EDITORIAIS
Depois dos 500 mil mortos pela Covid-19
O Globo
Em meio a tanta incerteza diante da
pandemia mais letal dos últimos cem anos, havia uma certeza: cedo ou tarde o
Brasil chegaria à marca das 500 mil vidas perdidas para o novo coronavírus.
Somos o segundo país do mundo a atingi-la depois dos Estados Unidos. Trata-se
de um choque de mortalidade sem paralelo na história recente. Desde o início da
pandemia, a morte de brasileiros superou em quase 30% a média histórica. De
cada nove mortos no país, dois estariam vivos não fosse o novo coronavírus. Tão
dramático quanto a tragédia é não haver, a nosso alcance, perspectiva de frear
essa marcha insensata. Ao contrário, os indicadores mostram que voltamos a
acelerar rumo ao precipício. Depois de uma breve trégua, a média de mortes nos
últimos sete dias retornou ao patamar superior a 2 mil.
Inútil discutir se estamos entrando na terceira onda, na quarta ou se nunca saímos da primeira. Para as famílias das cinco centenas de milhares de brasileiros que perderam pais, mães e filhos para a Covid-19, esse debate não tem serventia. A realidade de uma epidemia sempiterna, de ondas que vão e voltam, parece se tornar mais provável. Reportado inicialmente na China em fins de 2019, o Sars-CoV-2 veio para ficar. Erradicá-lo nas condições atuais é, segundo epidemiologistas, improvável. É possível, por intermédio da vacinação em massa, atingir um patamar de imunidade coletiva capaz de frear algumas cepas do vírus — mas outras virão, de modo inexorável.
A verdade é que nada será como antes. A
vacinação continua sendo a única esperança para vencer o vírus, mas não é uma
solução mágica. Países ricos encomendaram estoques suficientes para vacinar
duas ou três vezes suas populações, enquanto nações pobres mal começaram. De
acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 75% das vacinas estão
concentradas em apenas dez países, um “escândalo de desigualdade”, nas palavras
do diretor-geral Tedros Adhanom. A continuar nesse ritmo, nações de baixa renda
só terão vacinas em 2023. E esse é um problema para todo o planeta. Se a
pandemia mostrou algo ao mundo, é que ou todos derrotamos o vírus, ou ninguém
derrota. O G7 decidiu na reunião da semana passada doar 1 bilhão de doses às
nações pobres, quantidade muito aquém da necessária. Persistirão bolsões de
suscetíveis suficientes para a evolução darwiniana continuar a fazer seu
trabalho de gerar novas cepas.
Nem os países que avançaram na vacinação
estão livres de ameaças diante delas. Não é de surpreender o aumento do número
de casos de Covid-19 em lugares como Reino Unido, Seychelles, Chile, Mongólia e
mesmo países da Ásia que se consideravam vitoriosos, como Vietnã. No Reino
Unido, uma história de sucesso na imunização, a variante delta, detectada no
ano passado na Índia, já responde por cerca de 90% dos casos. Estima-se que
seja 60% mais transmissível do que a alfa, que predominava anteriormente e já
levara o país ao caos. O aumento súbito do número de infectados e o receio de
que isso poderá provocar um estresse na rede de saúde levaram o
primeiro-ministro, Boris Jonhson, a adiar o fim das medidas de restrição, de 21
de junho para 19 de julho.
A variante delta é hoje uma das maiores
preocupações em todo o mundo. Além de aumentar a hospitalização, atinge faixas
etárias que passavam ao largo da pandemia, como as crianças. A situação fica
mais complexa porque vacinas podem se tornar menos eficazes diante dessa e de
outras novas variantes. Números preliminares das autoridades sanitárias
britânicas sugerem que as da Pfizer e da AstraZeneca, embora ainda mantenham
eficácia elevada para evitar hospitalização (96% e 92%, respectivamente, para
quem tomou duas doses), são menos eficazes para prevenir sintomas (88% e 60%,
respectivamente, com as duas doses; e 33%, para ambas, com apenas uma). Segundo
a OMS, a delta já é dominante no mundo. Nos Estados Unidos, onde estados como
Nova York aboliram recentemente as medidas de restrição contra o contágio na
esteira do avanço da vacinação, ela representa 6% das novas infecções. No
Brasil, já foram confirmados casos no Maranhão e no Paraná. Mas, como fazemos
raríssimos sequenciamentos de genoma, que permitem identificar as mutações, é
possível que o problema seja maior.
