domingo, 12 de abril de 2020

O que a mídia pensa - Editoriais

• Pagar pela guerra – Editorial | Folha de S. Paulo

Gasto público deve subir com critério; depois, conta deve poupar os mais pobres

Como se observa em todo o mundo, as imperativas restrições à movimentação de pessoas para conter a Covid-19 provocam impacto econômico dramático. A retração da atividade e as perdas de renda e empregos podem ter dimensões raramente vistas por um século.

Não são descabidas estimativas que apontam contrações de até 10% do Produto Interno Bruto de muitos países, inclusive entre os desenvolvidos. O custo social dessa pane é tremendo e exige ação imediata dos governos para evitar que famílias mergulhem na pobreza.

No Brasil não é diferente. A coletânea de medidas anunciadas até agora pelo poder público, apesar da coordenação deficiente do Executivo federal, segue a direção correta.

O pagamento de R$ 600 mensais por um trimestre a trabalhadores de baixa renda, regras que permitem flexibilizar temporariamente contratos de trabalho mediante compensação com dinheiro público, prazo maior para o pagamento de impostos e outras iniciativas contribuem para minorar o efeito do inevitável declínio da economia.

Tudo isso custará ao menos o equivalente a 5% do PIB, entre aumento de gastos e queda de receitas. Embora parte da arrecadação adiada vá retornar adiante, a debilidade da economia deverá prolongar o período de recuperação.

Nesse contexto, a dívida pública subirá bruscamente, interrompendo a tendência de desaceleração que começava a ser observada após cinco anos de restrições orçamentárias. Ainda é cedo para projeções seguras, mas a proporção entre a dívida e o PIB pode saltar de 76%, apurados em março, para algo entre 85% e 90%.

O preço do combate à pandemia e suas consequências será elevado, portanto, e o país precisa pensar desde logo como vai se preparar para pagá-lo. A história demonstra que endividamento governamental em ascensão descontrolada expõe o país a mais riscos de desorganização econômica.

Ao mesmo tempo, a crise do coronavírus comprova de forma cabal a importância de um Estado ágil e funcional na proteção das pessoas. Ninguém desconhece a deficiência do poder público brasileiro em suas atividades-fim, como educação, saúde e segurança, apesar da alta carga tributária.

Pagar a conta da guerra ao vírus e, ao mesmo tempo, melhorar serviços essenciais num cenário de penúria orçamentária pode parecer um problema insolúvel.

Enfrentá-lo depende de decisões corretas que precisam ser tomadas já. O primeiro passo consiste em distinguir claramente os gastos necessários para lidar com a emergência, na saúde e na economia, dos desembolsos normais.

Nesse sentido, é boa a ideia de uma espécie de Orçamento de guerra, com verbas e governança diferenciadas enquanto durar a calamidade pública. Não se pode permitir agora a criação de compromissos permanentes.

Um fator positivo, hoje, é o patamar historicamente baixo dos juros, que permite ao governo rolar sua dívida a custos menores. Logo, mostra-se essencial garantir que essa condição permaneça.

Para tanto, deve-se preservar o teto de gastos federais inscrito na Constituição, cujos limites devem voltar a ser obedecidos após a superação da crise do coronavírus. Assim haverá um horizonte para o controle do endividamento.

A agenda de reformas econômicas desenhada antes da pandemia —administrativa e tributária em especial— não deixará de ser essencial para que o Estado se mantenha solvente e o país recobre capacidade de crescimento. Entretanto haverá necessidade de medidas de efeito mais imediato.

Após a recessão que ora se afigura inescapável, será preciso fazer mais para reequilibrar as receitas e despesas públicas. A diretriz essencial nesse esforço deve ser evitar que o ajuste recaia sobre os estratos carentes da população.

Uma providência fundamental, já por muito tempo adiada, é rever subsídios e benefícios tributários, que hoje somam exorbitantes 4% do PIB e incluem favorecimentos descabidos. Fazer chegar aos cofres públicos uma fração disso já seria um auxílio importante.

