Valor Econômico
Saber quem são, de verdade, os governadores
que bajulam o ex-presidente e se vendem como moderados é central para o futuro
do país. Afinal, é preciso saber com quem se contará na próxima pancada de
Trump
O presidente Trump causou duas hecatombes no
Brasil em uma só tacada. A primeira com o aumento escandaloso de 50% das
tarifas, algo mais próximo de uma sanção contra uma nação inimiga. A segunda
foi a forma que propôs para rever a decisão: bastava que as instituições
brasileiras salvassem a família Bolsonaro - o pai Jair e o filho Eduardo -, que
tudo seria esquecido. Essa vendeta trumpista, típica de mafioso, foi apoiada
pelos governadores Zema, Tarcísio, Ratinho Jr. e Caiado, que depois se
arrependeram, mas sem romper com o “mito”. Após esse escorregão, fica a
pergunta: esse grupo da direita brasileira é incapaz de entender o perverso
significado do bolsonarismo?
Quem se surpreendeu com esse casamento entre Trump e os Bolsonaros, e o tipo de decisão que produziram, ficou os últimos anos fora do planeta Terra - ou então concorda com a forma extremista que pensam. Em relação ao presidente americano, a intempestividade e a chantagem são marcas de seus governos, tendo crescido ainda mais agora por ter ampliado o seu poder. O Brasil não é o primeiro a sofrer com isso. O trumpismo, como toda a extrema direita que se alimenta das ideias totalitárias de Carl Schmitt, segue a lógica do amigo versus o inimigo, tanto no plano interno como no externo. E o presidente Lula é certamente um alvo preferencial de Trump.
O sentimento de guerra contra o lulismo está
contido em dois elementos. O primeiro é ideológico, e o segundo, geopolítico.
Começando por esse último, Trump pretende ampliar seu poder nas áreas
americanas de influência e evitar que países estratégicos saiam de seu
controle. O Brasil é um deles, especialmente por suas fortes relações com a
China - esqueçam o Brics, uma arena de diálogo entre nações muito heterogêneas
que por ora nem cócegas faz nos Estados Unidos.
Resumo da ópera trumpista: o Brasil fica nas
Américas e é grande demais para estar mais próximo da China do que dos EUA.
Trump irá usar chantagens comerciais e ameaças contra as instituições públicas
dos países para conseguir seu intento de ser o novo imperador de um mundo
dominado pelos Estados Unidos, sem repartição de hegemonia. Nesta situação, a
soberania brasileira está em jogo, é preciso defendê-la com firmeza, mas também
é fundamental não cutucar o governo americano com provocações desnecessárias e
irrealistas frente ao nosso efetivo poder geopolítico.
A geopolítica explica parte da decisão contra
o Brasil, mas o fator ideológico tem sempre um peso muito grande quando o ator
é de extrema direita. Foi com uma ideologização que torna inseparáveis a
política da vida cotidiana das pessoas que esse grupo cresceu em várias partes
do mundo. Esse novo populismo, nitidamente autoritário, soube como ninguém se
posicionar numa era do espetáculo, na qual corações e mentes são conquistados
por um modelo polarizado de alimentar o ódio contra os inimigos e de adorar efusivamente
e sem questionamento os seus líderes.
Trump e Bolsonaro estão no mesmo barco
ideológico, formado por um grupo extremista bastante organizado no plano
internacional, com uma organicidade e estratégia muito maiores que o centro, a
esquerda e a direita liberal ao redor do mundo. O trumpismo quer que um
bolsonarista, ou alguém referendado pelo bolsonarismo, ganhe as eleições de
2026. A sanção comercial que o Brasil sofreu tem forte relação com isso,
infelizmente. Daí que o casamento ideológico com o bolsonarismo se alinha à
lógica geopolítica da decisão comercial americana.
Nesse sentido, o velho bordão bolsonarista
tem de ser mudado: minha família acima de tudo, Trump acima de todos -
Bolsonaro chegou a dizer nesta semana que é “apaixonado” pelo presidente
americano. Nosso ex-presidente, na verdade, sempre adotou um patriotismo fake,
subserviente a Trump e condicionado aos interesses da família e dos amigos.
Todo o restante do script, da camisa amarela da seleção às juras pelo respeito
às quatro linhas da Constituição, eram encenação frente aos seus efetivos
objetivos.
A articulação de Eduardo Bolsonaro com o
trumpismo e a reação imediata de regozijo de seu pai, bem como de outros
líderes bolsonaristas, escancarou o falso patriotismo desse grupo. O importante
seria salvar a família Bolsonaro, mesmo que tivesse de colocar o país de
joelhos. O interesse pessoal à frente do interesse nacional - na hora de
comemorarem a decisão de Trump, e comemoraram efusivamente, se esqueceram dos
negócios em diversos setores e milhares de empregos que seriam rifados para
agradar ao líder da extrema direita brasileira. Fica aqui a lição ao
empresariado brasileiro.
