- O Estado de S.Paulo
Recursos às Cortes superiores não proíbem nem impedem o início da execução da sentença
Desde a Revolução Francesa prevalece na maioria dos países o princípio do duplo grau de jurisdição, segundo o qual as decisões judiciais podem conter erros e por isso é importante que sejam revisadas em instância colegiada superior. Ficou assim, desde aquela época, aberta a possibilidade de a parte que se sentir prejudicada aforar um recurso ao tribunal (um, no singular), que poderá rever a matéria julgada.
Naquele momento fantástico da História da França, sob a inspiração iluminista de Voltaire e Rousseau, o duplo grau de jurisdição fortaleceu o princípio da presunção de inocência, de tal forma que na esfera penal, principalmente, ninguém mais poderia ser considerado culpado a não ser após a revisão da decisão judicial por uma Corte superior. É nesse duplo grau de jurisdição que se encontra encurralado o ex-presidente Lula da Silva, uma vez que já exerceu o direito de se defender em primeiro grau e depois recorreu ao Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), tendo sido novamente condenado (e com aumento da pena).
O que seria o terceiro grau de jurisdição não se presta à reavaliação da matéria julgada em primeiro e segundo graus, porque os dois tribunais acima – o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) – não têm a atribuição de reexaminar questões fáticas, como provas, por exemplo. De fato, essas duas Cortes superiores não são órgãos de reavaliação do acerto ou desacerto dos julgados dos demais tribunais.
Após a condenação em segundo grau, podem ser aforados recursos ao Superior Tribunal de Justiça e recurso extraordinário ao Supremo Tribunal Federal, que não têm efeito suspensivo, ou seja, eles não impedem nem proíbem o início da execução da condenação. Muito raramente, em casos excepcionais, as duas Cortes superiores admitem efeito suspensivo em recursos extraordinário ou especial para sustar o andamento de condenação decidida nos dois graus de jurisdição.
Matéria estranha aos autos do processo, como pretensões eleitorais frustradas pela condenação atacada, não é susceptível de apreciação, em face do princípio vindo do Direito Romano de que “o que não está nos autos não está no mundo” (quod non est in actis non est in mundo). No caso específico e difícil de Lula, já está esgotado o duplo grau de jurisdição, de tal forma que somente o descumprimento de lei federal ou de disposição constitucional, se estiver presente de forma inequívoca, poderá levar as duas Cortes superiores a sustar o andamento do processo de condenação.
Sempre é lembrado pelos defensores do ex-presidente o princípio da presunção de inocência, que está inscrito na Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5.º, LVII: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Sobre o assunto, dias atrás, o novo presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, com sua invulgar cultura jurídica e larga experiência, observou que após condenação em primeiro grau e também no tribunal de segunda instância, que a manteve, o princípio da presunção de inocência foi respeitado e se esgotou.
Tempos atrás o STF entendeu que, mantida por unanimidade a sentença condenatória contra a qual o réu apelara em liberdade, não será ilegal o mandado de prisão que o órgão julgador de segundo grau determinar ser expedido contra o réu. Mas isso mudou e vinha prevalecendo até 5 de outubro de 2016, quando, por maioria de seis votos contra cinco, o Supremo possibilitou a prisão do acusado se houver condenação em primeiro grau e esta for mantida por unanimidade no tribunal que julgou a apelação.
No início do julgamento, o ministro Marco Aurélio Mello votou pela concessão de liminar pleiteada pelo Partido Nacional Ecológico e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, cuja finalidade era suspender a execução da pena após condenação em segunda instância.
Mas o ministro Edson Fachin abriu divergência e votou pelo indeferimento da cautelar, sob o entendimento de que a Constituição federal não tem a finalidade de outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de uma decisão que o réu considerar injusta. Seguindo a divergência, o ministro Luís Roberto Barroso defendeu a legitimidade da execução provisória após decisão de segundo grau e antes do trânsito em julgado, para garantir a efetividade do Direito Penal e dos bens jurídicos por ele tutelados. No seu entendimento, a presunção de inocência é princípio, e não regra, e pode, nessa condição, ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais que têm a mesma estatura.
“A Constituição federal abriga valores contrapostos, que entram em tensão, como o direito à liberdade e a pretensão punitiva do Estado”, afirmou. “A presunção da inocência é ponderada e ponderável em outros valores, como a efetividade do sistema penal, instrumento que protege a vida das pessoas para que não sejam mortas, a integridade das pessoas para que não sejam agredidas, seu patrimônio para que não sejam roubadas”.
A presidente do STF, Carmen Lúcia, naquela oportunidade negou o pedido de cautelar solicitado. Ela relembrou, em seu voto, posicionamento proferido em 2010 sobre o mesmo tema, ou seja, que a Constituição federal, ao estabelecer que ninguém pode ser considerado culpado até o trânsito em julgado, não excluiu a possibilidade de ter início a execução da pena – posição na linha de outros julgados do STF.
Mais recentemente, Cármen Lúcia deixou claro que não determinará a rediscussão desse assunto em face de um caso específico – o processo do ex-presidente Lula –, porque isso representaria “apequenar” o Supremo Tribunal Federal. O ministro Marco Aurélio Mello continuou a esbravejar, porque defende o contrário.
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*Desembargador aposentado do TJ/SP, foi secretário de Justiça do Estado de São Paulo.
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