- O Globo
É natural estarmos preocupados. Vivemos dias de incerteza, ansiedade, vergonha. E de muita apreensão pelo futuro. Afinal de contas, nunca antes na história deste país um ex-presidente da República foi condenado por corrupção e lavagem de dinheiro — e, ao recorrer a uma instância superior, ainda teve a sentença confirmada e a pena ampliada por unanimidade. Anuncia que pretende continuar a recorrer, coisa que tem todo o direito de fazer, e é mesmo o caminho que condenado deve seguir. Mas anuncia também que pretende insistir em uma candidatura à Presidência — e aí é que as coisas se complicam. Ainda mais quando os que estão à sua volta adotam um tom de confronto belicoso, com ameaças e variados graus de desrespeito à lei, provocação e incitamento à violência. O próprio condenado, uns dos maiores líderes políticos da história da República, por oito anos ocupante do cargo máximo da nação, alguém que diante de todos nós jurou cumprir e defender a Constituição, faz questão de dar uma declaração inacreditável, ao dizer que “não vê nenhuma razão para respeitar a decisão” do tribunal.
Mas será que ele não tem o direito de espernear? Tem, sim. Espernear é livre. Recentemente, o ex-governador Garotinho esperneou até na maca que o conduzia de um xilindró a outro. Mas Lula não está só esperneando — o que, a esta altura, significa entrar com um recurso atrás do outro, pedir habeas corpus para evitar prisão, utilizar todos os meios legais a seu alcance. No Brasil, são inúmeros. Mas ele vai além. Está é, mais uma vez, tumultuando o ambiente, menosprezando a lei, afrontando a Justiça, ameaçando o caos para depois fingir que traz a ordem. Acenando com o medo para depois prometer paz e amor, sua velha tática, como observou há dias o colunista Elio Gaspari. Faz-se de vítima indefesa no exterior, diante de quem não acompanha o que realmente aconteceu. Internamente, encarna o espertinho: busca surfar na grande onda de águas turvas da situação esdrúxula que o Judiciário e a política brasileira vêm irresponsavelmente montando há tempos.
É só analisar. Se réu não pode ser eleito e empossado mas pode ser candidato… Se condenado em segunda instância ainda não puder ser presidiário mas puder ser candidato… Se condenado puder ser eleito mas não puder ser preso, pois então todos os processos ficam suspensos… A conclusão é que o poderoso que conseguir manobrar essa confusão pode ficar acima da lei, inalcançável por ela, até mesmo gozando da compreensão de membros das altas cortes “para não incendiar o país” (como um deles chegou a declarar, se é que o fez mesmo e não foi algum estagiário de má-fé que lhe atribuiu tais palavras).
Outro degrau para analisar: o da Lei da Ficha Limpa. Tenho por ela um carinho maternal. Fui uma entre as 1.600.000 pessoas que assinaram a petição para lhe dar vida. Para que existisse, o caminho foi longo. Seu relator na Câmara foi José Eduardo Cardozo, deputado petista que honrou seu mandato e depois foi ministro da Justiça. Sua aprovação nas duas casas do Congresso foi praticamente unânime. Entrou em vigor depois de sancionada pelo então presidente Lula quando ainda dava para o país acreditar nele — antes do resumo terrível feito pelo juiz em Porto Alegre na semana passada ao afirmar que “lamentavelmente Lula se corrompeu”. Agora querem dar um jeitinho para que a lei não se aplique a ele? Ou a outros no mesmo andar? A lei tem de ser igual para Lula e Temer, para Cunha e Renan, para Aécio e Cabral, para Maluf, Jucá e Geddel, e quem mais chegar. Que sejam todos investigados, processados se for o caso, e julgados, com direito a se defender. Que o foro privilegiado para os que ocupam cargos não sirva de salvo-conduto para o crime. E, para os que tiverem sentenças confirmadas em segunda instância por um órgão colegiado, que a Ficha Limpa seja cumprida, e esses condenados não possam se candidatar. Como determina a lei.
Toda essa conversa agora sobre possibilidade de acordos e conchavos entre políticos e juízes de modo a inventar manobras e recuos é inaceitável. Os tribunais precisam garantir justiça igual para todos. Não podem ajudar a blindar qualquer candidatura ilegal, afrontando a democracia e consolidando o escárnio de que nem todos sejam iguais perante a lei. A sociedade brasileira não aceita que o STF “se apequene” para se ajustar a casos específicos, como definiu a ministra Cármen Lúcia ou que jeitinhos venham encolher o nosso Judiciário, esgrimindo o garantismo como desculpa. Já chega termos sido apanhados de surpresa na decisão do Congresso sobre Dilma, quando Renan e Levandowski se uniram para tirar do bolso o insólito fatiamento que a deixa candidatar-se agora. Não é possível que ainda queiram nos enfiar goela abaixo mais uma chicana.
Nunca antes na história deste país alguém pretendeu invocar o direito de se asilar na Presidência para escapar do presídio. Se isso for adiante, é porque não sobra resquício de Justiça.
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Ana Maria Machado é escritora
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