Também há espaço para tornar o Imposto de Renda mais progressivo, com elevação da alíquota máxima incidente sobre as pessoas físicas —a brasileira, de 27,5%, é baixa para padrões internacionais— e tributação de dividendos, fazendo-se o ajuste adequado na taxação dos lucros das empresas.

Não se trata aqui necessariamente de elevar a carga tributária, mas sobretudo de torná-la mais justa. Com o mesmo objetivo de promover correta distribuição de encargos, privilégios de corporações estatais devem ser eliminados com a regulamentação do teto salarial do serviço público, há anos em debate.

Será necessário acelerar as privatizações, mediante autorização do Congresso para uma venda mais ampla de empresas, em vez de autorizações caso a caso. O objetivo principal deve ser a eficiência econômica, mas também as receitas serão mais que bem-vindas.

O Brasil que ainda não se recuperou da última recessão sairá empobrecido desta crise. O sentido de urgência quanto ao que precisa ser feito tem de estar presente tanto agora quanto depois.

• Coronavírus desvenda um Brasil invisível – Editorial | O Globo

Quase nunca à vista de grande parte da população, a miséria e a falta de infraestrutura estão à mostra

Há correlações feitas por historiadores entre “pestes” e mudanças nas sociedades enfermas enquanto se debatem contra doenças desconhecidas, de resultados devastadores. A “peste negra”, ou bubônica, transmitida a partir de ratos e pulgas, no século XIV, é relacionada, entre outros eventos, ao enfraquecimento da ordem feudal. Estima-se que cerca de um terço da população da Europa foi dizimada, reduzindo a força de trabalho e afetando o sistema de produção da época. Qual será o efeito da Covid-19?

As correlações feitas são imprecisas. Mas o acervo de conhecimento científico de hoje leva a supor que é questão de tempo o desenvolvimento de uma vacina — um ano e meio ou dois — e/ou a obtenção de resultados positivos nas pesquisas em curso ao redor de planeta na busca de substâncias químicas usadas em medicamentos já existentes que possam conter o avanço do Sars-CoV-2. Não será a primeira vez.

Seja como for, são grandes e reverberarão durante muito tempo os efeitos no mundo globalizado da pandemia iniciada em janeiro na China, ou talvez no último trimestre de 2019, na região de Wuhan. A economia mundial travou, em um movimento em cascata iniciado na indústria chinesa fornecedora de componentes, numa onda que tomou a Ásia, ocupou a Europa e invadiu as Américas, estando em fase de desembarque no Brasil, enquanto o coronavírus aumenta o número de vítimas.

Há quase dois milhões de infectados no mundo e mais de cem mil mortos. Já é a maior pandemia em cem anos, desde a Gripe Espanhola de 1917/18. Mesmo com todas as disparidades entre os países, é arriscado apostar que se repetirão tragédias medievais. Mas isso não tira a importância de análises e debates sobre o que a crise já histórica do coronavírus traz de alertas para a Humanidade. Um terço da população europeia não ser dizimada não significa que este coronavírus não traga mensagens a serem decifradas para melhorar a qualidade da vida na Terra.

Entre elas, há a demonstração de que fechar fronteiras não protege contra todas as ameaças, algumas mortais. A pandemia ensina que a cooperação entre as nações é o melhor caminho. Assim como é impossível um país produzir tudo de que necessita, mesmo que haja quem use a crise como argumento para se adotar o caminho oposto. Será gritante retrocesso se a Covid-19 afastar países.

