- O Globo
Tempos de crise aguda costumam representar o teste supremo para qualquer líder mundial
Verão de 2005 na Calota Norte. Quinze anos atrás os Estados Unidos estavam atolados em duas guerras das quais não se desvencilharam por completo até hoje — uma no Afeganistão, a outra no Iraque. O ataque terrorista islâmico do 11 de Setembro de 2001, que pulverizara as Torres Gêmeas de Nova York e humilhara a superpotência econômica e militar, ainda dominava a psiquê mundial. Ainda assim, de férias em seu rancho texano de Crawford, o presidente George W. Bush não largava a cópia de um livro sobre a pandemia da gripe de 1918.
Segundo relato do jornalista Matthew Mosk, da ABC News, Bush retornou à Casa Branca no fim daquele verão de 2005 obcecado com “A Grande Gripe”, do historiador John M. Barry. Tão obcecado que ordenou a criação do mais ambicioso e abrangente plano nacional de prevenção/combate a pandemias de que se tem notícia. Seus assessores de segurança interna tiveram de elaborar diagramas globais, criar sistemas de alerta precoce de um novo vírus, garantir o abastecimento federal em equipamentos hospitalares, financiar o desenvolvimento de uma vacina segura em velocidade máxima.
Em palestra para especialistas e pesquisadores do Instituto Nacional de Saúde naquele ano, Bush descreveu com presciência como uma pandemia se alastraria no país. E alertou: “Se esperarmos até o surgimento da pandemia, será tarde demais para nos prepararmos. Muitas vidas serão perdidas sem necessidade apenas porque falhamos em agir hoje”. Na plateia estava o mesmo dr. Anthony Fauci que hoje atua como voz da razão científica na cacofonia do governo Donald Trump.
Fauci sabe o altíssimo custo que os EUA pagam hoje por terem engavetado em delongas burocráticas e alternâncias políticas o plano de 15 anos atrás. Outras prioridades surgiram e foram sugando os US$ 7 bilhões que haviam sido alocados ao plano da época — uma ninharia se comparada à injeção de US$ 2 trilhões já liberada em 2020 para fazer frente aos estragos econômicos da atual pandemia. Sem falar no preço ainda mais alto e irrecuperável em vidas.
O episódio chama atenção pela ironia: George W. Bush, o malfadado 43º ocupante da Casa Branca no comando de duas guerras militares perdidas, talvez fosse o líder certo para encarar a Covid-19. Mas quem está no comando em 2020 é Donald Trump, que, apesar de nunca ter arrastado o país para confrontos militares, hoje se proclama “presidente em tempos de guerra”. Só que ele está perdendo a batalha em escala grande. Passados 101 dias desde que a China informou ao mundo a existência de um novo coronavírus, os Estados Unidos registravam o segundo maior número mundial de mortos e quase meio milhão de infectados. Pelas projeções iniciais, o país pode vir a acumular mais mortos do que na soma das suas quatro últimas guerras — a da Coreia, do Vietnã, Afeganistão e Iraque.
Convém não se enganar com o que costuma ser saudado como a “reviravolta” de Trump no combate à pandemia. Extenso levantamento investigativo do “Washington Post” revela a extensão dos danos causados ao país pelos 70 dias de negação e pregações iniciais do presidente. Forçado pela realidade, mudou de curso mas não de atitude ou visão. Continua a acenar com falsas curas instantâneas, inexistentes vacinas próximas, e farto suprimento de insumos. Quando lhe convém, isenta-se de qualquer protagonismo na condução do combate (“Eu não assumo qualquer responsabilidade”, anunciou no dia 13 de março) , e nunca lhe faltam culpados para o estado atual de calamidade — de Barack Obama à Organização Mundial da Saúde (OMS), passando pela China antes elogiada.
Como nenhum líder acerta ou erra sempre, Trump merece crédito ao se referir à OMS. A organização que deveria servir de bússola mundial para o combate à pandemia deixou-se engambelar tolamente pela China no início da crise. “Investigação preliminar das autoridades chinesas atesta não haver provas de transmissão pessoa a pessoa do novo vírus”, tuitou a entidade em janeiro, quando o fato da transmissão já era de conhecimento de Pequim desde o mês anterior. A OMS também elogiou a “transparência” do país asiático na divulgação de dados sabidamente inconfiáveis, e cedeu à pressão de Pequim para condenar restrições a viajantes saídos da China.
Tempos de crise aguda costumam representar o teste supremo para qualquer líder mundial. À popularidade momentânea, movida a medo e necessidade de segurança, nem sempre corresponde julgamento posterior. Nem mesmo o governador democrata de Nova York, Andrew Cuomo, cuja popularidade atingiu 87% de aprovação (inclusive 70% de eleitores republicanos) nas primeiras semanas da pandemia, deve escapar de revisão quando ficar clara a extensão da morosidade do estado em impedir que ele se tornasse o epicentro da Covid-19 no país.
Bem mais adiante, quando desempenho e liderança deixarem de ser uma questão de opinião pra se tornar uma análise de fatos, a primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, talvez desponte como a que melhor conduziu seu pequeno país-ilha de cinco milhões de habitantes na tempestade.
E Jair Bolsonaro já desponta como o mais irracional e irresponsável — tanto para ele próprio como para os brasileiros. “Isto não é uma presidência, é um culto. E como tal deveria ser tratado”, opinou um internauta referindo-se a Donald Trump. “Só que o líder de um culto nunca perde seguidores. São os seguidores que perdem a vida”. Vale para cá também.
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