• Cunha é causa e consequência de crise do governo
- Valor Econômico
Classificar o atual processo de impeachment como um "golpe paraguaio" é uma das estratégias de defesa dos apoiadores da presidente Dilma Rousseff. É um recurso discursivo claro para minar a legitimidade de um afastamento de Dilma, ainda que se trate de uma forçada de mão, como o desenrolar dos fatos mostrou em relação ao Paraguai, após a destituição sumária de Fernando Lugo da Presidência, em 2012.
Não houve um golpe no Paraguai, mas a realidade brasileira passou a se aproximar da que vigora no país vizinho desde 1º de fevereiro deste ano, quando Eduardo Cunha assumiu a presidência da Câmara. Foi a partir de então, ainda um mês antes da abertura de inquérito por corrupção contra o deputado, que o impeachment começou a deixar de ser um devaneio.
A vitória de Cunha mudou a centralidade na Câmara, subverteu os partidos e colocou a Casa sob o comando de um "centrão" com quem tanto o governo quanto a oposição passou a ter que negociar como uma entidade autônoma.
Em seu livro de memórias, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso demonstra diversas vezes um certo desprezo pelos deputados e senadores que construíram seu poder à margem das cúpulas partidárias. O tucano os descreve como uma espécie de despachantes de interesses que não precisam mais ser intermediados. O líder de então do baixo clero, Wilson Campos (1924-2001), do PSDB de Pernambuco, famoso por mandar doces de caju para seus colegas, perdeu a eleição para a presidência da Câmara em 1997 justamente para Michel Temer, que contou com FHC como cabo eleitoral.
Os "outsiders" tiveram seu primeiro momento em 2005, com a passagem fulminante de Severino Cavalcante, mas seu descarte foi rápido para que governo e oposição decidissem se o mensalão iria ou não derivar para o impeachment. Severino nunca foi visto como parte da equação.
Hoje, o próprio Fernando Henrique reconhece que, em um cenário de Câmara multifragmentada e comandada por Cunha, não teria como implementar sua agenda de governo.
O processo paraguaio de 2012 mostrou um país onde a presidência é violentamente condicionada pelo Legislativo e pelo sistema partidário. Principal canal da expressão popular em todos os países que seguem o presidencialismo, a figura do presidente da República exerce por lá o governo, mas não o real poder.
Lugo perdeu o cargo por decisão do Congresso paraguaio em um processo que durou dois dias. O tempo disponível que teve para se defender no Legislativo foi de duas horas. Praticamente todos os países do continente tentaram interferir no processo paraguaio, enviando seus chanceleres para Assunção.
No momento em que a destituição foi votada, Lugo estava ao lado dos ministros de Relações Exteriores da Argentina e do Brasil. O da Venezuela foi se reunir com militares paraguaios. A Unasul aplicou a cláusula democrática e o Paraguai ficou isolado nos fóruns continentais até 2013 e suspenso do Mercosul.
O que houve no Paraguai, entretanto, pode ter sido tudo, menos um levante. Só houve uma ruptura institucional na história recente da América Latina: a do hondurenho Manuel Zelaya em 2009.
Diz a regra do Paraguai que o verdadeiro eixo do poder está no Congresso, que derruba vetos presidenciais por maioria simples e tem poder de remanejar 100% do Orçamento. A constituição paraguaia dita os passos para um processo de impeachment, mas nada fala sobre seus prazos. Poucos foram às ruas tanto para protestar contra o impeachment, quanto para festejá-lo. Lugo hoje é senador.
Eleito virtualmente sem partido, chegou ao poder em coligação com a sigla que iria comandar o Legislativo, o Partido Liberal Radical Autêntico. A oposição conservadora começou a pedir o seu impeachment 72 horas depois da posse. Quando Lugo rompeu publicamente com seu vice, este estabeleceu a negociação com os oposicionistas. O presidente paraguaio foi afastado por "mau desempenho de suas funções".
Na discussão que se faz hoje no Brasil, argumenta-se a favor do impeachment alegando-se que Dilma não tem capacidade para enfrentar a crise, como disse esta semana o senador José Serra. É uma fundamentação típica para se derrubar um gabinete no parlamentarismo. Aplicada ao presidencialismo, e esta é uma tendência que avançou a partir do Paraguai, a regra poderá propiciar uma síntese do que há de pior nos dois sistemas de governo.
No Brasil, onde vigora o "presidencialismo de coalizão" desde o fim do regime militar, está estabelecido que o governo de minoria, em termos práticos, é uma impossibilidade e a ascensão de Cunha tornou a governabilidade precária não agora, mas há dez meses. Como jabuti não sobe em forquilha, o advento de Cunha começou a ser gestado antes, mais ou menos ao tempo em que o marketing eleitoral de Dilma argumentava na televisão que Marina Silva não poderia ser presidente porque não tinha capacidade de tecer alianças no Congresso.
Vale lembrar esta propaganda, veiculada no dia 26 de setembro do ano passado: "Dilma tem força política para realizar os seus projetos, porque em uma democracia, ninguém governa sem partidos, ninguém governa sozinho", garantia o narrador.
É possível que se cumpra a profecia feita por Renan Calheiros, a de que se Cunha continuar destituindo relator e trocando líder para escapar da cassação termine na prisão, conforme noticiou o jornal "O Globo" na edição de ontem. Mas em relação ao enfraquecimento de Dilma, Cunha é causa e consequência. Seu desaparecimento político pode descontaminar o processo do impeachment da mácula da extorsão. Sua permanência sugere um processo mais prolongado, com prognóstico desfavorável ao governo. O voto aberto ou fechado tende a tornar-se um dado irrelevante. A dinâmica está estabelecida.
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