O coronavírus tem trazido para o primeiro plano das atenções uma parte substancial do Brasil que não está à vista de todos ou não completamente: comunidades, ou favelas, em situação sanitária deplorável devido ao histórico descaso de governantes com a infraestrutura de água e esgoto e condições urbanísticas mínimas de habitação. A paralisação da economia drenou o dinheiro em circulação e logo sufocou dezenas de milhões de trabalhadores informais moradores deste outro país, “invisíveis” para o Estado e a muitos brasileiros. Enquanto aguardam os R$ 600,00 do governo, sobrevivem da ação solidária de organizações sociais e de iniciativas individuais generosas.

Passada a crise, que este outro Brasil que está sendo exposto pelo coronavírus com todas as suas mazelas não volte para a invisibilidade. Que entre de vez nas preocupações dos políticos não como rebanho de votos a serem ordenhados pelo populismo e pela demagogia.

• Crise mundial aguça desencontros entre europeus ‘ricos’ e ‘pobres’ – Editorial | O Globo

Volta o conflito da crise de 2008/9, sobre quem pagará o custo do apoio aos países mais atingidos

Crises são oportunidades, repetem os chineses, mas também podem ressuscitar ou agravar dificuldades que se arrastam há tempos. As turbulências globais tendem a desagregar. Foi assim com a União Europeia em 2008/2009, já está sendo assim agora. Repete-se o choque entre o Sul, “pobre”, em que se destaca a Itália, ao lado de Espanha, Portugal, Grécia e outros, e os “ricos” do Norte, com a Alemanha à frente, Holanda, França — aliada eventual dos “pobres” — e Escandinávia. O enfrentamento volta a ocorrer sobre quem pagará a conta do socorro aos “pobres” e da reconstrução econômica, que desta vez será grande.

Durante a semana, os ministros das Finanças do bloco reuniram-se durante horas sem acordo. A Itália e seus aliados defendem o lançamento de títulos (Eurobond ou “Coronabonds”) para financiar a empreitada. Alemanha e Holanda se destacam no bloco de oposição à proposta Não querem que seus contribuintes sejam chamados um dia a pagar esta despesa. Mas é preciso impedir que a UE naufrague. Na sexta chegaram ao um entendimento sobre uma linha de ajuda de 500 bilhões de euros. Sem o lançamento de títulos.

A UE está novamente na bifurcação: entra na rota da desintegração ou avança no caminho de uma união verdadeira. Um aspecto-chave deste momento para a UE é quão generosos serão os “ricos” (Alemanha) para ajudar os “pobres”. O salvamento de países como Itália, Espanha e outros pelo bloco sempre será um assunto polêmico para alemães e holandeses.

Numa crise histórica, deflagrada pela mais grave pandemia em cem anos, mesmo a Alemanha de Angela Merkel, da conservadora União Democrata Cristã (CDU), contraria a cautela construída a partir da hiperinflação dos anos 1920 e foi obrigada a preparar um volumoso pacote para salvar empresas e empregos. Como em todo mundo. Mas é diferente de empenhar o futuro do Tesouro alemão com países com histórico de populismo. Com razão, Alemanha e Holanda pedem contrapartidas das economias que serão resgatadas com recursos de todos.

Mas o cataclisma do coronavírus exige coesão e solidariedade, predicados que requerem uma postura política especial, incomum. Afinal, a crise que evolui com rapidez também é incomum.

• Opção pela vida – Editorial | O Estado de S. Paulo

É hora de toda a sociedade aumentar a adesão ao isolamento. Sem isto, a recuperação econômica será mais penosa para toda a Nação

Desde a eclosão da pandemia de covid-19, líderes no mundo inteiro foram instados a responder o que deveria ser prioritário no desenho das ações de enfrentamento da crise: medidas que visam à proteção da vida ou da economia? Para salvar o maior número possível de vidas, dizem quase em uníssono os especialistas, impõe-se o isolamento indistinto da população. Para resguardar a atividade econômica, este recolhimento deveria ser seletivo, ou seja, válido apenas para as pessoas que estão nos grupos de risco – idosos e pacientes com doenças crônicas como diabetes e hipertensão, entre outras comorbidades.

