- O Estado de S. Paulo / Aliás
Trama se passa na periferia e demonstra que uma literatura engajada só se completa se tiver valor artístico
A relação entre cinema e literatura integra a história da cultura moderna. Já foi cantada e decantada, seja na consideração das contribuições recíprocas entre as duas grandes artes, seja naquilo que cineastas incorporam, em suas trajetórias, da ficção literária.
Há, também, a direção oposta, a do cineasta que transfere sua experiência fílmica para a literatura. A pulsão de filmar e a pulsão de escrever se entrelaçam, fazendo com que palavras se transformem em imagens e cenários pungentes, que envolvem, mobilizam e emocionam.
João Batista de Andrade tem uma biografia artística concentrada no cinema. É um dos importantes cineastas brasileiros, autor de filmes que marcaram época, como Doramundo (1977), o premiadíssimo O Homem que Virou Suco (1981), A Próxima Vítima (1983), O País dos Tenentes (1987), O Cego que Gritava Luz (1996). Seus filmes contam histórias de violência, centradas na experiência das classes trabalhadoras. Valem-se bastante do documentário e do telejornalismo, apurados no trabalho que desenvolveu na Hora da Notícia da TV Cultura e no Globo Repórter. Em Vlado: 30 Anos Depois (2005), Batista mostrou todo seu talento documentarista. A busca de intervenção e a crítica política compuseram-se com a preocupação de fazer cinema para construir valores na sociedade e disseminar uma visão crítica da realidade brasileira.
JBA é um intelectual público, engajado, atento ao seu tempo. Tem atuação marcante na área de política cultural. Foi secretário estadual de Cultura de São Paulo na gestão Geraldo Alckmin. Entre 2012 e 2016 presidiu a Fundação Memorial da América Latina. Em 2014 recebeu o Troféu Juca Pato como Intelectual do Ano, prêmio da União Brasileira de Escritores.
Mineiro de Ituiutaba (1939), Batista também é escritor. Perfeccionista com as palavras, delas se vale para contar histórias e abrir janelas para a realidade, com suas tensões e contradições. Acaba de lançar seu sexto romance, O manuscrito do jovem Gabriel, um relato sobre os delírios e os estalos de lucidez de personagens que falam da vida como ela é, sem suavidade e sem perspectivas, confusos, com dramas que se esparramam em um clima de solidão, crime e violência. O escritor faz deles seus interlocutores, para assim extravasar suas próprias inquietações. Prolonga na literatura o “programa estético” que amadureceu nas décadas de dedicação ao cinema.
Há uma forte pegada psicológica no Manuscrito do Jovem Gabriel. Os personagens são revirados por dentro. Atormentados, falam de frustrações, maquinações soturnas, existência sofrida, em um ambiente no qual a vida explode, despedaçada, cortada pela sordidez, pela agressividade, pela falta de perspectivas. Gabriel idolatra um “justiceiro” da periferia de São Paulo – o falecido Cabo Davino, já presente em Um Olé em Deus (1997), romance anterior de JBA –, assassino de seu pai. Preso a uma cadeira de rodas, Gabriel respira tragédia e ressentimento. Quer vingança, mas não quer sujar as mãos. Encontra no solitário César um agente para extravasar seu ódio do mundo, seu desejo de violência e exercício do poder, manipula-o, inebriando-o com relatos que o arrastam para um tipo particular de loucura. Ao narrar a história de sua amizade com Gabriel, César reflete sobre a vida. Delira, elucubra. Mastiga o passado, que ressurge como fantasma, ora na figura do “justiceiro”, ora na apresentação dos sonhos não realizados. O relacionamento entre os dois, mediado pela sombra de Davino, fornece o fio da narrativa, dando ao escritor os elementos para traçar uma rica imagem da periferia brasileira e fazer sua crítica.
Batista esclarece que o romance nasceu como uma “imposição” de sua subjetividade, “como se a vida pedisse a mim que falasse por ela própria”, com seus personagens “às voltas com suas individualidades, sua intimidade, num momento em que os laços sociais tanto incomodam e parecem perdidos”, para os quais “não existe mais o diálogo” e a política fracassou.
O escritor não alivia. Sua escrita é visceral, desnuda um cotidiano contaminado, sem nenhum polo positivo ou saída. Os personagens lidam com um mundo “que se nega e se torna inimigo de si próprio”, um buraco fundo, incompreensível e assustador, no qual prevalece “o prazer de agredir, de ofender, de contradizer, de confundir”. Vivem, como Gabriel, em busca de um “pai poderoso, capaz de proteger”. Não há “mocinhos” no enredo, somente pessoas desorientadas e vítimas. O leitor se depara com um quadro amargo da sociedade (pós-moderna) em que estamos, cada qual com seus interesses, seus planos, fantasias e ilusões, mas todos igualmente oprimidos por dinâmicas que não controlam, por redes impositivas, informações, tecnologia onipresente e quase nenhuma ideia sobre o futuro.
João Batista de Andrade é um intelectual posicionado, que transita entre a produção artística e a militância política. Mas sua criação literária está distante de um “realismo” funcional, panfletário, maniqueísta. O Manuscrito do Jovem Gabriel é uma demonstração vigorosa de que uma literatura engajada só se completa se tiver valor artístico em si mesma.
* Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política da Unesp
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