Até hoje a humanidade só conseguiu
erradicar um vírus, o da varíola. O mais provável é que a Covid-19 passe a
fazer parte das estatísticas corriqueiras e, com o fim da pandemia, se torne
uma doença endêmica, que continuará a exigir cuidados de todos. É, portanto,
imprudente a pressa do presidente Jair Bolsonaro para abolir máscaras, quando o
país tem menos de 12% de vacinados com a segunda dose. A nova realidade
exigirá, ao mesmo tempo, maior agilidade no monitoramento das variantes, maior
capacidade de desenvolvimento de vacinas contra elas e maior integração entre
os países para levar as vacinas aonde são necessárias. Quanto mais tardar a
vacinação em todo o mundo, maior a vulnerabilidade às mutações.
Em artigo na Foreign Affairs, pesquisadores
comparam a corrida para conter o vírus a, “ao mesmo tempo, um sprint e uma
maratona”. O mundo, afirmam, precisa melhorar a vigilância e a resposta a novas
pandemias, já que a OMS fracassou miseravelmente nesta. Sugerem a criação de um
conselho global de saúde formado por chefes de governo, separado da OMS.
Precisaria ser um organismo com poder de ação e imune a ingerências políticas,
capaz de resgatar a confiança nas instituições multilaterais. Eis como resumem
as perspectivas: “Da devastação causada pela Covid-19, o mundo precisa
trabalhar junto para construir um sistema permanente para mitigar a atual
pandemia e prevenir a próxima. Pensar como fazê-lo pode ser o maior desafio do
nosso tempo”.
Para não esquecer
Folha de S. Paulo
Meio milhão de mortos por Covid no Brasil,
fracasso a ser inscrito na história
A admirável capacidade do ser humano de se
adaptar à adversidade talvez ajude a explicar o mecanismo psicológico da
resignação diante do massacre promovido pela Covid-19 no Brasil.
Múltiplos das cifras de óbitos que no
início da pandemia despertavam alarme agora passam como rotina.
Trezentos mortos, quinhentos mortos, mil
mortos, 2.000 mortos, até 4.000 mortos —todos os dias. Já se acumula meio
milhão de vidas abreviadas por uma doença cuja incidência pode ser controlada.
Quando o novo coronavírus foi identificado
como causa da enfermidade, em janeiro de 2020, não estava escrito nas estrelas
que quase 25 de cada 10.000 brasileiros desapareceriam em 18 meses. Tampouco se
gravava em pedra que a nossa jovem sociedade padeceria mais que as de nações
envelhecidas da Ásia e da Europa.
Meio milhão de mortos constitui o resultado
de um fracasso histórico —e disso jamais deveríamos nos esquecer. A
civilização, afinal, também é o esforço incômodo do aprendizado, é a luta da
memória da dor contra as tendências acomodatícias da anestesia.
O mal-estar de investigar o que terá dado
errado no Brasil da pandemia remeterá às causas do desenvolvimento pela metade
e desigual do país. A impaciência, a imprevidência, a ignorância, a
indisciplina, a misantropia e o descomedimento surgirão conectados às muitas
décadas de desídia com o cultivo das melhores instituições que a humanidade já
inventou.
Decerto é difícil exigir de contingentes
enormes o respeito a cautelas sanitárias se as redes de esgoto —tecnologia
barata há muito tempo dominada— mal alcançam metade dos habitantes. Ou demandar
distanciamento na realidade aglutinada dos barracos e das favelas.
