sábado, 7 de março de 2020

Ascânio Seleme - Mudar o futuro olhando o passado

- O Globo

Dois livros que serão lançados este mês ajudam a entender como chegamos até aqui

Serão lançados ainda este mês dois livros importantes para se entender melhor o capitalismo e o imperialismo modernos. Para o brasileiro, cujo governo bajula descaradamente os Estados Unidos de Donald Trump, sua leitura pode ser saudável. Trata-se de “Capital e Ideologia”, de Thomas Piketty, e “Tempos Difíceis”, de Mario Vargas Llosa. O primeiro, do economista francês cujo livro de estreia (“Capitalismo no Século XXI”) vendeu 2,5 milhões de exemplares, é um mergulho na história das nações que aponta para as desigualdades que a exploração de umas sobre outras geraram. O segundo, do prêmio Nobel de Literatura de 2010, conta a história da participação americana num golpe de estado na Guatemala, em 1954.

Com o livro de Piketty se compreende a construção do hipercapitalismo de hoje através do relato de experiências históricas. A posse desse conhecimento pode ser útil no processo de “superação do capitalismo por uma economia mais justa e descentralizada”, disse o economista numa entrevista à “Economist”. “Se nos negarmos a buscar esse caminho”, explicou, “corremos o risco de continuar fortalecendo o avanço identitário e xenófobo”. Com exemplos contundentes, o livro tenta encontrar soluções igualitárias para a reorganização do sistema econômico.

Três exemplos que merecem ser mencionados ocorreram nos Estados Unidos e em colônias francesas e britânicas no continente americano. Piketty explica que a proporção enorme de escravos na população do Haiti, entre 80% e 90%, gerou inúmeras revoltas até a emancipação em 1794, bem mais cedo do que nos demais países da região e quase cem anos antes da Lei Áurea, por exemplo. O Haiti se declarou independente em 1804, mas a França só reconheceu este status em 1825, obrigando o novo país a ressarci-la pelos escravos emancipados.

A Inglaterra, que até hoje mantém 15 colônias no Caribe, na América do Sul, na Oceania, na África e na Ásia, ressarciu todos os proprietários de escravos nas suas ilhas caribenhas e na Guiana quando decidiu interromper o tráfico, em 1807. Nenhum centavo destinou aos escravos libertados. A França também indenizou proprietários e deu nada aos ex-escravos. Nos Estados Unidos, durante a Guerra Civil, o presidente Abraham Lincoln prometeu dar a cada escravo 40 hectares de terra e uma mula. Era uma forma de incentivá-los a lutar ao seu lado. A guerra foi ganha, mas a indenização nunca foi paga.

Em “Tiempos Recios”, ou “Tempos Difíceis”, Vargas Llosa conta uma outra forma cruel de se defender interesses econômicos contra a soberania de uma nação e a emancipação de seu povo. O escritor relata como o governo americano, com o apoio da CIA, fomentou, instrumentalizou e ajudou a executar um golpe de estado contra o presidente Jacobo Arbenz, da Guatemala, em 1954. Arbenz fazia um governo de reformas para transferir rendas e terras a 90% da população, quase toda indígena, que vivia à margem do sistema econômico do país.

O golpe foi patrocinado pela então famosa e poderosa United Fruit, que produzia banana em quase todos os países da América Central. Na Guatemala, a empresa americana explorava mão de obra baratíssima, era dona de vastos territórios e não pagava sequer um centavo de imposto aos cofres públicos. O ultraje de Arbenz à United Fruit foi exigir que ela passasse a recolher impostos, como todo mundo.

Os dois livros ajudam a entender como chegamos até aqui. A Guatemala só fez uma eleição limpa depois de 30 anos. Durante todo esse tempo a vasta maioria do seu povo permaneceu alienada do processo político e econômico do país. O Haiti só conseguiu quitar sua dívida de 150 milhões de francos-ouro com a França em 1950. Piketty sugere caminhos. Vargas Llosa revolve o estômago do leitor com os abusos que relata e, se não aponta alternativas, pelo menos se vinga de um dos piores personagens da história. O violento Abbes García, chefe do Serviço de Inteligência Militar da República Dominicana, é apresentado como um homem quase impotente e que tem ejaculação precoce.

