- O Globo
Queriam, precisavam falar da tragédia em que vivem, esmagados pela violência dos traficantes e a dos policiais, e a ausência do Estado
Xico Sá, o jornalista e escritor, ele mesmo, começou resistindo à ideia por causa do risco. Mas Maria Ribeiro, atriz e grande revelação de cronista que admite ser “mandona”, insistiu, e ele acabou por obedecer. Isso aconteceu aqui em casa na quarta-feira, durante uma entrevista para o projeto deles e de Gregório Duvivier “Você é o que lê”, que em três anos já percorreu várias cidades do país. A dúvida era se deveriam se apresentar na Rocinha na noite seguinte. Xico acabou aceitando a arrojada proposta da amiga, e eu resolvi acompanhar os três na perigosa aventura.
Na véspera, a “Guerra da Rocinha” completara o sétimo dia seguido de tiroteios entre traficantes e policiais, com a morte de dois suspeitos e o tiro de raspão na cabeça de um morador de 42 anos.
Era melhor não ir; em meio a tantos tiros, algum poderia sobrar para nós. Mesmo assim, fomos. A primeira surpresa foi o lugar da palestra, que não correspondia ao nome, “Garagem das Artes”: era bem amplo e muito simpático — com um bar, várias estantes com livros e espaço para umas cem cadeiras, que foram todas ocupadas.
A segunda surpresa foi a plateia, formada por mulheres e homens de várias idades, ansiosos menos por nos ouvir e mais para serem ouvidos. Queriam, precisavam falar da tragédia em que vivem, esmagados pela violência dos traficantes e a dos policiais — e a ausência do Estado. Quando algum representante sobe o morro, é para fazer como o prefeito Crivella, que foi lá, deu uma olhada e concluiu que a Rocinha precisava era de um banho de loja. Isso com a biblioteca de quatro andares fechada há dois anos por falta de pagamento dos funcionários. Não que os relatos que ouvimos fossem desconhecidos de quem lê jornal e vê televisão.
Mas, contados ao vivo pelos próprios personagens ou por testemunhas, funcionavam para nós como teste de resistência emocional. Eram de cortar o coração. Por outro lado, ao mesmo tempo em que mais em cima, em outra parte do morro, alguém podia estar sendo atingido por um tiro, havia na Garagem uma energia cívica disposta a resistir e a transformar a indignação em ação cidadã.
Estávamos entre o inferno em que padecem os quase cem mil moradores da Rocinha e a parte mais baixa, que fervilhava de vida: na rua, muita gente, carros e mototáxis. A última surpresa é que saímos incólumes, mais de três horas depois, sem ouvir sequer um disparo.
Me lembrei de Paris ocupada pelos alemães durante a Segunda Guerra, em que a ordem era a retomada da normalidade. Os teatros se mantiveram abertos, Sartre escreveu “Entre quatro paredes”, Albert Camus editou o jornal “Combat” e Marcel Carné filmou “Os visitantes da noite”.
Era, como agora, a necessidade de escapar de uma realidade sombria. E de não permitir, no final, o triunfo da barbárie.
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