DEU NO VALOR ECONÔMICO
A intensificação, eleitoralmente motivada, da discussão sobre os feitos e malfeitos do governo Luiz Inácio Lula da Silva traz de novo à tona o embate de velhas concepções sobre a conformação e o papel do Estado numa sociedade capitalista, cujo reexame pode valer a pena.
Há três perspectivas básicas a destacar. Uma, a perspectiva liberal, salienta no Estado sobretudo um sujeito ou foco autônomo de poder a ser contido. Outra, a crítica marxista, vê no Estado um instrumento de relações de dominação produzidas na esfera "social" ou privada e apropriado pelos detentores do poder correspondente, que o usam na promoção dos seus interesses próprios. A terceira perspectiva (aliás presente também como contraface da própria crítica marxista do Estado capitalista, apesar da fantasia utópica da obtenção da harmonia na sociedade sem Estado) enxerga o Estado como possível instrumento de neutralização de relações "sociais" ou privadas de poder, ou como instrumento potencial de todos - o que implica, naturalmente, a ideia de um Estado que age e intervém em nome de objetivos solidários e em alguma medida igualitários. Tais objetivos podem reduzir-se inicialmente, de um ponto de vista liberal mais estrito, à garantia dos direitos civis ou da autonomia dos cidadãos perante o Estado (da "igualdade perante a lei"); mas não há como escapar, na dinâmica sociopolítica cotidiana, da pergunta sobre como conter as ameaças tanto "estatais" quanto sociais e privadas à autonomia, e o tema clássico das "condições sociais da democracia política (liberal)" acaba por articular-se de modo complicado com o das "condições políticas da democracia social" - e na verdade também das "condições políticas da democracia política"... Em todo caso, em vez de mera "contenção", as exigências quanto ao Estado se tornam contraditórias, e o desafio é de construção institucional laboriosa: ele tem de ser capaz de autolimitar-se, mas também de constituir-se em arena aberta à manifestação de interesses diversos, por um lado, e em agente capaz de atuar com eficiência na agregação desses interesses e na promoção do resultado democraticamente aceitável da agregação, por outro. Não admira que as confusões se multipliquem no mero plano intelectual - sem falar do choque de diferentes posições políticas e valorativas.
Assim, se tomamos o tema específico do corporativismo (sobre o qual já andei escrevendo aqui) como ponto focal de algumas das manifestações recentes, são bem claras as razões da feição negativa que essas manifestações ressaltaram. Afinal, "corporativismo" (quando não reduzido à identificação com os interesses estreitos de uma categoria ou outra) remete ao fascismo ou a Estados que controlam autoritariamente grupos ou setores economicamente relevantes. No entanto, a ciência política internacional acordou há algum tempo para o fato de que a dinâmica da democracia nos países avançados levava por si mesma a pactos corporativos em que, sob o patrocínio do Estado democrático, sindicatos trabalhistas e associações empresariais foram trazidos a participar de importantes decisões de política econômica e social. Apesar de questionamentos, e dos reajustes exigidos pela onda "neoliberal" imposta pela globalização, a reviravolta levou mesmo, de maneira não muito consistente, à busca de nomes novos em que a contribuição democrática do "neocorporativismo" pudesse ser separada do autoritarismo que se supunha inerente ao corporativismo como tal.
O tema geral das políticas sociais e dos mecanismos de "welfare" são outro ponto correlato de confusão. Além da concepção em que o próprio Estado de bem-estar surge internacionalmente como atendendo a uma necessidade funcional do capitalismo e, no limite, como manipulação destinada a legitimá-lo, nossa própria experiência com a previdência social já foi ligada com a face mais feia do corporativismo: ela mostraria uma "cidadania regulada", como a chamou Wanderley G. dos Santos, equivalente à definição autoritária da cidadania por referência a parâmetros corporativos em que se destacam a regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicato público. Mas, além de que a "regulação" da cidadania redunda em algo imperioso na perspectiva da "juridificação" das relações sociais que nem a simples visão liberal do Estado pode dispensar, a inconsistência da caracterização acaba surgindo com clareza em que na verdade se cobra mais regulação, e não menos, na denúncia de um processo de proteção social que, favorecendo o seguro social e a contribuição paga pelo segurado, consagra diferenças que vêm do mercado... A tensão e a confusão entre uma visão de "autoritarismo" do Estado e outra de "paternalismo" por parte dele é bem clara na literatura que Santos exemplifica - como se não bastasse o que ocorre quanto à ideia de paternalismo, já de si objeto frequente de denúncias desatentas para o fato de que o Estado democrático não pode ser apenas aquele que responda à capacidade de pressão dos interesses de força desigual.
Num nível de filosofia política abstrata, é possível contrapor, como se faz há tempos, uma posição "utilitarista", em que o Estado surge como o agente imparcial do todo, à posição "contratualista" em que agentes autônomos deliberam sobre a conformação (a "constituição") a ser dada à ordem social. Contudo, o problema "constitucional" decorre justamente da diversidade e do frequente antagonismo dos interesses autônomos. Se se quiser evitar ou superar a violência em formas diversas, a meta não pode deixar de ser um Estado capaz de aderir ao ponto de vista do todo. E de construir "amálgamas" em que a distribuição tão igualitária e democrática quanto possível de poder não impeça a produção de poder e a eficiência do ponto de vista de objetivos passíveis de serem tomados como objetivos coletivos.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
A intensificação, eleitoralmente motivada, da discussão sobre os feitos e malfeitos do governo Luiz Inácio Lula da Silva traz de novo à tona o embate de velhas concepções sobre a conformação e o papel do Estado numa sociedade capitalista, cujo reexame pode valer a pena.