Como cobrar das crianças aglomeradas, de
repente privadas da escola, que imitem os filhos da elite e estudem pela
internet sem condições alimentares e de infraestrutura mínimas? O que dizer à
massa de trabalhadores com baixa instrução lançada à informalidade: fiquem em
home office?
A qualidade da resposta governamental
também reflete o desajuste crônico. Dois destrambelhados foram alçados à
Presidência, um nos Estados Unidos, outro no Brasil. Lá órgãos técnicos e
burocráticos federais com capacidade e autonomia atuaram a despeito das
peripécias do mandatário.
Aqui, a coordenação federal pôde ser
dinamitada com simples trocas de ministros da Saúde, a depender dos humores do
chefe do Executivo. O Brasil lutou durante anos para estabelecer uma autoridade
autônoma no controle da moeda, mas deixou de lado essa preocupação quando se
trata de saúde, educação, ciência e tecnologia. Falhou e paga agora por isso.
Entidades com tradição no combate a doenças
infecciosas, como Butantan e Fiocruz, ficaram à mercê dos centros de vanguarda
biotecnológica e suprimento industrial.
Uma nova fábrica, como a projetada pela
fundação sediada no Rio, vai demorar mais de ano para sair do papel, enquanto a
escala da produção de vacinas se multiplica nos EUA, na China e na Europa.
Não se trata de falta de recursos
financeiros. O Brasil tem um nível suficiente de renda para ter podido
multiplicar por oito o déficit federal em 2020 na tentativa de socorrer os
segmentos em apuros.
Haveria dinheiro de sobra para adotar
estratégias eficazes de controle da doença, como testagem e monitoramento
estrito, e para antecipar e imprimir maior velocidade à vacinação. Com a mesma
verba, o programa de auxílio à renda da população vulnerável poderia ter sido
bem mais efetivo e estável, em vez de ter ficado sujeito a palpites e
solavancos.
Faltou o que não se improvisa nem se
adquire facilmente em tempos de crise: inteligência, mecanismos e capacidade
para coordenar uma resposta coletiva e tempestiva à altura do desafio
gigantesco.
As lições para não esquecer dessa trágica
marca de 500 mil mortos recomendam instruir compulsivamente as crianças e os
jovens; assegurar o consumo básico dos vulneráveis; investir em saneamento e na
infraestrutura que afeta diretamente a vida da maioria dos brasileiros; adensar
as instituições para que possam responder aos desafios urgentes e preservar as
políticas de Estado que melhoram o futuro.
Ter eleito o pior presidente da República
desde a redemocratização, que infestou a Esplanada com assessores de nível
pré-ginasiano, contribuiu decisivamente para o desfecho catastrófico.
Parte desse dolorido aprendizado há de recair sobre os brasileiros que vão às urnas em outubro do ano que vem. Em regimes democráticos, as escolhas eleitorais têm consequências que recaem sobre o conjunto da população, em especial sobre a parcela mais pobre.
O dever cívico do presidente, e o nosso
O Estado de S. Paulo
O presidente do Tribunal Superior
Eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, disse em entrevista à TV CNN que o
presidente Jair Bolsonaro tem o “dever cívico” de entregar à Corte as provas
que diz ter de que houve fraude nas eleições de 2018.
Na quinta-feira passada, Bolsonaro tornou a
levantar dúvidas sobre a lisura do pleito que venceu e também a do segundo
turno da eleição de 2014, que, segundo o presidente, foi vencida de fato pelo
tucano Aécio Neves, e não pela petista Dilma Rousseff.
“Mais que desconfio, eu tenho convicção de
que realmente tem fraude. As informações que nós tivemos aqui, talvez a gente
venha a disponibilizar um dia, é que em 2014 o Aécio ganhou as eleições, em
2018 eu ganhei no primeiro turno”, declarou o presidente.
Ao dizer que Bolsonaro tem o “dever cívico”
de entregar à Justiça Eleitoral as provas das tais fraudes, como vem prometendo
fazer desde 2020, o ministro Barroso recordou qual é a principal obrigação de
todos os cidadãos numa democracia: a de fazer o possível para preservar as
instituições democráticas.