Os líderes mais inteligentes e responsáveis perceberam de pronto que priorizar a vida ou a economia é um falso dilema. Evidentemente, medidas de proteção da vida devem preceder todas as outras. Primeiro, por um imperativo moral, humanitário. Segundo, por uma questão pragmática: não há economia que pare de pé, em nenhum país do mundo, tendo deixado um rastro interminável de mortos. E é isto o que acontecerá se apenas determinados grupos forem isolados. Por ignorância ou má-fé, os que apostam no isolamento seletivo para mitigar os efeitos da pandemia na atividade econômica não levam em conta que, mesmo permanecendo em casa, pessoas nos grupos de risco estarão sempre expostas ao contágio pelo contato com as que foram liberadas para sair às ruas. É elementar.

O presidente Jair Bolsonaro é um dos escassos líderes mundiais que tomaram lado nesta contenda infrutífera, que, se presta para alguma coisa, é para alavancar interesses políticos. Sua opção ficou claramente conhecida por meio de declarações como “Vai morrer gente? Vai. Paciência”, “Esse vírus é igual a chuva. Vai molhar 70% de vocês. Alguns idosos vão se molhar também” e “Pessoas que estão morrendo de covid-19 já iriam morrer de outras causas”. Que tal?

Por sorte, o olhar do presidente da República sobre a pandemia não é o mesmo da esmagadora maioria da população, que fez uma clara opção pela vida. Pesquisa realizada pelo Datafolha com 1.511 brasileiros adultos que possuem telefone celular, em todas as regiões do País, revelou que 76% dos entrevistados apoiam medidas restritivas à circulação de pessoas e fechamento do comércio não essencial para evitar a disseminação do novo coronavírus, ainda que isso prejudique temporariamente a economia e leve ao aumento do desemprego. Apenas 18% dos brasileiros ouvidos pelo instituto de pesquisa disseram ser favoráveis ao relaxamento da quarentena como forma de estimular a atividade econômica, enquanto 6% não souberam ou não quiseram responder.

Entre os que defendem apenas o isolamento de pessoas que integram os grupos de risco, 43% são homens, 49% são empresários e 45% têm entre 35 e 44 anos. Não por acaso, são perfis que correspondem à base de apoio do presidente Jair Bolsonaro.

Outro achado da pesquisa que merece destaque diz respeito à percepção dos trabalhadores informais e dos desempregados, estratos da sociedade que estão entre os mais atingidos pelos efeitos econômicos da pandemia. Embora o presidente Bolsonaro defenda o relaxamento da quarentena para preservar a renda “do camelô, do ambulante, do vendedor de churrasquinho”, 58% dos informais concordam que o isolamento irrestrito é fundamental para preservação da vida neste momento. O mesmo vale para 63% dos entrevistados que disseram estar procurando emprego. Importante ressaltar ainda que a rejeição a Jair Bolsonaro aumentou 10% entre os informais e 4% entre os desempregados, não obstante a defesa que o presidente faz da retomada da atividade econômica que, ao fim e ao cabo, beneficiaria os dois segmentos, ainda que sob forte risco para a saúde pública.

Como se vê, é inequívoco o respaldo social à quarentena. Para a maioria dos cidadãos, está claro que o abalo na economia é certo, seja durante, seja após a pandemia de covid-19, mas a economia pode ser recuperada, vidas, não. É hora de toda a sociedade se engajar ainda mais nas ações de resguardo da saúde pública, o que implica aumentar a adesão ao isolamento. Sem isso, a recuperação econômica será mais penosa para toda a Nação.