Há três perspectivas básicas a destacar. Uma, a perspectiva liberal, salienta no Estado sobretudo um sujeito ou foco autônomo de poder a ser contido. Outra, a crítica marxista, vê no Estado um instrumento de relações de dominação produzidas na esfera "social" ou privada e apropriado pelos detentores do poder correspondente, que o usam na promoção dos seus interesses próprios. A terceira perspectiva (aliás presente também como contraface da própria crítica marxista do Estado capitalista, apesar da fantasia utópica da obtenção da harmonia na sociedade sem Estado) enxerga o Estado como possível instrumento de neutralização de relações "sociais" ou privadas de poder, ou como instrumento potencial de todos - o que implica, naturalmente, a ideia de um Estado que age e intervém em nome de objetivos solidários e em alguma medida igualitários. Tais objetivos podem reduzir-se inicialmente, de um ponto de vista liberal mais estrito, à garantia dos direitos civis ou da autonomia dos cidadãos perante o Estado (da "igualdade perante a lei"); mas não há como escapar, na dinâmica sociopolítica cotidiana, da pergunta sobre como conter as ameaças tanto "estatais" quanto sociais e privadas à autonomia, e o tema clássico das "condições sociais da democracia política (liberal)" acaba por articular-se de modo complicado com o das "condições políticas da democracia social" - e na verdade também das "condições políticas da democracia política"... Em todo caso, em vez de mera "contenção", as exigências quanto ao Estado se tornam contraditórias, e o desafio é de construção institucional laboriosa: ele tem de ser capaz de autolimitar-se, mas também de constituir-se em arena aberta à manifestação de interesses diversos, por um lado, e em agente capaz de atuar com eficiência na agregação desses interesses e na promoção do resultado democraticamente aceitável da agregação, por outro. Não admira que as confusões se multipliquem no mero plano intelectual - sem falar do choque de diferentes posições políticas e valorativas.
Assim, se tomamos o tema específico do corporativismo (sobre o qual já andei escrevendo aqui) como ponto focal de algumas das manifestações recentes, são bem claras as razões da feição negativa que essas manifestações ressaltaram. Afinal, "corporativismo" (quando não reduzido à identificação com os interesses estreitos de uma categoria ou outra) remete ao fascismo ou a Estados que controlam autoritariamente grupos ou setores economicamente relevantes. No entanto, a ciência política internacional acordou há algum tempo para o fato de que a dinâmica da democracia nos países avançados levava por si mesma a pactos corporativos em que, sob o patrocínio do Estado democrático, sindicatos trabalhistas e associações empresariais foram trazidos a participar de importantes decisões de política econômica e social. Apesar de questionamentos, e dos reajustes exigidos pela onda "neoliberal" imposta pela globalização, a reviravolta levou mesmo, de maneira não muito consistente, à busca de nomes novos em que a contribuição democrática do "neocorporativismo" pudesse ser separada do autoritarismo que se supunha inerente ao corporativismo como tal.
O tema geral das políticas sociais e dos mecanismos de "welfare" são outro ponto correlato de confusão. Além da concepção em que o próprio Estado de bem-estar surge internacionalmente como atendendo a uma necessidade funcional do capitalismo e, no limite, como manipulação destinada a legitimá-lo, nossa própria experiência com a previdência social já foi ligada com a face mais feia do corporativismo: ela mostraria uma "cidadania regulada", como a chamou Wanderley G. dos Santos, equivalente à definição autoritária da cidadania por referência a parâmetros corporativos em que se destacam a regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicato público. Mas, além de que a "regulação" da cidadania redunda em algo imperioso na perspectiva da "juridificação" das relações sociais que nem a simples visão liberal do Estado pode dispensar, a inconsistência da caracterização acaba surgindo com clareza em que na verdade se cobra mais regulação, e não menos, na denúncia de um processo de proteção social que, favorecendo o seguro social e a contribuição paga pelo segurado, consagra diferenças que vêm do mercado... A tensão e a confusão entre uma visão de "autoritarismo" do Estado e outra de "paternalismo" por parte dele é bem clara na literatura que Santos exemplifica - como se não bastasse o que ocorre quanto à ideia de paternalismo, já de si objeto frequente de denúncias desatentas para o fato de que o Estado democrático não pode ser apenas aquele que responda à capacidade de pressão dos interesses de força desigual.
Num nível de filosofia política abstrata, é possível contrapor, como se faz há tempos, uma posição "utilitarista", em que o Estado surge como o agente imparcial do todo, à posição "contratualista" em que agentes autônomos deliberam sobre a conformação (a "constituição") a ser dada à ordem social. Contudo, o problema "constitucional" decorre justamente da diversidade e do frequente antagonismo dos interesses autônomos. Se se quiser evitar ou superar a violência em formas diversas, a meta não pode deixar de ser um Estado capaz de aderir ao ponto de vista do todo. E de construir "amálgamas" em que a distribuição tão igualitária e democrática quanto possível de poder não impeça a produção de poder e a eficiência do ponto de vista de objetivos passíveis de serem tomados como objetivos coletivos.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
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