domingo, 20 de junho de 2021

Míriam Leitão - A nossa dor além da conta

O Globo

Meio milhão de mortos. É o que temos registrado. Um número imenso, inconcebível, mas que era previsível diante dos erros do governo. Caminhamos para a morte, dolorosamente, sem saber quem entre nós será atingido na próxima semana, no próximo dia, na próxima hora. Nós, os sobreviventes, carregamos dores e sequelas de uma impiedosa mortandade. Sim, Bolsonaro é culpado, e essa não é uma frase política, é a simples constatação diante de abundantes fatos produzidos diariamente por ele mesmo, o mais irresponsável dos governantes que o Brasil já teve. Na última quinta-feira, na live em que mente sistematicamente, Bolsonaro disse que quem pegou o vírus está mais imunizado do que quem tomou a vacina. Essa é mais uma mentira mortal. As mentiras do presidente matam.

Não foi Bolsonaro que inventou a pandemia, mas é ele que tem se esforçado diariamente pela disseminação do vírus. Bolsonaro pôs todos os seus mesquinhos interesses à frente da vida. Sabotou os esforços dos que tentam proteger os brasileiros, atacou governadores, alimentou a cizânia, espalhou mentiras, estimulou aglomerações, ignorou fornecedores de vacinas, exibiu desprezo pelos que sofrem e correu atrás de tudo o que não funciona, da cloroquina ao spray nasal.

Governantes podem errar. Isso sempre aconteceu na história dos países. Mas Bolsonaro conseguiu errar o tempo todo. Diariamente ele toma decisões ou faz declarações que colocam o país mais vulnerável ao vírus. Descrever a lista desses erros aqui seria exaustivo e ocioso. O país vê o presidente manipulando números de óbitos, estimulando a atitude errada, brigando de forma vil com todos os que sinceramente se empenham em proteger a vida.

O país chega exaurido ao espantoso número de quinhentos mil mortos. Tem que dividir seus esforços em duas frentes de luta, contra o inimigo invisível e implacável, e contra o governante que nos empurra em direção ao abismo. A Comissão Parlamentar de Inquérito põe diante de nós, a cada sessão, novos fatos, novas omissões, novas provas da incúria, da incompetência e do desprezo pela vida. Ficou claro, irretorquível, que o projeto de Bolsonaro sempre foi disseminar o vírus o mais rapidamente possível. Ele segue ainda hoje no delírio de que a contaminação geral da República é a melhor estratégia. O custo em vidas humanas não o interessa. Ele não quer proteger o país, quer que o assunto não atrapalhe a sua demagógica campanha eleitoral para 2022. Só nisso pensa o presidente.

Ele demitiu ministros que tentaram acertar, colocou outros na coleira, impôs que a máquina pública trabalhasse por remédios que são ineficazes e desprezou inúmeras chances de ter a vacina na primeira hora. Isso custou milhares de vidas. O único imunizante pelo qual o governo se empenhou era vendido por um intermediário sobre o qual pairam suspeitas. Houve também, como a CPI mostra, desperdício de recursos públicos e desvios.

Bolsonaro passeia de moto sobre a dor do país nessa sua campanha eleitoral fora de época e de lugar, e que está sendo paga com o nosso dinheiro. São recursos públicos que custeiam seus deslocamentos e dos seus ministros para os comícios em que, desmascarado, ele mente e nos expõe ainda mais ao risco. Sai do nosso bolso o dinheiro que paga disseminadores de mentiras que ele instalou no Planalto sob o comando do vereador, seu filho. É nosso o imposto que financia a montagem dos palanques, que paga a comitiva de assessores e áulicos, os policiais da segurança, e os falsificadores de informação que o seguem em cada deslocamento.

A democracia brasileira está sem instrumentos para lidar com pessoa tão maléfica no governo. Está acossada pelo presidente e seus blefes, como o de que haverá uma “convulsão social” se o voto não for impresso. Como é possível tolerar que o presidente ameace o país com uma convulsão social e no meio de uma pandemia que matou 500 mil brasileiros?

Não há mais palavras para descrever os fatos desses devastadores meses em que o país atravessa uma tragédia inédita em nossa história sob o comando do pior dos presidentes. O tempo talvez console os enlutados, cure os feridos, e nos permita entender a devastação que temos vivido. O tempo presente, contudo, ainda é de luta pela vida.

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