DEU EM O ESTADO DE S. PAULO (15/11/2009)
Há 20 anos, neste espaço, analisando a queda do Muro de Berlim, escrevi um artigo intitulado ... e o mundo mudou! O artigo estava voltado para realçar que o Muro era um símbolo da guerra fria e que esta caracterizou a dinâmica da vida internacional no pós-2ª Guerra Mundial e impactou globalmente as concepções sobre os modos de organizar as sociedades. Por isso a sua queda antecipava uma mudança do paradigma de funcionamento do sistema internacional.
O artigo apontava que, subjacente à constituição formal da ordem internacional, da qual o grande texto era e é a Carta da ONU, existia uma constituição material. O Muro de Berlim, que separava a Europa Ocidental da Oriental, era um dos grandes símbolos dessa constituição material, vale dizer, da efetividade das forças configuradoras da operação do sistema internacional.
A constituição material da guerra fria é explicável pelas relações de conflito e cooperação entre duas superpotências, os EUA e a União Soviética (URSS). Estas, na era nuclear, passaram a ter um papel decisivo na definição, em escala planetária, das possibilidades de paz e dos riscos da guerra - a situação-limite da vida internacional. A razão estratégica desse período era comandada pelo equilíbrio do terror da dissuasão nuclear.
Neste contexto vicejou, na interação Leste-Oeste, o empenho competitivo na obtenção da primazia, por meios distintos, de uma abrangente ação militar, pois esta poria em risco, em função do poder destrutivo das armas nucleares, a própria sobrevivência da humanidade. Daí a batalha ideológica, alianças militares como a OTAN e o Pacto de Varsóvia, guerras regionalmente localizadas, como a da Coreia e a do Vietnã, e a dinâmica que permeou o processo de descolonização da África e da Ásia.
Nesse cenário, a relativa estabilidade do equilíbrio do terror foi consolidando interdependências econômicas, abriu caminho para uma renovada presença da Alemanha Ocidental e do Japão no mundo (os derrotados da 2ª Guerra Mundial) e permitiu a inovadora criação do Mercado Comum Europeu.
A relativa estabilidade da guerra fria e sua dinâmica ensejaram a inclusão, na constituição material, da polaridade Norte-Sul, que se agregou à polaridade Leste-Oeste. A polaridade Norte-Sul, fruto das desigualdades da estratificação internacional, foi-se afirmando, como um ativo terceiro diplomático, nas brechas da polaridade Leste-Oeste. O terceiro-mundismo levou, nos ano 50, ao Movimento dos Não-Alinhados e, nos anos 60, no campo econômico, ao Grupo dos 77, direcionados para uma afirmação de um papel próprio para os países subdesenvolvidos na vida internacional.
A queda do Muro de Berlim foi uma indicação de que estavam mudando os padrões de funcionamento da vida mundial. Tinha, por isso, a natureza de um histórico evento inaugural. Sinalizava não só a desagregação como os desastres da utopia política, que a Revolução Russa emblematizou. Permitiu a reunificação da Alemanha, mas deixou pendente a divisão da Coreia.
Há 20 anos, neste espaço, analisando a queda do Muro de Berlim, escrevi um artigo intitulado ... e o mundo mudou! O artigo estava voltado para realçar que o Muro era um símbolo da guerra fria e que esta caracterizou a dinâmica da vida internacional no pós-2ª Guerra Mundial e impactou globalmente as concepções sobre os modos de organizar as sociedades. Por isso a sua queda antecipava uma mudança do paradigma de funcionamento do sistema internacional.
O artigo apontava que, subjacente à constituição formal da ordem internacional, da qual o grande texto era e é a Carta da ONU, existia uma constituição material. O Muro de Berlim, que separava a Europa Ocidental da Oriental, era um dos grandes símbolos dessa constituição material, vale dizer, da efetividade das forças configuradoras da operação do sistema internacional.
A constituição material da guerra fria é explicável pelas relações de conflito e cooperação entre duas superpotências, os EUA e a União Soviética (URSS). Estas, na era nuclear, passaram a ter um papel decisivo na definição, em escala planetária, das possibilidades de paz e dos riscos da guerra - a situação-limite da vida internacional. A razão estratégica desse período era comandada pelo equilíbrio do terror da dissuasão nuclear.
Neste contexto vicejou, na interação Leste-Oeste, o empenho competitivo na obtenção da primazia, por meios distintos, de uma abrangente ação militar, pois esta poria em risco, em função do poder destrutivo das armas nucleares, a própria sobrevivência da humanidade. Daí a batalha ideológica, alianças militares como a OTAN e o Pacto de Varsóvia, guerras regionalmente localizadas, como a da Coreia e a do Vietnã, e a dinâmica que permeou o processo de descolonização da África e da Ásia.
Nesse cenário, a relativa estabilidade do equilíbrio do terror foi consolidando interdependências econômicas, abriu caminho para uma renovada presença da Alemanha Ocidental e do Japão no mundo (os derrotados da 2ª Guerra Mundial) e permitiu a inovadora criação do Mercado Comum Europeu.
A relativa estabilidade da guerra fria e sua dinâmica ensejaram a inclusão, na constituição material, da polaridade Norte-Sul, que se agregou à polaridade Leste-Oeste. A polaridade Norte-Sul, fruto das desigualdades da estratificação internacional, foi-se afirmando, como um ativo terceiro diplomático, nas brechas da polaridade Leste-Oeste. O terceiro-mundismo levou, nos ano 50, ao Movimento dos Não-Alinhados e, nos anos 60, no campo econômico, ao Grupo dos 77, direcionados para uma afirmação de um papel próprio para os países subdesenvolvidos na vida internacional.
