Viu-se no Brasil, durante o março tormentoso da chegada do Covid-19, um ensaio de reversão do ambiente político maniqueísta e predatório que deprime o país há seis anos. Vimos chegar, em mensagens diariamente dirigidas ao grande público, um pensamento orientador, combinando as ciências e técnicas da saúde e da gestão pública com um discurso de solidariedade social, as duas coisas bem sintonizadas com a delicadeza própria do método prudencial da política. Uma escolha pelo caminho da persuasão, que não excluía clareza na diretriz, nem firmeza na ação. O ministro da Saúde vinha sendo um dos protagonistas, certamente o mais visível, dessa estratégia promissora e promotora da segurança possível, em hora de tempestade.
Essa linha de conduta implicava em todo o poder aos médicos, antessala de uma ditadura sanitária? Provocava paranoia ou histeria? Longe disso, estava produzindo sinergia entre ciência e política, perseguindo e obtendo, gradativamente, a complexa cooperação entre os entes federativos. Esse caminho, além de dar rumo seguro ao combate à epidemia, foi levando a uma consistente legitimação do SUS como patrimônio federal de interesse público. Não é de pouco significado um ministro oriundo da direita passar a usar como uniforme, diante das câmeras, um colete do SUS. Esse simbolismo forte poderia ser encarado com grandeza ou com mesquinhez política, por quem defende o SUS por convicção. A hora cobrava de uma elite política soluções não triviais para uma situação nada trivial, como a sabotagem de um ministro bem situado, pelo próprio presidente que o nomeou. Fosse qual fosse a solução do problema Bolsonaro, ela precisaria ter como premissa, publicamente assumida por todas as lideranças responsáveis, evitar descontinuidade no Ministério da Saúde, ao qual cabia o protagonismo, por missão institucional sustentada por uma visível capacidade técnica e política do seu titular.
O “campo dos governadores”, se adota essa premissa, não lhe tem dado a atenção requerida pela gravidade da hora. Articulou-se mais ou menos em bloco, com protagonismo do governador de São Paulo. Parte relevante da mídia apoiou e instalou-se nova polarização. Agora não mais Bolsonaro x PT e sim Bolsonaro x "governadores". Esse coletivo de mandatários estaduais é uma ficção política e administrativa. Um pretenso colegiado sem lastro institucional, que tende a ser refém de vontades políticas estaduais, a baterem cabeça. Se se impuser uma descentralização forte de decisões e recursos, uma ação coordenada pode ficar inviável. Colocar recursos para livre uso nas mãos dos governadores é mobiliar a antessala de um salve-se quem puder, na hora mais grave da pressão a vir sobre os serviços de saúde. Quando a ficha cair e sentir-se a necessidade do MS, pode já ser tarde. Em jogo confederado, o empurra-empurra das culpas, que há muito começou, tende a se disseminar.
Pode-se contra argumentar, com razão, pelo realismo político, tanto no diagnóstico da situação, quanto na prescrição do remédio. A conduta irresponsável do presidente criou um vácuo que os governadores, pressionados por suas próprias responsabilidades, precisavam preencher. Deve-se louvá-los por isso, não criticar. O que aqui se discute não é a decisão política de fazer contraponto à negligência presidencial. Discutível é se foi levado suficientemente em conta que o protagonismo político do MS no processo precisava ser sustentado por eles, como condição para o próprio sucesso desse contraponto. Um caminho mais seguro do que aquele que foi afinal adotado, ou admitido, pelo qual o ministro foi mantido no cargo até aqui, mas enquadrado pelos militares palacianos numa saia justa que não impede o presidente de prosseguir fomentando o seu desgaste. Poderia ter sido diferente? Talvez não, mas não há indícios de que outro caminho foi tentado.