Ficou muito evidente que a família Bolsonaro
estava fazendo com o país o que a famosa música de Chico Buarque descreve que
uma elite fez com sua cidade. Bastava aceitar a chantagem feita pelo Zepelim de
Trump e entregar as instituições brasileiras ao controle do governante
estrangeiro, que tudo estaria resolvido. Mas, se isso fosse feito, o Brasil se
chamaria Geni e o verdadeiro patriotismo teria sido morto pelo bolsonarismo.
O efeito gigantesco da decisão trumpista para
a economia brasileira fez com que os governadores que cortejam o apoio de
Bolsonaro para 2026 mudassem, mesmo que envergonhadamente, sua posição inicial.
Melhor que fiquem com o Brasil e não sejam subservientes a Trump - afinal,
foram eleitos por brasileiros para defendê-los.
Porém, imagine que a decisão fosse outra: em
vez de optar pela sanção comercial, Trump punisse, de alguma forma, o ministro
Alexandre de Moraes, o que seria só o começo, porque mais adiante, para ser uma
chantagem crível, deveria haver punições a mais autoridades, o que significa
tentar manietar as instituições brasileiras. Isso seria aceitável por Zema,
Tarcísio, Ratinho Jr. e Caiado? Nem faço a pergunta para os Bolsonaros, porque
o patriarca tentou dar um golpe de Estado, o que mostra o pouco apreço pela democracia
brasileira. Afinal, como disse o filho Eduardo, antes da posse do pai, para
fechar o STF bastava um soldado e um cabo.
Se a opção trumpista fosse pela punição
contínua de autoridades e instituições brasileiras, estaria em jogo a
democracia brasileira, gerando uma guerra política que, ao fim e ao cabo, teria
efeitos econômicos ruins, com impactos negativos para empresários e
trabalhadores. A proposta de pacificação feita pelos Bolsonaros, sobejamente
conhecidos por uma trajetória pacificadora em seus discursos e atos, seria a de
quebrar o regime democrático. Zema, Tarcísio, Ratinho Jr e Caiado concordam com
isso?
Já faz tempo que tais governadores têm se
comportado, tristemente, como seguidores de Bolsonaro, e não como importantes
lideranças da Federação brasileira. Não questionaram a evidente tentativa de
golpe de Estado liderada por Bolsonaro, como se esqueceram das maldades do
governo bolsonarista: desmatamento, abandono de populações indígenas, discurso
racista e machista que grassava pela Esplanada dos Ministérios, desastrosa
gestão da pandemia - 700 mil mortos e mais de um ano com 5 milhões de crianças
sem um padrão nacional de educação - e, para voltar à política externa, as
provocações perigosas à China, nosso principal mercado para exportação e maior
investidor no país.
Se voltar ao poder alguém que apenas siga as
ordens do bolsonarismo, há enormes chances de briga com o governo chinês, com
resultados econômicos ainda mais desastrosos do que o embargo trumpista.
As lideranças que cotejam o apoio de
Bolsonaro também estão ignorando os efeitos do trumpismo para o Brasil,
adotando o boné do “Make America Great Again” como vestimenta de festa - e
sorrindo para a foto. Não precisamos e nem devemos brigar com os Estados
Unidos, um parceiro relevante que vai além dos governos de ocasião. Só que
milhares de brasileiros serão expulsos dos Estados Unidos até o final de 2026.
O que os governadores intitulados bolsonaristas moderados têm a dizer sobre
isso aos eleitores brasileiros? É provável que o Mercosul consiga um acordo com
a União Europeia e o Brasil aprofunde cada vez mais as relações econômicas com
a Ásia, sobretudo com a China. Se Trump quiser melar esses negócios, o que
dirão Zema, Tarcísio, Ratinho Jr. e Caiado?
Aparentemente, esses governadores só
entenderam os efeitos nefastos do bolsonarismo com a bomba comercial nuclear
jogada por Trump no Brasil, que vai prejudicar o país em nome da salvação do
patriarca bolsonarista. Mas a reviravolta dessas lideranças tem sido tímida e
ainda tentando manter Jair Bolsonaro no armário, para ninguém ver. Será mesmo
que descobriram quem são realmente os Bolsonaros?
Há três hipóteses aqui. A primeira é que tais
governadores, ou a maioria deles, ainda são amadores e não compreenderam o que
está em jogo - neste caso, não estão preparados para serem lideranças
nacionais. A segunda possibilidade é que são cínicos, querendo apenas o espólio
eleitoral, o que é preocupante porque a extrema direita não vai deixá-los em
paz na eleição de 2026. Por fim, pode ser que comunguem de quase todas as
ideias do bolsonarismo, mas escondam o seu perfil ideológico com a máscara de
moderados. Aí é mais perigoso, porque poderiam gerar um estelionato eleitoral.
Saber quem são, de verdade, os governadores
que bajulam Bolsonaro e se vendem como moderados é algo central para o futuro
do país. Afinal, é preciso saber com quem se contará na próxima porrada que
Trump dará no Brasil.
*Fernando Abrucio, doutor em
ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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