Como o voto dos cidadãos é, em si mesmo,
pilar dessas instituições, pois lhes confere legitimidade democrática, nada é
mais importante do que assegurar que essa expressão da vontade cidadã seja autêntica,
e não fraudada.
Por isso, se Bolsonaro de fato tem provas
de que houve adulteração nas votações, deveria tê-las apresentado à Justiça
Eleitoral assim que as recebeu. Era o que faria qualquer cidadão consciente de
seus deveres para com a sociedade, como salientou corretamente o ministro
Barroso. Se Bolsonaro até agora não o fez, das duas, uma: ou não tem prova
nenhuma ou ignora quais são seus deveres cívicos. Qualquer dessas hipóteses é
terrível em se tratando do presidente da República.
Mas Bolsonaro descumpre outros deveres
cívicos. Se todos os cidadãos têm de agir no sentido de preservar os bens
coletivos, como se exige numa República, é lícito esperar que, durante uma
pandemia, todos colaborem o máximo que puderem para reduzir o contágio. Afinal,
a saúde é um bem coletivo por definição. Esse imperativo é ainda maior em se
tratando do presidente da República, pois é dele que deve partir o exemplo.
Como se sabe, Bolsonaro atua dia e noite
para desmobilizar os esforços da sociedade para conter a pandemia de covid-19.
Depois de sabotar vacinas, promover aglomerações e atacar governadores que
determinam medidas de distanciamento social, o presidente deu agora de fazer
campanha contra o uso de máscara, método reconhecidamente eficiente para
diminuir o risco de contaminação.
Pior: na quinta-feira, praticamente
estimulou os brasileiros a se deixarem contaminar pelo coronavírus. “Todos os
que contraíram o vírus estão vacinados, até de forma mais eficaz que a própria
vacina, porque você pegou o vírus pra valer. Quem pegou o vírus está
imunizado”, disse Bolsonaro, contrariando toda a literatura científica a
respeito da pandemia e, de quebra, colocando em dúvida a eficácia das vacinas.
Ao fazê-lo, o presidente estimula seus
governados a ignorarem seus deveres cívicos, incentivando cada brasileiro a
agir conforme seus interesses pessoais em detrimento da saúde de todos –
exatamente como faz desde sempre o próprio Bolsonaro.
O presidente alimenta o devaneio de
transformar o Brasil num país de pequenos Bolsonaros, gente para quem os únicos
deveres cívicos são os deveres familiares. Nessa distopia, egoísmo é virtude e
solidariedade, crime. Instaura-se o cada um por si.
O caos resultante dessa perversão moral é precisamente o que busca Bolsonaro em seus delírios golpistas. Deseja um país em que nada é confiável, nem as vacinas nem as urnas. No mesmo pronunciamento em que duvidou da eficácia das vacinas, o presidente elaborou uma mirabolante teoria segundo a qual o Supremo Tribunal Federal mandou soltar Lula da Silva para fazê-lo presidente, e insinuou que a Justiça Eleitoral impede o “voto auditável” justamente para facilitar a fraude em favor do petista. E previu que esse desfecho pode “criar uma convulsão no Brasil”, obviamente provocada por ele mesmo. É dever cívico dos cidadãos conscientes impedi-lo.
O futuro fica para depois
O Estado de S. Paulo
A informação de que o País registrou alta
do PIB e da arrecadação animou os governistas, que já projetam a reeleição do
presidente Jair Bolsonaro. Em suas contas, os bolsonaristas acreditam que o
presidente entrará na campanha com caixa para gastar, com uma “folga”
orçamentária de até R$ 40 bilhões. Consultorias estimam que a inflação, que
reajusta o teto de gastos e teve grande peso no aumento da arrecadação,
proporcionará uma ampliação de cerca de R$ 120 bilhões nas despesas. Ou seja, a
riqueza à disposição nada mais é que um robusto saldo inflacionário.