O clima de polarização (e ficou evidente que não só Bolsonaro aposta nele) asfixia, como sempre, qualquer atitude política moderada, como é a de Mandetta. Abre porta a que a lógica da guerra se torne autônoma em relação à da persuasão. Com o tempo ela tende a se tornar superior, como perigosamente se insinua com os primeiros acenos a imposição vertical de um isolamento horizontal. Uma coisa é adotar essa imposição no Japão da disciplina e na China da ditadura. Outra coisa, em democracias fortemente enraizadas numa cultura de liberdades civis, como na Europa Ocidental e nos EUA. Uma terceira coisa é que se pense e possa fazer isso numa cidade-estado, como Cingapura. Uma quarta e muito diferente coisa é adotá-la no Brasil, um país imenso, onde uma ampla democracia política federativa vigora em sociedade plural e crescentemente liberal nos valores, em cuja psicologia social a disciplina individual é, no entanto, traço menos marcante que a solidariedade religiosa ou familiar. Sociedade conservadoramente gregária, assentada, ademais, em abissal desigualdade social e numa ainda frágil cultura de direitos, da qual é sintoma explícito a truculência tradicional e ainda relativamente impune de suas várias polícias e milícias, quando entram em contato com cidadãos socialmente mais vulneráveis. E não é de outra coisa que se trata quando se precisa manter em casa a população aglomerada em realidades urbanas onde se expõem as dores dessa modernidade complexa.
A lenta infiltração, nas mentes, da lógica da guerra em lugar da aposta na persuasão, é um fator que trabalha para deslocar o comando prático do processo, do MS em direção a núcleos “duros” do Estado e para desgastar a liderança do ministro. Ele próprio pode ser tentado, aqui e ali, a morder a maçã do atalho vertical, supondo sua eficácia, como ficou patente em sua improvisada afirmação sobre a cooperação de milícias, um escorregão que, ironicamente, adversários conhecedores desse submundo estrangeiro ao ministro não deixarão lhe sair grátis.
Estará enganado quem pensar que dou a essas reflexões um valor de lição ou profecia. São apenas apreensões para com riscos adicionais desnecessários que se está correndo no contexto de uma pandemia, por si só, já tão saturado de perigos. Se não há uma coalizão de veto, há, no mínimo, um relativo dar de ombros a um ministro que se destaca como bom articulador político e como bom gestor de políticas públicas de estado. Isso ocorre de modo, a meu ver, insensato, num momento grave em que precisamos exatamente de gente assim, de ocorrência escassa na cena pública atual. O clima de aclamação sanitária que se criou desde a última semana de março já não se mostra tão consistente hoje. Diatribes insolentes do presidente conseguem causar perda de foco em mais pessoas e, com isso, menos solidariedade e mais leniência social.
Uma desconstrução mais sutil da imagem do ministro vem com a crítica de alguns setores por, supostamente, ele ter se deixado enquadrar. Por ter dado a César o que é de César, seja lá quem, nesse momento, represente melhor essa metáfora da autoridade, se o presidente Bolsonaro, se uma “presidência operacional”. Tal como no caso do uso do colete do SUS, há dois modos de interpretar esse mandamento da ética cristã que é, ao mesmo tempo, mandamento do realismo político. Um é encará-lo como apego a uma "boquinha". Interpretação mesquinha, que gente com boa fé às vezes segue. Outro modo de interpretar o mandamento é entender que, dando a Cesar o que é de Cesar, está se afirmando que nem tudo é de Cesar. E no caso da epidemia e da luta para vencê-la, o que não é de Cesar é o que conta mais. Aos poucos o povo vai percebendo isso. Havendo tempo, editoriais de empresas de mídia talvez acabem entendendo que até guerra santa tem limites. Quanto a Bolsonaro, se não entender o mandamento nessa interpretação ampla, deixará de ser Cesar, caso ainda o seja.
