O Estado de S. Paulo
No dia em que o Brasil ultrapassou o meio
milhão de mortes pela Covid-19, mais uma vez suas ruas foram intensamente
ocupadas pela política. Num momento especialmente delicado, milhares se
aglomeraram e manifestaram críticas. Desta vez, foram pessoas em oposição ao
governo. Houve cautela no uso de máscaras, mas não se conteve a indignação.
Antes de manifestação de oposição, foi tentativa de expressar o profundo luto –
cívico e pessoal — e sua dor. Mas também modo de reagir às afrontas do
presidente da República.
Paradoxalmente, é o próprio Jair Bolsonaro
quem desperta as ruas. Com seu negacionismo e estilo desagregador, estimula a
divisão e o inevitável protesto.
No dia anterior, havia subido, mais uma vez, ao palanque. Está em campanha: com transmissão da TV Brasil, exibiu camiseta com alusão à eleição de 2022. Na quinta-feira, denunciou as urnas que o elegeram, em 2018, modo de antecipadamente contestar as do próximo ano. Uma semana antes, promoveu outro passeio eleitoral, em São Paulo. Contesta a vacina e age como se não houvesse pandemia e meio milhão de vidas não tivessem se perdido. Comporta-se indiferente aos rigores do cargo.
São óbvios gestos de quem procura instigar
reações e torce por conflitos ainda mais profundos. Como o filho nas fileiras
da CPI, age como provocador que torce por uma explosão de fúria, à espera de
pancadaria que justifique o endurecimento político. Ativando, assim, mecanismos
de repressão que alardeia e indica controlar. Canta “me dê motivos”?
Os protestos não caíram, porém, na
armadilha. Pacíficos, foram críticos, simbólicos e contundentes, sendo mais
expressivos que os anteriores. Denotam que há sociedade ativa e descontente;
mas consciente do perigo do vírus e das ciladas políticas. O maior desafio das
manifestações – que certamente continuarão – será não se perderem como
instrumentos eleitorais de partidos e candidatos. Manterem-se tão abertas
quanto amplas precisam ser as articulações para tirar o país de sua maior
crise.
*Carlos Melo, cientista político. Professor
do Insper.
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