A queda do Muro de Berlim foi uma indicação de que estavam mudando os padrões de funcionamento da vida mundial. Tinha, por isso, a natureza de um histórico evento inaugural. Sinalizava não só a desagregação como os desastres da utopia política, que a Revolução Russa emblematizou. Permitiu a reunificação da Alemanha, mas deixou pendente a divisão da Coreia.
Antecipou a decomposição da URSS e do edifício interestatal do Leste Europeu através do qual se articulava o poderio político e econômico do grande polo do "socialismo real". Prenunciou o fim do comunismo como movimento global. Abriu espaço para a primazia política e econômica dos EUA, que deixou de ter a instigação para mudanças sociais do capitalismo que a presença da URSS no mundo propiciava.
A Rio-92, a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, explicitou diplomaticamente o fim da lógica das polaridades definidas. Nela prevaleceu um horizonte de cooperação no trato de um tema global que, sem desconhecer a existência dos conflitos de interesses e de posições, não se caracterizou pelo confronto de concepções sobre a ordem mundial na linha da prévia constituição material da guerra fria. A Rio-92 emblematizou as expectativas da década de 90 sobre as possibilidades da construção de uma ordem mundial mais pacífica, menos tensa e mais apta a dirimir controvérsias por meio da diplomacia e do Direito. Essas expectativas não se materializaram no século 21, como assinalaram a ação terrorista de 11 de setembro de 2001 contra os EUA e seus desdobramentos na vida internacional.
O cenário contemporâneo, 20 anos após a queda do Muro, explicita uma nova geografia diplomática, inequivocamente distinta da guerra fria. Abriu espaço para uma maior multipolaridade, da qual o G-20, com a sua geometria variável, é uma expressão. Consagrou a China como um novo ator global. Criou novas oportunidades para a atuação da Índia e do Brasil e vem levando a uma redefinição do papel internacional da Rússia.
É, no entanto, um cenário de tensões difusas e sem o foco de uma clara constituição material, pois o mundo vem operando pela ação simultânea e contraditória das forças centrípetas da globalização e pelas forças centrífugas da lógica da fragmentação. Por isso não há unidade no trato da complexidade da agenda internacional. Esta hoje passa 1) pela intensidade das políticas de reconhecimento e identidade; 2) pelas ambições normativas presentes na sociedade internacional, de que a pauta dos direitos humanos é um exemplo; 3) pela violência transnacional e pelos conflitos bélicos interestatais, que não transitam por uma visão compartilhada de segurança coletiva; 4) pelos desafios da governança de uma economia globalizada num mundo caracterizado pela desigualdade e pelos riscos; 5) pelo alcance planetário do desafio ecológico; e 6) pelas especificidades próprias das regiões (por exemplo, Ásia, Oriente Médio, América Latina) e, consequentemente, do papel do regionalismo na arquitetura da ordem política global. É neste contexto hobbesiano de tensões de hegemonia e de equilíbrio que se move a política externa brasileira. Nela não cabe a entusiasmada subjetividade da ilusão triunfalista.
Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC
A Rio-92, a Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, explicitou diplomaticamente o fim da lógica das polaridades definidas. Nela prevaleceu um horizonte de cooperação no trato de um tema global que, sem desconhecer a existência dos conflitos de interesses e de posições, não se caracterizou pelo confronto de concepções sobre a ordem mundial na linha da prévia constituição material da guerra fria. A Rio-92 emblematizou as expectativas da década de 90 sobre as possibilidades da construção de uma ordem mundial mais pacífica, menos tensa e mais apta a dirimir controvérsias por meio da diplomacia e do Direito. Essas expectativas não se materializaram no século 21, como assinalaram a ação terrorista de 11 de setembro de 2001 contra os EUA e seus desdobramentos na vida internacional.
O cenário contemporâneo, 20 anos após a queda do Muro, explicita uma nova geografia diplomática, inequivocamente distinta da guerra fria. Abriu espaço para uma maior multipolaridade, da qual o G-20, com a sua geometria variável, é uma expressão. Consagrou a China como um novo ator global. Criou novas oportunidades para a atuação da Índia e do Brasil e vem levando a uma redefinição do papel internacional da Rússia.
É, no entanto, um cenário de tensões difusas e sem o foco de uma clara constituição material, pois o mundo vem operando pela ação simultânea e contraditória das forças centrípetas da globalização e pelas forças centrífugas da lógica da fragmentação. Por isso não há unidade no trato da complexidade da agenda internacional. Esta hoje passa 1) pela intensidade das políticas de reconhecimento e identidade; 2) pelas ambições normativas presentes na sociedade internacional, de que a pauta dos direitos humanos é um exemplo; 3) pela violência transnacional e pelos conflitos bélicos interestatais, que não transitam por uma visão compartilhada de segurança coletiva; 4) pelos desafios da governança de uma economia globalizada num mundo caracterizado pela desigualdade e pelos riscos; 5) pelo alcance planetário do desafio ecológico; e 6) pelas especificidades próprias das regiões (por exemplo, Ásia, Oriente Médio, América Latina) e, consequentemente, do papel do regionalismo na arquitetura da ordem política global. É neste contexto hobbesiano de tensões de hegemonia e de equilíbrio que se move a política externa brasileira. Nela não cabe a entusiasmada subjetividade da ilusão triunfalista.
Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Brasileira de Letras, foi ministro das Relações Exteriores no governo FHC
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