Tornou-se esporte popular adivinhar intenções do Presidente. Missão impossível para quem trabalha estudando política. O esforço de compreensão possível começa por não ver o affair que ele provocou com seu ministro como episódio isolado, mas como algo relacionado aos efeitos que a crise da pandemia tem exercido sobre a operação diluidora da democracia, posta em prática pelo presidente desde que chegou ao cargo. A quantas ficou a operação Bolsonaro depois da chegada da crise sanitária e do imprevisto fator Mandetta?
Há a hipótese psicanalítica de que o presidente, sentindo que não tem condições pessoais de gerir a crise, esteja criando uma situação para ser afastado. O colunista Reinaldo Azevedo tem oferecido essa interpretação que, por mero instinto, não descarto. Estaria agindo, conscientemente ou não, tendo em conta sua própria inépcia (essa seria a parte realista de sua estratégia, por essa primeira hipótese), mas isso não quer dizer que ele pretenda sair de cena. Depois de fugir ao peso da responsabilidade, poderia vir a parte delirante desse script: ele poderia tomar emprestada uma roupa populista de vítima de golpe para, mais adiante, na hora de se contar o total de mortos da epidemia e das vítimas da depressão econômica, apontar o dedo acusador para quem tenha enfrentado o desafio e tentar convencer que teria feito melhor. Tentaria ser candidato de novo com esse discurso ou, caso impedido, tentaria conflagrar suas milícias (se ainda fossem suas) para sabotar as eleições.
Circula, difusamente, uma segunda hipótese, mais política. Diante da pandemia, o presidente estaria apostando ainda mais num caos social como atalho para governar autoritariamente, sem mais cumprir os atuais procedimentos constitucionais, especialmente na relação com o Legislativo e o Judiciário. Sabotaria a política de combate à epidemia, traçada no MS, defendendo o indefensável para desorientar e instigar o povo ao tumulto, dividir seu próprio governo e se vacinar contra os efeitos da provável crise humanitária e da inevitável crise econômica, pondo a culpa dos dois fracassos em quem não ouviu seus avisos (todas as instituições). Justificaria, assim, uma solução autoritária e também populista, como via de salvação. Nessa segunda hipótese o presidente também delira. O script para o atalho e a volta por cima não seria o de vítima, mas o de redentor. E não excluiria eleições em 2022, com ambiente democrático seriamente comprometido.
Por fora dessas hipóteses de que delira, ou além delas, há quem pense que o presidente aja como simples miliciano. Em vez de estar armando um golpe futuro, já estaria concretamente fazendo movimentos golpistas, desde antes da epidemia se instalar. Ou melhor, desde que sentou na cadeira presidencial. Segundo adeptos dessa teoria baseada em supostas intenções, fatos anteriores, configurando inúmeros crimes de responsabilidade, já não deixariam dúvida de que temos, em ato, um presidente subversivo da lei e da ordem. A base seria a disseminação, pelo aparelho de doutrinação bolsonarista, em estratos mais baixos da oficialidade das Forças Armadas, de uma ideologia golpista e salvacionista. Em que grau essa subversão de valores democráticos já avançou recentemente na corporação e se infiltrou em outros organismos do Estado em um ano e três meses de governo, é algo que só pode ser sabido por quem detém informações privilegiadas.
É preciso escapar da armadilha intencional para tentar avaliar o estado das artimanhas do ator subversivo. Desde antes da pandemia, a obstinada desconstrução de valores democráticos e a persistente tentativa de desmoralizar instituições e desacreditar agências do próprio Estado já preocupava quem se preocupa com a democracia. Afinal, os crimes de responsabilidade e solapa acumulados não são mera teoria sobre intenções.
A pandemia foi fator imprevisto na escalada de solapa da democracia, porque sugeriu ao país outra lógica política. Além de dar destaque do ministro Mandetta, realçou a importância do Congresso, governadores e prefeitos, permitindo demonstração pública de virtudes políticas como cooperação e entendimento, desvalorizadas desde que se instalou, em 2014, a polarização extrema. Considerando isso, a lógica do presidente pode ser melhor entendida. Se o enfrentamento da pandemia tiver êxito em unir o pais para a redução de danos, murcha a razão polar que permitiu a sua vitória em 2018 e que, caso mantida, poderia e ainda pode levar à sua eventual reeleição.