• Irresponsabilidade diante da crise global – Editorial | O Estado de S. Paulo

Provocações põem vendas em perigo enquanto despenca o comércio mundial

O mundo precisa comer, o Brasil tem comida para exportar e isso garantirá dezenas de bilhões de dólares num ano péssimo para a economia mundial – se nenhuma nova bobagem atrapalhar as vendas externas. Bobagens graves já foram cometidas pelo deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, e pelo ministro da Educação, Abraham Weintraub. Ambos conseguiram criar atritos com a China, maior parceira comercial do País, num momento especialmente ruim em todos os mercados. Já emperrado nos últimos anos, o comércio internacional levará um tombo enorme em 2020, no meio de uma crise muito mais grave que a de 2008-2009. As trocas de mercadorias vão encolher no mínimo 13% e no máximo 32%, segundo a Organização Mundial do Comércio (OMC). Incertezas sobre a duração e os efeitos da pandemia explicam a ampla diferença entre a melhor hipótese e a pior. Mas em qualquer caso a experiência será, como já vem sendo, muito ruim para todos.

“O inevitável declínio no comércio e na atividade produzirá consequências dolorosas para as famílias e para as empresas, somadas ao sofrimento humano causado pela própria doença”, comentou o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo. Nenhuma área do comércio ficará imune. O intercâmbio de serviços foi logo afetado, com a redução das viagens, principalmente de turismo, e grandes perdas para companhias de transporte, hotéis, bares e restaurantes. Para o Brasil, o comércio de mercadorias tem especial importância, porque aí está o sustentáculo de suas contas externas.

Alguns países serão muito afetados pela interrupção das cadeias produtivas. Efeitos já são visíveis, no Brasil, por causa do fornecimento menor de componentes chineses. Mas os países mais atingidos serão aqueles mais integrados nas cadeias globais de produção, como Estados Unidos e China.

A baixa da atividade em vários grandes mercados poderá diminuir a demanda de produtos minerais e do agronegócio. Mas os exportadores de alimentos e de matérias-primas agrícolas, como o Brasil, poderão ser atingidos menos gravemente. Mesmo com menor crescimento em 2020, a China continuará demandando grandes volumes desses produtos e o Brasil estará preparado para responder. No ano passado, as exportações do agronegócio renderam US$ 96,7 bilhões e o mercado chinês garantiu 35% desse faturamento.

No caso do Brasil, as vendas do agronegócio são crucialmente importantes para a sustentação das contas externas. O superávit obtido pelo setor mais que compensa o déficit acumulado em outros segmentos da economia. Graças a isso, tem sido possível fechar a balança comercial, ano após ano, com robustos saldos positivos, suficientes para manter o balanço de pagamentos em razoável segurança. Neste ano, até março, o Brasil acumulou superávit de US$ 5,6 bilhões na conta de mercadorias, segundo números do Ministério da Economia.

De novo, o superávit foi obtido graças ao resultado do agronegócio. Mas o saldo comercial foi 38,4% menor que o de um ano antes. Continuou no azul, mas o declínio, refletindo uma situação particularmente complicada, acende um alerta no setor externo.

Em qualquer circunstância seria tolice e irresponsabilidade pôr em risco as exportações. O erro se torna mais grave quando prejudica ou pode prejudicar a principal viga de sustentação da conta de comércio. O presidente Jair Bolsonaro fez isso mais de uma vez, criando mal-estar com a China e com países muçulmanos, também grandes clientes do agronegócio. Consertos foram providenciados pela ministra da Agricultura e pelo vice-presidente da República, mas problemas foram de novo criados por um filho do presidente e pelo ministro da Educação. Além de gratuitas, as provocações são irresponsáveis e têm um lado esquizofrênico, disse ao Estado o respeitado diplomata Sérgio Amaral, ex-embaixador em Londres, Paris e Washington, ex-ministro da Indústria e do Comércio Exterior. Falta saber se o presidente Bolsonaro percebe a gravidade dos erros e a aberração do comportamento de seu ministro.