Huck não sai da moita
Algumas pessoas muito próximas de Luciano Huck acham que ele não vai ser candidato a presidente em 2022. Embora seu interesse em participar do jogo político e sua vontade de colaborar com o Brasil sejam genuínos, a decisão de não concorrer se dará em favor da família. O problema é que o anúncio da desistência pode demorar e atrapalhar o surgimento de candidaturas de fato. Huck não se mexe e fica ocupando um espaço político importante. É necessário que ele anuncie logo sua decisão para que o centro político possa buscar outro candidato. Se demorar muito, pode ser tarde demais.

Exemplos não faltam
Bernardinho já ocupou espaço político inutilmente em duas ocasiões, nas eleições para prefeito e governador do Rio de 2016 e 2018. Saiu tarde demais de ambas e atrapalhou outras candidaturas do Novo. Crivella e Witzel ganharam aquelas eleições. Na Bahia, ACM Neto, prefeito de Salvador, era pré-candidato a governador do estado até a véspera da data em que deveria se desincompatibilizar para concorrer, quando avisou aos partidos que o apoiavam que ficaria na prefeitura. O governador Rui Costa, do PT, foi reeleito.

Incompatibilidade
Como o ministro Paulo Guedes poderá implementar uma abertura na economia quando ao mesmo tempo o presidente Bolsonaro faz um acordo político com Paulo Skaf, o presidente da Fiesp?

Aliás
Participo de um grupo de WhatsApp composto principalmente por empresários e executivos paulistas. A maioria apoia o governo Bolsonaro, alguns até com bastante entusiasmo. Embora seja muito ativa, a turma não fez nenhuma menção ao Pibinho anunciado na quarta-feira.

PIB, coronavírus, eleição
Alguém tem dúvida de que o Pibinho do ano passado vai causar impacto na eleição municipal deste ano? O resultado ruim do primeiro ano de Bolsonaro e Guedes tem tudo para se repetir agora em 2020. Além de termos um presidente que mais atrapalha do que ajuda na construção da confiança que o investidor precisa para colocar seu dinheiro no Brasil, o efeito do coronavírus na economia global já se sente por aqui.

O presidente e o palhaço
Ao tentar se confundir com um palhaço na porta do Alvorada outro dia, Bolsonaro certamente estava homenageando sua ministra da Cultura. No extraordinário discurso de posse, Regina Duarte produziu a pérola vistosa que circula na internet e que termina assim: “E aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço e fazendo a risadaria feliz da criançada. Cultura é assim, é feita de palhaçada”. No caso do governo do Brasil, ministra, muito mais do que cultura é feito de palhaçada.

E o radical sou eu…
Sigmund Freud fumava 20 charutos por dia. Ernest Hemingway tomava 30 daiquiris por dia. Honoré de Balzac bebia 50 cafés por dia. E as pessoas ficam falando mal do Bolsonaro que diz apenas uma, duas, no máximo três bobagens por dia.

Pior bobagem que pedido de vista
Quem promulga emendas constitucionais são os presidentes do Senado e da Câmara em sessão conjunta do Congresso Nacional. A promulgação de uma emenda é o instrumento que declara a existência da lei e ordena a sua execução. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, segundo O GLOBO, está sentado em cima da emenda que muda a tramitação das Medidas Provisórias desde o ano passado. A emenda foi aprovada nas duas casas e deveria seguir para promulgação, mas Alcolumbre resolveu engavetá-la. Significa que a vontade da maioria absoluta dos parlamentares (emendas só são aprovadas com dois terços dos votos), representantes legítimos dos eleitores brasileiros, não está sendo atendida por sua excelência.

Moradores de rua
Não é oficial, mas é visível a olho nu. O número de moradores de rua do Rio subiu mais uma vez neste verão, e chegou a um volume assustador durante as duas (sic) semanas de carnaval. Além dos desabrigados pelas chuvas, estão nas ruas pobres do interior e de outros estados que vêm para o Rio esmolar, tentar arrumar algum dinheiro com turistas. Acabam as férias, muitos desses moradores vão embora também.

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