O enfraquecimento do presidente não é irreversível. Mas sua força está na razão inversa do sucesso da política prudencial que os líderes das principais instituições adotam para enfrentar uma crise sanitária que é mundial e atende pelo nome de Covid 19 - e a crise política, que é nacional e se chama, cada vez mais, Jair Bolsonaro. O êxito dessa política passa fortemente pela manutenção do ministro da Saúde. E ela, por sua vez, depende de aval ministerial, da continuidade do engajamento da comunidade cientifica e técnica do setor, do apoio político no Congresso (não só para mantê-lo no cargo, mas para aprovar medidas que levem recursos para a Saúde, a assistência social e a garantia de renda), de cobertura judicial contra atropelos e sabotagens, da cooperação da imprensa e da sociedade em geral e da manutenção da já explicitada confiança popular nas orientações do Ministério da Saúde e na liderança do ministro, que tem feito, com maestria, a ponte entre ciência e política. É muita coisa e talvez seja realista considerar improvável a presença sustentável de tão complexas variáveis.
Uma consideração política abre uma brecha nesse realismo cru. Vale trazê-la à discussão, pois é igualmente realista (ou ao menos razoável) supor que atores políticos levem aspectos políticos em consideração. Se a pandemia se agravar e a situação humanitária sair do controle, estará criado um ambiente inóspito, no qual será mais difícil Bolsonaro continuar a ser isolado, como está sendo, por uma política prudencial. Ele poderá desabar de vez, ou cavalgar no agravamento da crise, restabelecendo a polarização. Até aqui, a política da prudência tem se imposto e é imprudência pô-la em risco, trocando o ocupante da cadeira do MS. Mas se for esse o rumo de acontecimentos em série, cujas implicações uma boa razão nem sempre consegue deter; ou se a entrega da cabeça do ministro não for bastante e o presidente teimar em diatribes por querer continuar isolado, será preciso prestar atenção no seguinte: pela lógica miliciana, isolamento não é problema. É incentivo à ação de confronto. A democracia, nessa hora, não pode hesitar em exercer autoridade para impedir essa ação.
Nove entre dez leitores do noticiário dos últimos dias sabem que a situação do ministro é instável e isso não se deve apenas aos ciúmes de Bolsonaro. Embora a política do MS tenha amplíssimo apoio político, midiático e popular, não é do mesmo tamanho (embora seja grande também) o apoio político e midiático à pessoa do ministro. O fundamentalismo de guerra é pouco simpático a flexibilizações que ele precisa e precisará fazer.
Além disso, na área política e no próprio governo, se a cabeça do ministro for o preço para Bolsonaro sossegar, haverá quem ache razoável pagar, seja para apaziguar os ânimos, seja para tranquilizar aspirações políticas inquietas consigo. Ou as duas coisas. E não duvidemos da possibilidade de Bolsonaro aceitar. Parece que para ele o problema é Mandetta, mais do que a política do MS. Há precedentes, contudo, para se saber que não sossegará. Por isso, tal acordo será um equívoco. Mas a política tem razões que as outras razões não governam. Mandetta sabe disso e, se sair por um acordo que ao menos preserve a política do ministério, não deverá se fazer de vítima, dizendo-se traído. Seu perfil parece ser outro. Por isso está adicionando componentes ativos da química da política para renovar o ar viciado de um ambiente contaminado por paranoias de vários tipos.
Nem tudo será claridade, na possivelmente nova atmosfera política. Se vingar, herdará muita nuvem. Passada a pandemia, sociedade e sistema político terão que encarar o fator Bolsonaro em toda a sua nebulosidade. O tema do impedimento do presidente, já presente nos espíritos hoje confinados de políticos e cidadãos, tende a compor as agendas das instituições e movimentos. Será incontornável resolver, de algum modo, essa questão.