• Solidariedade com responsabilidade – Editorial | O Estado de S. Paulo

Plano que deveria recuperar os Estados da inadimplência irá nutrir vícios que levaram a ela

“Crises como esta tendem a trazer o melhor e o pior na humanidade”, disse o diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. Com a política nacional não é diferente. No Planalto, por exemplo, a crise expôs o melhor de seus quadros técnicos – por exemplo, nos Ministérios da Saúde, da Infraestrutura ou da Agricultura –, assim como o pior de suas hostes ideológicas. O melhor dos governos estaduais veio à tona com as medidas acertadas de contenção da epidemia. Já o pior – o oportunismo político e a irresponsabilidade fiscal – rebentou na semana passada no Congresso, com as negociações para a reformulação do Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal (o “Plano Mansueto”).

O plano, apresentado no ano passado, estabelece um programa temporário de curto prazo que permite a Estados e municípios sem capacidade de pagamento contrair empréstimos com garantias da União desde que façam ajuste fiscal.

Com a pandemia, o Congresso decidiu acertadamente flexibilizar algumas exigências para liberar novos financiamentos, criando um “fast track” para que os governos subnacionais possam acessar dinheiro novo – uma espécie de “respirador” para Estados e municípios à beira da asfixia.

O problema é que, com a crônica desarticulação do Planalto, o plano foi rapidamente desfigurado. Como alertaram em artigo no Brazil Journal os economistas do Insper Marcos Lisboa e Marcos Mendes, os Estados aproveitaram a ocasião para empurrar ao Tesouro – diga-se, aos contribuintes – os custos de décadas de má gestão que nada têm a ver com a crise sanitária. Os “governadores estão negociando ‘a mãe de todas as bombas fiscais’, elevando a dívida pública a 100% do PIB e onerando a sociedade com (ainda) mais impostos e austeridade por pelo menos mais uma década”.

Em negociação estão novas linhas de empréstimos, suspensão do pagamento da dívida com a União e dos pagamentos de precatórios por longuíssimos prazos e suspensão dos limites de pessoal previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal. A equipe econômica calcula um custo de R$ 160 bilhões para a União. Já o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, fala em R$ 85 bilhões. Lisboa e Mendes estimaram R$ 150 bilhões. Após uma guerra de números no plenário, a votação foi adiada para esta semana, dando tempo para que os parlamentares tentem chegar a um consenso.

O projeto autoriza os Estados a aumentar em 10% o estoque de suas dívidas. Além de suspender o pagamento das dívidas, permite aos governadores tomarem crédito novo no limite de 8% de suas receitas. Segundo a Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, os novos empréstimos somariam algo entre R$ 55 bilhões e R$ 65 bilhões, além do volume de R$ 565 bilhões de 2019. Mas tudo sem qualquer contrapartida.

Isso significaria repetir a ampliação do endividamento dos Estados após a crise de 2008, abrindo margem para que os recursos sejam empregados em mais gastos permanentes, agravando sua penúria e inadimplência. “O custo recairá sobre a União, passada a tempestade, e o problema fiscal será maior do que antes da crise”, advertiu o diretor da IFI, Felipe Salto. “Trata-se de repassar todo o passivo dos Estados para a União e ainda obter recursos adicionais”, disseram Lisboa e Mendes.

Um plano de resgate dos Estados já era urgente antes da crise e ficou ainda mais com ela: os Estados e municípios precisam ser salvos do desequilíbrio fiscal e, se não for encontrada uma solução, o País se tornará ingovernável. Mas generosidade não pode ser sinônimo de irresponsabilidade. O Congresso precisa se concentrar em programas emergenciais e intervenções cirúrgicas para socorrer o sistema de saúde e os desfavorecidos pelo apagão econômico. Mas se, a pretexto do pânico social, for estendido aos Estados todo o bônus – o crédito –, sem o ônus – a racionalização de seus gastos –, isso custará às próximas gerações mais impostos e menos investimentos públicos. Desvirtuado como está, o plano que deveria recuperar os Estados de sua crônica enfermidade pulmonar – agravada com a crise pandêmica – está nutrindo os vícios que levaram a ela.

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