- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
Não faz sentido exigir anos de contribuição quando o mercado de trabalho vai ser radicalmente alterado
Que alívio o artigo do André Lara Resende, aqui no Valor! Inteligente, ponderado e cheio de ideias. Contrasta com os artigos que congestionam os jornais e bradam como profetas que se a reforma da previdência não for aprovada volta a hiperinflação e continua a estagnação.
Pode ser. Mas falta análise, descrição, contra-argumento. São sermões ameaçadores - sem a reforma da previdência, o inferno. Mas não explicam como. Hiperinflação ou revolução popular pela falta de pagamento das aposentadorias e pensões? Talvez a unanimidade sem explicações resulte da fé num paradigma comum sobre o qual não há reflexões.
O André questiona o paradigma. O paradigma que usam é conhecido - com o déficit público, a quantidade de moeda cresce, vem a inflação ou a hiperinflação. Uma forma de pensar do final do século XIX e que Keynes, Minski, Kalecki e o Abba Lerner, que o André cita, substituíram por outro paradigma após a crise de 1930. O novo paradigma teve vida curta, de 45 a 80 aproximadamente, os anos dourados do capitalismo, a social democracia. A partir dos anos 80 e até hoje, voltamos ao pensamento do século XIX, repaginado, mas com os mesmos fundamentos. O pensamento econômico é assim mesmo - oscila para lá e para cá embalado pelas contradições da economia capitalista.
A crise de 2008 inaugurou um período de dúvidas e formulação de novas teorias na academia, no Banco Mundial e até no FMI. A dívida pública explodiu nos Estados Unidos e na Europa, é muito grande no Japão e não há sinais de inflação ou expulsão (crowding out) dos investimentos privados. No Brasil, o pensamento hegemônico não mudou.
São muitas coisas novas que o André resgata e analisa. Fico com uma só - o dinheiro é uma unidade de conta. Assim a estabilidade dos preços depende que esta unidade de conta seja estável. Keynes argumenta no capítulo 17 que para existir dinheiro é preciso que os salários nominais sejam rígidos! E no livro vai mais longe - se forem flexíveis, o dinheiro não existe e, pior ainda, se forem reduzidos, o desemprego aumenta.
Outros concluíram tardiamente que a quantidade de moeda não é relevante, pois não existe uma moeda, mas uma hierarquia de dinheiros - o papel moeda, a dívida pública, os créditos privados, "repos" e "reverse repos" etc.
Qual a implicação disto tudo, particularmente para o Brasil, hoje?
Primeiro, se a reforma da previdência não for aprovada e o déficit e a dívida pública crescerem, acontece o que? A resposta dos clássicos e do governo - hiperinflação? Não sei, pode ser. Mas no paradigma pós-30 e na situação atual dos Estados Unidos, do Japão e até mesmo da União Europeia isto não aconteceu. A dívida pública pode crescer e ao contrário do senso comum de hoje, pode acontecer simplesmente um grande aumento da liquidez (dívida pública é uma forma de dinheiro). E daí? Não sei. Sei apenas, como o André, que ela não pode crescer sempre ou exponencialmente para o infinito. Algo precisa ser feito.
A Previdência é a parte mais importante da política de seguridade social no país. Mas o mundo mudou: a expectativa de vida aumentou, o mercado de trabalho se modifica e no futuro será algo muito diferente do que é hoje. A reforma proposta é direcionada apenas para a redução do déficit e deixa de lado o objetivo da previdência que é oferecer amparo e renda para a população. A reforma proposta pretende apenas diminuir os benefícios e aumentar as contribuições, ou seja, reduzir o déficit. Está focada apenas no déficit, como afirma o André. Mas e os objetivos da Previdência, o amparo da população mais velha, do desempregado?
Se isto for verdade, a reforma da previdência poderia ser pensada de outra forma. Podemos acabar com a previdência da forma que existe hoje e pagar todos os direitos adquiridos de quem contribui para a previdência, pagando os detentores destes direitos com dívida pública. A dívida dará um pulo relativamente grande, mas para de crescer. Se os juros reais forem menores do que a taxa de crescimento do produto, nenhum problema. Aliás este é um resultado famoso dos monetaristas de Chicago.
Extinta a previdência como existe hoje, podemos substitui-la por outro mecanismo de previdência e seguridade social. Pode ser a renda mínima. Não faz sentido exigir anos de contribuição quando o mercado de trabalho vai ser profundamente alterado - com robotização, precarização. Este é um modelo do passado, do tempo das linha de produção fordiana. Num futuro próximo, nem os japoneses, nem os funcionários da Ford, da GM conseguem trabalhar 30 anos numa grande corporação.
A reforma proposta corta o déficit diminuindo o número de beneficiários. A previdência existe, mas atende muito poucos. É como reformar um carro velho, retificando o motor, dando uma nova pintura - o resultado ainda é um carro, que ainda quebra um galho, mas seria muito melhor comprar outro.
A previdência gasta mais ou menos R$ 600 bilhões por ano, sem o déficit. Com estes mesmos gastos, é possivel pagar R$ 2 mil por ano para cada brasileiro desde que nasceu. Com esta renda, pode-se levantar crédito, garantir uma aposentadoria, e muito mais. Um brasileiro de 60 anos teria R$ 120 mil de renda extra. Sua família, R$ 360 ou R$ 480 mil. Para 90 % dos brasileiros, é uma fortuna. O efeito sobre a juventude seria imenso - menos violência, mais educação. Para os velhos, mais segurança. Para os desempregados, mais amparo.
É uma ideia radical e, aqui, mal formulada. Mas muito melhor do que exigir 30 anos de contribuição das novas gerações. Alguns países já adotam esta alternativa.
Para avançar é preciso que nos livremos dos paradigmas do século XIX. É difícil, mas o artigo do André abre esta e muitas outras perspectivas. Não é para agora. Agora temos que esperar que os Torquemadas e Savonarolas que estão no governo sejam substituídos. Sou pessimista, vai demorar. Sou otimista, o Renascimento prosseguiu apesar destes estrupícios.
*João Sayad é professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.
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