Sinto simpatia pela ideia de afastar o presidente, por mais que um processo de impedimento seja um trauma, reacenda polarizações, alimente apetites golpistas, etc.. É que Jair Bolsonaro rebaixa, desmoraliza as crenças democráticas na sociedade e não há futuro para instituições democráticas se as crenças da sociedade vão na contramão delas. Trata-se, no entanto, de algo bem diferente de uma questão de preferência ou desejo.
Problema é alimentar um argumento como esse, sem confundi-lo com o “Fora Bolsonaro” que uma certa frente para-partidária de esquerda proclama como foco de sua ordem do dia. Há que se demarcar um raciocínio: noves fora o raso oportunismo do gesto, pensar em remover o presidente agora, além de ser uma ideia irrealista (militares e empresários que contam não querem), seria, caso possível, uma imprudência, no meio do furacão da epidemia. Em momento tão tenso e potencialmente explosivo, essa esquerda mais barulhenta, embora tenha pouco poder de fogo real, não pode ser tratada na base da condescendência. Quem quiser falar a sério, sem demagogia, em impeachment, precisa ajudar a isolar Bolsonaro agora. Para isso não ajuda nada a conversa diversionista de formar uma “frente popular contra os lucros". Assim como não ajudam tentativas de desgastar o ministro da Saúde, como se tem feito há semanas, aberta ou veladamente, em redes sociais de esquerda. Se a esquerda contribuir para que saiamos dessa tempestade sanitária de um modo razoável, com a sociedade em pé e capaz de se mobilizar, pode ser que diferentes orientações democráticas, à esquerda, ao centro e à direita, partam juntas, no ano que vem, para uma campanha em favor do impeachment do indivíduo que, pelos atos que praticou na posição que ocupa, tornou-se um perigo concreto para a democracia.
É bom que a ficha caia para a sociedade quanto a esse perigo concreto e quanto a uma necessária mobilização das forças políticas que a representam para enfrenta-lo e conjura-lo. É sombrio, em contraste, um cenário em que ela fique refém de um “bom senso” político-militar para afastar o presidente em caso dele não se submeter ao enquadramento que esse suposto bom senso busca, nos termos dos consensos políticos que ele mesmo construa. É a Constituição quem pode e deve enquadrar os mandatários, em seus próprios termos. Essa é a distinção mais importante entre uma solução pela democracia e uma solução pela guardiania.
O ex-presidente Lula é um ator a ser analisado, assim como o seu PT, o partido da ex-presidente alvo do mais recente processo de impeachment. Uma vez concretizado um pedido de impeachment do presidente Bolsonaro, uma conexão entre os dois processos será obviamente feita e, por isso, PT e Lula merecem reflexão à parte. É provável que o envolvimento do PT traga duas implicações capazes de converter um processo cujo alvo é um recomeço político em algo preso ao retrovisor. De um lado, é de esperar que o bolsonarismo desqualifique moralmente o PT por estar participando de uma operação assim, depois de ter enfaticamente denunciado, aqui e no exterior, como golpe de Estado, o processo que impediu Dilma Roussef, há apenas quatro anos atrás. Do mesmo modo, o PT poderá narrar o impedimento do presidente como uma espécie de reparação do “golpe” de 2016. Poderá justificar o impedimento com o argumento de que o governo Bolsonaro seria “ilegítimo”, por um mal de nascença, mal que também afetaria o governo do seu vice, antecipadamente destinado a receber do PT o mesmo tratamento dispensado a Michel Temer. Pela direita e pela esquerda, o processo contra Bolsonaro poderá resvalar para a reiteração da polarização que atormenta o país desde 2014.
