- Folha de S. Paulo
A ideia nasceu fora da África, aclimatou-se na África e, depois, viajou novamente para fora da África
“A África não é um país”, avisa a camiseta criada por Vensam Iala, imigrante da Guiné-Bissau. Iala tem razão em alertar para a diversidade africana. Mais ainda, em perfurar a espessa camada de preconceitos que envolve a imagem dos povos do continente. Mas erra ao atribuir ao imperialismo a noção que contesta. De fato, as potências coloniais traçaram as fronteiras políticas africanas, fabricando quase todos os seus 54 países, inclusive a Guiné-Bissau. Foram africanos os que difundiram a ideia da África como um só país.
A semente foi plantada em meados do século 19 pelo missionário americano Alexander Crummell, filho de escravo e negra livre, que definiu a África como a pátria da “raça negra”. O pan-africanismo ganhou um arauto de peso em W. E. B. du Bois, fundador da NAACP, a grande organização social negra dos EUA: “Somos negros, membros de uma vasta raça histórica que começa a acordar nas florestas escuras de sua pátria africana”, escreveu em 1897. O grito ecoou na Jamaica, em 1914, pela voz de Marcus Garvey, rival de Du Bois, que sonhava “unir todos os povos negros do mundo para estabelecer um país e um governo absolutamente seus”.
A utopia da unidade geopolítica africana chegou, finalmente, à África por meio dos líderes das lutas anticoloniais. Muitos deles estudaram na Europa ou nos EUA, onde formaram suas convicções pan-africanistas. “A África é um país”: a inscrição certamente estaria numa camiseta concebida pelos futuros chefes dos primeiros governos soberanos de Gana (Nkrumah), do Quênia (Kenyatta), da Nigéria (Azikiwe), de Malawi (Banda), do Senegal (Senghor), do Congo (Lumumba) e da Guiné-Bissau (Luís Cabral, meio-irmão do intelectual pan-africanista Amílcar Cabral).
Ironicamente, os líderes africanos renunciaram à meta unitária logo depois da onda inicial das independências. Na sua carta de fundação, de 1963, a Organização da Unidade Africana (OUA), proclamou o princípio do “respeito pela soberania e integridade territorial de cada Estado”, que implicava a eternização das fronteiras inventadas pelas potências imperiais. As novas elites não sacrificariam seu poder estatal no altar da imaginada Pátria-África. Mas, igualmente, não deixariam jamais de usar a linguagem do pan-africanismo, impressa no próprio nome da OUA.
O discurso pan-africanista tem mil e uma utilidades para os governantes africanos. Confere legitimidade a ditadores que, por ele, se vinculam à saga da luta anticolonial. Serve de pretexto para a repressão a opositores, rotulados como antiafricanos. Abre caminho para responsabilizar atores externos —as antigas potências coloniais e o imperialismo— pelas tragédias sociais do presente. Os regimes africanos que perseguem gays têm o hábito de invocar uma suposta “cultura africana” para justificar suas leis homofóbicas (que, por sinal, geralmente originaram-se das administrações coloniais do passado).
“A África é um país” —a ideia nasceu fora da África, aclimatou-se na África e, depois, viajou novamente para fora da África, convertendo-se em inspiração para movimentos negros. Nos EUA, uma corrente substancial do movimento negro invoca o espírito de Du Bois para descrever os “afro-americanos” como uma nação diaspórica. Como tantas mercadorias pop, essa também foi importada no Brasil, especialmente pelo Movimento Negro Unificado. Dela surgiu o estandarte da “reparação histórica”, que acabaria sendo traduzido pela reivindicação de cotas raciais.
Na África, a camiseta de Iala seria vista como crítica do pan-africanismo —e, em certos países, poderia torná-lo alvo de repressão. No Brasil, lida corretamente, é uma crítica da ideologia de movimentos negros. Mas Iala evita o tema desconfortável, apoiando-se na bengala pan-africanista para sugerir que é uma crítica ao imperialismo. A chama nunca se apaga.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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