Não se pode antecipar o que o governo
pretende fazer com esses recursos, mas, a julgar pela vocação demagógica de
Bolsonaro, é muito provável que o dinheiro seja investido em auxílios e em
obras eleitoreiras, medidas que costumam ter impacto positivo na popularidade.
O governo há tempos prepara uma nova versão
do Bolsa Família, que promete ser mais robusta que o desidratado programa de
transferência de renda. O nome, obviamente, será outro, porque Bolsa Família é
marca registrada do populismo lulopetista. Mas o objetivo segue sendo o mesmo:
transformar eleitores em clientes, aliviando-lhes momentaneamente a aflição da
fome e do desemprego com caraminguás.
Programas de transferência de renda são
absolutamente necessários em um país tão pobre e desigual como o Brasil, mas
devem vir acompanhados de eficientes políticas públicas de educação, saúde e
emprego, que façam dos beneficiários mais do que dependentes crônicos de
esmolas públicas, como acontece hoje em grande parte do País.
Ao longo do mandarinato lulopetista, o
Bolsa Família, inicialmente desenhado para ser temporário, tornou-se não apenas
permanente, como foi ficando cada vez mais abrangente, incluindo ano a ano mais
e mais fregueses, na exata medida das necessidades eleitorais de Lula da Silva
e do PT. Nada indica que a versão bolsonarista do Bolsa Família será diferente,
salvo o nome.
Diante dessa perspectiva, parece claro que
o governo de Jair Bolsonaro, malgrado ter sido eleito com a promessa de ser a
antítese perfeita do lulopetismo, imita-o no que há de pior. Trabalha como se
não houvesse futuro, e sim um permanente presente – o máximo de perspectiva é o
horizonte da eleição seguinte. Só se interessa pelo atendimento de demandas
imediatas por parte de grupos organizados que, de um jeito ou de outro,
conseguem se fazer ouvir pelo presidente. Ora são caminhoneiros, ora são
motociclistas, e Deus sabe quem mais conseguirá sensibilizar o generoso
distribuidor de prebendas instalado na chefia de governo.
Na época de Lula da Silva e Dilma Rousseff,
os pobres viviam a ilusão da riqueza, enquanto esta era de fato distribuída
para empreiteiras amigas e empresas associadas ao Estado, no modelo de
capitalismo de compadrio – tudo em nome de uma ideia de desenvolvimento que
prescinde de respeito à aritmética e à ética pública.
No meio disso tudo, ontem como hoje, mesmo
em momentos de recuperação econômica, o governo deixou de investir em educação,
em saúde e em infraestrutura. Quando o PT estava no poder, festejava-se a
abertura indiscriminada de universidades e o financiamento de faculdades
caça-níqueis, enquanto o ensino básico, essencial na formação dos cidadãos, era
relegado a plano secundário. Hoje, Bolsonaro transformou o Ministério da
Educação em cidadela de sua cruzada ideológica em favor do atraso, além de
cortar sistematicamente os recursos de pesquisa e ensino.
Gerações serão condenadas à pobreza e à
mediocridade em razão dessas escolhas. Nenhuma economia se sustenta, no longo
prazo, sem estudantes bem formados, sem cidadãos com acesso à saúde de
qualidade, sem uma legislação tributária racional, sem respeito ao meio
ambiente, sem um Estado que faz bom uso do dinheiro público e, principalmente,
sem reverência aos valores democráticos.
Na perspectiva do País, não há nenhuma
razão para otimismo, já que o atual presidente pleiteia a reeleição para
continuar a fazer exatamente o que fez até agora: hipotecar o futuro dos
brasileiros para usufruto imediato de sua família e agregados. Reformas
estruturais nem pensar.