Será esse mais do mesmo de varejo uma fatalidade que recomendaria arquivar a ideia do impeachment? Ou esse acerto de contas entre a democracia e seu agressor tem chance de se constituir em processo de grande política, um julgamento jurídico-político de uma experiência inédita de desconstrução institucional operada por Jair Bolsonaro e a facção que com ele passou a ter acesso ao Estado brasileiro? Nesse caso, em vez de uma polarização entre facções políticas, poderemos ter uma convergência nacional de porte bem mais amplo do que foi o “Fora Collor”. Pela direita, pelo centro e pela esquerda, pelos andares de cima, médios e baixos, a nação, revigorada por uma campanha unitária contra uma ameaça sanitária comum, partiria para recuperar o seu Estado das mãos de uma facção que tentou reduzi-la a coisa sua. Estará o maior partido da esquerda brasileira à altura de um gesto capaz de promover sua integração a esse empreendimento? Será capaz de substituir o ressentimento por um novo sentimento que o reconecte com essa nação? E de pautar sua conduta, não por uma atitude voluntarista de vingança, mas pela atitude prudente da conciliação? A história do PT, conquanto marcada por uma proverbial aversão a alianças e concertos republicanos e conquanto manchada por processos de fundo ético mais recentes, também contempla o sentido democrático e socialmente inclusivo que seu advento, já quarentão, teve na história política do Brasil. Essa marca, decerto valiosa num país tão desigual, confere-lhe, assim penso, apesar de seus pesares, um direito ao benefício da dúvida. Daí porque começo a tentar especular sobre sua atitude política numa eventual campanha cívica pelo impedimento de Bolsonaro, a partir da observação do que tem sido os passos do partido e do seu líder máximo na atual conjuntura de crise.
Em fevereiro último, no auge dos ataques bolsonaristas aos outros dois poderes, Lula disse, na França, que não havia base legal para impeachment e que o PT deveria esperar as eleições de 2022. Ao se colocar lá fora assim, como democrata politicamente correto, parecia tentar também frear o ímpeto inicial de um movimento que, se deflagrado, não teria protagonismo, nem dele, nem do PT. Em primeiro de abril, quando o affair de Bolsonaro com seu ministro Mandetta aproximava-se do auge, Lula ensaiou refazer essa avaliação, admitindo que Bolsonaro havia perdido condições de continuar a governar. Interpreto que, acenando com uma mobilização pelo impeachment, tentava novamente conter um movimento (o da “presidência operacional” do Gal. Braga) que também se fazia com o PT à margem. Dez dias depois, quando as frentes "sem medo" e "popular" roeram a corda, animadas pela segunda fala do seu líder e arriscaram um avanço de sinal, ele freia de novo, mostrando que era só um primeiro de abril. Para não perder o controle sobre os seus radicais e assim poder manter o PT mais ou menos articulado com governadores, com Rodrigo Maia, Alcolumbre e com a corporação da saúde, ele volta a descartar a ideia do impeachment já. Motivações à parte, isso ajuda, é importante.
Mas dessa vez Lula rejeita o impeachment já, com duas diferenças: a primeira é a justificativa do descarte, que não é mais a ausência de um crime de responsabilidade, como ele avaliava em fevereiro. Agora é o combate à pandemia, a prioridade absoluta. A segunda diferença é que agora o adiamento do desejo de tirar Bolsonaro é por prazo mais breve. Se em fevereiro ele acenava esperar as urnas de 2022, agora acena para um movimento fora Bolsonaro, no imediato pós-corona. É bom também, ou ao menos necessário, esse encurtamento de prazo. Creio que Lula está recomeçando a sintonizar a mesma frequência geral de quem não pensa que Bolsonaro é só uma marolinha ou uma gripezinha, que a democracia do PT vai tirar de letra. Ainda que entre o seu "Fora Bolsonaro!" e o que pode ser um movimento nacional pelo impeachment haja diferenças não desprezíveis. Diferenças entre uma visão populista e uma liberal-democrática da democracia.
