humanos. Afinal, aprofundados estudos de investigação criminal demonstram que as primeiras 48 horas após o homicídio são decisivas para a efetiva elucidação do assassinato. Quanto mais os investigadores se afastam desse prazo sem a prisão de um suspeito, menor chance têm de obter sucesso em apontar o criminoso responsável.

Nas primeiras horas seguintes ao assassinato de Marielle e Anderson, a Polícia Civil parecia tão desorientada que não foram poucos aqueles que apostaram que o crime aumentaria o absurdamente alto índice de homicídios não solucionados no estado do Rio. Para ter ideia precisa, dos 6.695 homicídios ocorridos no estado no ano passado, pouco mais de 800 foram esclarecidos — apenas 12%. Parte desse fracasso pode ser atribuída a uma política de segurança pública equivocada, em que ações de confronto despendem mais recursos humanos e financeiros do que ações de inteligência e investigação.

Não se pode deixar de registrar como auspiciosa surpresa o trabalho técnico, minucioso e recheado de indícios relevantes apresentado na terça-feira 12 pela Polícia Civil e pelo Ministério Público na operação que resultou na prisão de Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, denunciados pelos homicídios qualificados de Marielle e Anderson e pela tentativa de homicídio da assessora Fernanda Chaves. O crime foi arquitetado e levado a cabo por homens experientes e treinados, ex-agentes públicos com suspeita de extensa folha de serviços prestados a contraventores, milicianos e outros frequentadores do submundo marginal.

Carlos Drummond de Andrade: Canto do Rio em Sol

I
Guanabara, seio, braço
de a-mar:
em teu nome, a sigla rara
dos tempos do verbo mar.

Os que te amamos sentimos
e não sabemos cantar:
o que é sombra do Silvestre
sol da Urca
dengue flamingo
mitos da Tijuca de Alencar.

Guanabara, saia clara
estufando em redondel:
que é carne, que é terra e alísio
em teu crisol?

Nunca vi terra tão gente
nem gente tão florival.
Teu frêmito é teu encanto
(sem decreto) capital.

Agora, que te fitamos
nos olhos,
e que neles pressentimos
o ser telúrico, essencial,
agora sim és Estado
de graça, condado real.

II
Rio, nome sussurrante,
Rio que te vais passando
a mar de estórias e sonhos
e em teu constante janeiro
corres pela nossa vida
como sangue, como seiva
-- não são imagens exangues
como perfume na fronha
... como pupila do gato
risca o topázio no escuro.
Rio-tato-
-vista-gosto-risco-vertigem
Rio-antúrio

Rio das quatro lagoas
de quatro túneis irmãos
Rio em ã
Maracanã
Sacopenapã
Rio em ol em amba em umba sobretudo em inho
de amorzinho
benzinho
dá-se um jeitinho
do saxofone de Pixinguinha chamando pela Velha Guarda
como quem do alto do Morro Cara de Cão
chama pelos tamoios errantes em suas pirogas
Rio, milhão de coisas
luminosardentissuavimariposas:
como te explicar à luz da Constituição?

III
Irajá Pavuna Ilha do Gato
-- emudeceram as aldeias gentílicas?
A Festa das Canoas dispersou-se?
Junto ao Paço já não se ouve o sino de São José
pastoreando os fiéis da várzea?
Soou o toque do Aragão sobre a cidade?

Não não não não não não não

Rio, mágico, dás uma cabriola,
teu desenho no ar é nítido como os primeiros grafismos,
teu acordar, um feixe de zínias na correnteza esperta do tempo
o tempo que humaniza e jovializa as cidades.
Rio novo a cada menino que nasce
a cada casamento
a cada namorado
que te descobre enquanto rio-rindo.
assistes ao pobre fluir dos homens e de suas glórias pré-fabricadas.

Elis Regina, Águas de março (Tom Jobim)