Privatização desordenada
O Estado de S. Paulo
O Senado aprovou na quinta-feira passada a
Medida Provisória (MP) 1.031/2021, que abre caminho para a privatização da
Eletrobrás. Foram 42 votos favoráveis e 37 contrários. Tal com foi aprovado, o
texto é péssimo para o País. Está abarrotado de “jabutis” inseridos por
deputados e senadores que custarão R$ 84 bilhões aos consumidores de energia,
segundo associações e consultorias que acompanham o setor. Para dar a dimensão
do descalabro, basta dizer que o governo tem a expectativa de levantar,
aproximadamente, R$ 60 bilhões com a diminuição de sua participação acionária
na estatal, caindo dos atuais 60% para 45%. Ou seja, vender uma Eletrobrás
custará quase uma Eletrobrás e meia para as famílias e as empresas. Qual o
sentido disto?
O governo argumenta que a privatização da
Eletrobrás poderá reduzir a conta de energia em até 7,36%, mas faltou explicar
ao distinto público como surgiu este número mágico e quando a eventual redução
seria sentida no bolso dos consumidores.
Havia no mercado a expectativa de que os
senadores retirassem do texto da MP os “jabutis” que, na prática, tornaram a
reforma uma insensatez sob quaisquer perspectivas, sobretudo a matemática. Ledo
engano. Não só foram preservados os quelônios de estimação dos deputados, como
outros foram introduzidos pelos senadores. O que era ruim foi piorado, e nada
indica que será corrigido na Câmara, para onde o projeto seguiu. “Os deputados
vão manter o texto do Senado. Foi tudo acordado”, disse o deputado Elmar
Nascimento (DEM-BA), relator do projeto na Casa.
Um dos “jabutis” mais pesados para o
consumidor carregar, proposto pelo senador Marcos Rogério (DEM-RO), relator do
projeto no Senado, é o que impõe à União a obrigação de aumentar de 6 mil para
8 mil megawatts (MW) a contratação de energia de usinas termoelétricas movidas
a gás natural, localizadas, preferencialmente, em capitais, regiões
metropolitanas e Estados que muitas vezes não têm reserva ou qualquer ligação
com a infraestrutura para transporte de gás. O custo bilionário da construção
de gasodutos para levar o gás até estas usinas, evidentemente, será repassado
para as contas das famílias e das empresas por meio de aumento de tarifas.
Outra exigência descabida inserida na MP é
a contratação mínima, pela União, de 40% de Pequenas Centrais Hidrelétricas
(PCHs), que são, como o nome sugere, pequenas usinas com potência de geração de
até 50 MW. O custo desta obrigatoriedade também deverá ser repassado aos
consumidores. “O governo joga para a sociedade o prejuízo (de uma privatização malfeita)”,
disse ao Estado a economista Elena Landau.
A deformação do texto da MP não tem outro
objetivo que não acomodar os interesses paroquiais de deputados e senadores,
que têm uma eleição no horizonte. Já o presidente Jair Bolsonaro cedeu e se
empenhou pela aprovação desta puída colcha de retalhos porque a ele também
interessa posar como “o presidente que privatizou a Eletrobrás”, plano
acalentado por outros que o antecederam. Pouco importa se o projeto da hora é
péssimo para a sociedade. Lutar pelo que é melhor para o País nunca foi uma
preocupação que tire o sono de Bolsonaro. Embora tenha sido eleito prometendo
uma onda de privatizações sem precedentes na história do País, esta foi apenas
mais uma de suas falsas promessas. Bolsonaro jamais foi um reformista, e menos
ainda o liberal que inventou como personagem para atrair segmentos da sociedade
e vencer o pleito.
O melhor para o País é a MP 1.031/2021
perder sua validade na próxima terça-feira, até mesmo porque há “jabutis”
flagrantemente inconstitucionais, como o que dispensa a autorização do Ibama e
da Funai para a construção do Linhão Manaus-Boa Vista, que ligará Roraima ao Sistema
Integrado Nacional.
A privatização da Eletrobrás requer um novo projeto que privilegie o interesse público. Há muito o setor elétrico é alvo da exploração política irresponsável, com pesados custos para a sociedade. O tema precisa ser tratado com seriedade e espírito republicano.
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