Como quase sempre, Lula faz política com competência, de acordo com a conjuntura. Não pode dar cartas porque tem a Justiça segurando sua mão. Mas joga bem com os dois pés. Se o chamado "centro" - ou qualquer nome que tenha o time de oposição não petista a Bolsonaro - não marcar esse artilheiro buliçoso que andava meio quieto e ficar pensando só em 2022, sem passar por 2020 e 2021, Lula e o PT podem correr por trás e fazerem, de uma campanha pelo impeachment, um estilingue, já antecipadamente fazendo, de um eventual Mourão, a nova vidraça, como fez com Temer. Se tiver pretensões políticas, o DEM (o partido que mais tem hoje, além do PT, condições de agir como um partido digno desse nome), precisará marcar por zona esse potencial adversário enquanto aceita sua colaboração contra Bolsonaro, o adversário comum. Esse é o papel de Rodrigo Maia, que precisa ficar livre de atritos à sua esquerda para poder sair jogando pelo centro e pela direita e lançar a bola adiante para um candidato que talvez ainda possa ser Mandetta, a depender do desfecho da campanha contra a pandemia. Mas precisará ter zagueiros na esquerda, segurando o jogo sollo de Lula. Por isso, Maia - e ACM Neto, o presidente nacional da sigla - precisam conversar com o inorgânico Ciro Gomes.
Com licença ou não (mas de preferência, com) de João Dória e do PSDB, Rodrigo Maia (o Tancredo da hora) vai precisar cuidar também do pé esquerdo da frente defensora das instituições, durante a campanha contra o Covid-19 e depois, na operação pelo impedimento de Bolsonaro. Alugar a canhotinha de Lula não basta, já que o ex-presidente é craque e sabe jogar também pela direita. Por isso, ao contrário de Ciro, pode ter recursos para formar seu próprio escrete, largar a frente pendurada na brocha e fazer, em 2022, sua própria campanha simbólica e/ou a de um petista que encarne o símbolo. As eleições de 2020, ou 2021, serão base de acumulação para 2022. Ganhar a eleição não parece hoje possível, mas o PT poderá, ao menos, repetir sua façanha de 2018, ocupar um lugar no segundo turno e congelar a política brasileira em ambiente polar, por mais quatro anos.
Em meio a essas evidências e cogitações sobre a política real, o benefício da dúvida pode parar no lixo e a evocação da grande política ser mero delírio idealista. O argumento, porém, é que entre a grande e a pequena política não há abismo quando uma causa política desperta uma nação. Nesses momentos o varejo político não se dissolve (dissolvê-lo, só abolindo inteiramente a democracia) mas se volta para captar o que vem de baixo.
Foi assim nos anos de 1980, quando os militares se retiraram pacificamente do poder porque a sociedade já não mais os reconhecia como poderosos e quando, por outro lado, o exclusivismo fundacionista do PT teve de ser mitigado e Lula repartiu palanque com os líderes do PMDB, porque a sociedade assim queria. A democracia era, naquele momento, uma causa nacional que ocupou o centro político, fazendo com que as pontas do espectro ideológico gravitassem em torno dela. Tal condição não foi obra do acaso nem imposição de uma revolução “de baixo”, contra “as elites”. Foi em boa parte arquitetura de uma elite política democrática que se forjou na luta contra uma ditadura. A democracia não foi obra da sociedade contra os políticos. Foi obra de uma política que persuadiu a sociedade. Apoiar e reforçar uma política prudencial, de conciliação e solidariedade, duas causas políticas cujo conteúdo prático a campanha contra o Covid-19 escancara: essa é a natureza do passo que precisa ser dado agora, na hora agonística dessa epidemia. Quem o der com mais firmeza, tendo clareza de que a política renasce na crise, tenderá a liderar o centro a ser ocupado por essas duas causas. O resto virá por gravidade. E será bem-vindo, pois as causas são generosas e juntam, em vez de separar.
*Cientista político e professor da UFBa.
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