O Estado de S. Paulo
Para Bolsonaro, pobres devem viajar de
jegue, mas votam. Para Guedes, são só estorvo
A nova postura da CPI da Covid,
mais estratégica, concreta e dura, coincide com a marca de 500 mil mortos e o recorde de
mais de 98 mil infectados em 24 horas na sexta-feira passada, o que projeta
tempos ainda mais difíceis nesta e nas próximas semanas.
A CPI come pelas bordas, mirando no Ministério da Saúde e no gabinete das trevas, mas o alvo
está no centro desse mingau: o presidente Jair
Bolsonaro.
Se convocar o ex-governador deposto Wilson Witzel e
dois médicos pró-cloroquina foi um erro, dando palanque para a defesa do
indefensável nos dois casos, a CPI acertou ao endurecer o jogo e dar
consequência às provas já colhidas em depoimentos e documentos. A cúpula da
comissão decretou condução coercitiva e apreensão do passaporte do
empresário Carlos Wizard, retirou-se do depoimento pró-cloroquina e
transformou 14 testemunhas em investigados.
A lista dos alvos dá boas pistas sobre a estratégia. Ali estão o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, os ex-ministros Eduardo Pazuello (Saúde) e Ernesto Araújo (Relações Exteriores), o ex-secretário Fábio Wajngarten e o ex-assessor Arthur Weintraub. Afora Queiroga, que tenta se equilibrar entre o seu discurso e o do presidente, os demais são pivôs de dois dos grandes erros do governo: descaso pela vacina e obsessão pela cloroquina.
Sem cargos no governo, nem antes nem agora,
também viraram investigados os médicos Nise
Yamaguchi e Paolo Zanoto e o empresário Carlos Wizard, que foge
da CPI feito diabo da cruz, sabe-se lá por quê. Eles são a chave para desvendar
de vez o tal gabinete das trevas do Planalto, suspeito de asfixiar o Ministério
da Saúde para viabilizar a política anticientífica e absurda do presidente.
A quarta frente das investigações, aliás,
diz respeito à asfixia, neste caso real, das vítimas de covid em Manaus.
Além da incúria, do despreparo, do empurra-empurra, a CPI trabalha com a
possibilidade de o governo ter, deliberadamente, usado os cidadãos da capital
do Amazonas para experimentos com cloroquina que contrariam
a OMS e as principais agências de saúde do mundo
civilizado.
Começa a emergir também a velha linha de
polícias e CPIs: seguir o dinheiro. Afinal, a propaganda da cloroquina e a
obsessão do governo pelo “Kit Covid” foram só por ideologia, crença, achismo,
ou teve interesse financeiro nisso? A mesma pergunta vale para as vacinas. Por
que desdenhar de umas e depois aderir rapidinho a outras?
No seu mundo paralelo, Bolsonaro segue em
campanha como se nada estivesse acontecendo, desrespeitando a vida, a ciência,
a lei, até a lógica. Desmerecer vacina e enaltecer imunidade de rebanho, a esta
altura, é a política do “deixa morrer”. E atacar as máscaras? Agredir
adversários por “voz fina” e “calça apertadinha”? Sobre o meio milhão de
mortos, nada.
Até aqui, havia atos golpistas e
motociatas, mas as manifestações pela vida, vacina e “Fora, Bolsonaro” abrem um
novo capítulo e mexem com o real interesse do presidente: a reeleição. Por
isso, ele trata a economia como trata a ciência e pisoteia o ministro Paulo Guedes.
Quanto mais a CPI avança, mais o populismo borbulha: aumento do funcionalismo
em meio ao desemprego desesperador e benesses para atrair o eleitor do
ex-presidente Lula. Algumas são defensáveis, a questão é a intenção e como
fechar a conta.
Se Bolsonaro insiste no “deixa morrer” na pandemia, ele e Guedes têm sensibilidade diferente para os pobres. Para o presidente, eles devem “viajar de jegue”, mas têm voto. Para o ministro, são só estorvo. Empregada de avião para Miami? Filho de porteiro em universidade? E que tal raspar as sobras de comida do prato e dar para famílias miseráveis? A Terra não é plana, mas o Brasil parece terra arrasada.
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