domingo, 20 de junho de 2021

Merval Pereira - O recado dos mortos

O Globo

Quantos milhares de mortos mais teremos que enterrar antes que nos convençamos de que um governo que, por incúria ou projeto, deixou morrer mais de 500 mil pessoas, não pode continuar tendo o comando do país em meio a essa verdadeira guerra que estamos perdendo por falta de comando? Em pouco mais de um ano, o Brasil perdeu para a COVID-19 o equivalente ao número de vidas que perde para violência a cada dez anos, um dos nossos maiores problemas sociais.

Somos também o segundo país, atrás só do Peru, com maior número de mortes por milhão entre os com população acima de dez milhões de habitantes, o que tira da classificação distorções por questão de escala. Mas corremos o risco de passar o número de mortos dos Estados Unidos, que tem uma população maior.

Um gráfico com base nos dados do Our World in Data mostra que a vacinação começou em 15 de dezembro de 2020 em países como Israel, Canadá, Rússia e China. O Brasil só começou a vacinar quando Estados Unidos e China já tinham vacinado cerca de 30 milhões de doses cada um, Reino Unido já alcançava 10 milhões  e Israel e Índia chegavam a cerca de 5 milhões de doses.


O Brasil aparece no dia 1º de fevereiro com cerca de 2 milhões de doses, logo abaixo de Rússia e Alemanha. No dia 14 de junho, o Brasil já surge nas estatísticas em quarto lugar, com perto de 79 milhões de doses, atrás apenas de Índia, Estados Unidos e China. Mas esse número representa apenas cerca de 11% da população vacinada, menos que o Reino Unidos (45%), Estados Unidos (45%), Chile (48%) e República Dominicana (20%).

A CPI da Covid-19, apesar de excessos em alguns momentos e de uma certa desorganização nos interrogatórios, está conseguindo montar um quebra-cabeças que revela um quadro aterrador. Todos os 14 nomes incluídos na lista de investigados da CPI da COVID recentemente, depois de depoimentos pífios, mentiram muito, esconderam deliberadamente ações internas do ministério da Saúde, como o “gabinete paralelo”, as decisões para forçar a imunidade de rebanho e de atrasar a compra das vacinas, a insistência no tratamento precoce com cloroquina e outros medicamentos, mesmo depois que a polêmica sobre suas validades no combate à pandemia foi encerrada por declaração oficial da Organização Mundial da Saúde.

Mas, para os bolsonaristas, todos os organismos internacionais são dominados por comunistas, e a  orientação da OMS não tem valor, pois a soberania do país deve prevalecer sobre as regras gerais. A política de governo, contra o distanciamento social, contra o uso de máscara, contra a vacinação em massa, matou mais do que o número de mortes inevitáveis pela pandemia.

Enquanto o presidente Bolsonaro, irresponsavelmente, chancela um estudo paralelo desqualificado em termos científicos que apontava para uma superestimação do número de mortes, estudos acadêmicos apontam em outra direção. Haveria, na realidade, uma subnotificação de mortes, que pode chegar a 20%. Esse é um caso exemplar de improbidade administrativa.  Essas decisões conjuntas representam um erro de avaliação, ou uma política criminosa ?

É uma definição que a CPI pode ajudar a dar. Se um governo tem projeto de combate a uma pandemia que vai contra todas as recomendações dos órgãos oficiais, desde a OMS até organizações cientificas internas e externas, não é um simples erro. É um projeto político, uma atitude criminosa. As autoridades tinham todas as informações e sabiam o que poderia acontecer.

Pode-se dizer que não é um crime doloso, com a intenção de matar, mas pode ser enquadrado como dolo eventual, que é aquele em que o autor conhece o risco, e mesmo assim age temerariamente. Ou, no mínimo, crime culposo. Que houve crime, já não há dúvida.

O caminho para a abertura do processo de impeachment é amplo, as mais de 500 mil mortes exigem ações urgentes, e as ruas estão advertindo o presidente da Câmara, Arthur Lira, de que não há mais tempo a ganhar à espera de uma melhora econômica, que não recuperará nossos mortos.

 

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