O Globo
Lee Bollinger é o mais longevo presidente
da centenária Universidade Columbia, em Nova York, fundada muito antes de os
Estados Unidos terem um 4 de Julho para comemorar a Independência. Ocupante do
cargo há duas décadas, Bollinger, que não é de falar abobrinha, define assim a
função da instituição: “Uma universidade não consegue sobreviver numa sociedade
que não leva a sério os elementos básicos da vida cívica — o respeito à
verdade, o respeito à razão como meio de busca da verdade e o compromisso com o
princípio fundamental da igualdade humana”. Se substituirmos “universidade” por
“país” ou “imprensa independente”, a frase também vale.
Steve Bannon, o trevoso conselheiro do
ex-presidente Donald Trump e inspiração para a extrema-direita mundial, baseou
sua estratégia na identificação do inimigo a bater — não a oposição democrata,
que Bannon desdenhava e considerava peso leve. “A verdadeira oposição é a
mídia. E a melhor forma de lidar com ela é inundá-la de merda”, sustentava o
guru, em citação tirada do livro “Hoax” (embuste), do jornalista Brian Stelter.
Nos Estados Unidos de Trump, a tática deu certo até a 25ª hora de seus quatro anos na Casa Branca. Cada nova afirmação deliberadamente falsa do presidente obrigava a mídia a correr atrás, apontar a desinformação, retificá-la às pressas, fazer do jornalismo um cansativo exercício de fact-checking que, por sua vez, adquiria vida própria, também manipulável. Fatos e decência se tornaram divisores ideológicos, partidários, destruíram ou deixaram destruir a confiança nas Cortes e na ciência, nas eleições e nas instituições. Até hoje, passados sete meses desde o pleito de 2020, 75% dos eleitores republicanos acreditam na versão trumpista de fraude eleitoral.
O aprendiz Trump fez escola ao usar e
abusar da mídia. E esta demorou a reagir, movida em parte por um convencional
respeito e deferência ao chefe da nação democraticamente eleito. Acordou tarde
e raivosa por ter se deixado insultar — tinha virado alvo de escárnio oficial e
agressões de apoiadores trumpistas. Foi somente em novembro de 2020 que grandes
emissoras de TV dos EUA (com exceção da Fox) ousaram interromper a transmissão
de um discurso em que Trump lançava acusações infundadas contra o processo
eleitoral. Decidiram, assim, não mais transmitir informações falsas capazes de
colocar em risco as instituições do país. Só mais recentemente, e pelo mesmo
motivo, Twitter e Facebook cancelaram a conta do hoje cidadão, mas sempre
conspirador, Donald Trump.
No Brasil de Bolsonaro, o início não foi
diferente. Basta lembrar o humilhante papel a que repórteres foram expostos
diariamente no “cercadinho” do Palácio da Alvorada, por ordem de seus chefes.
Recebiam insultos a rodo do presidente e aguentavam a chacota de bolsonaristas
participantes. Tudo com transmissão ao vivo e retransmissões infinitas à guisa
de jornalismo testemunhal. Não era jornalismo. Foi um erro de avaliação das
chefias quanto à eficácia manipuladora do capitão. Só não foi fatal porque a
imprensa se recalibrou. Graças ao jornalismo investigativo, seja de grandes
jornais, TVs, mídias ou redes independentes, a terraplenagem de fatos e a
disseminação de mentiras do governo encontram barreiras, conseguem ser
esmiuçadas, apuradas e contraditas.
Ainda assim, não há imprensa livre, em país
algum do mundo, capaz de impedir que um presidente eleito faça um convite
público de risco à vida. Em sua live semanal das quintas-feiras, Bolsonaro
dirigiu-se a esta nação-cemitério de mais de 500 mil mortos por Covid-19 nos
seguintes termos: “Todos que contraíram o vírus estão vacinados, até de forma
mais eficaz que a própria vacina, porque você pegou o vírus pra valer. Quem
pegou o vírus está imunizado, não se discute”.
Discute-se, sim, em qualquer nação
democrática, o comportamento criminoso de um presidente, e não apenas pela
imprensa. É das instituições nacionais e da sociedade, das ruas e da vontade de
existir que precisa brotar o basta à insânia presidencial. Como diz o
vice-presidente da CPI da Covid, senador Randolfe Rodrigues, “isto tem que
acabar”.
Para tanto, convém não contar com a
neutralidade das Forças Armadas. Ainda nesta semana, mais um oficial da ativa
achou oportuno dar pitaco público. Em entrevista a Rafael Moraes Moura, na
revista Veja, o general Luis Carlos Gomes Mattos, presidente do Superior
Tribunal Militar, não apenas defendeu o presidente: “É um democrata. Tomou
todas as providências cabíveis [contra a pandemia]”. Também afirmou que a
oposição ao governo “está esticando demais a corda”. E argumentou, entre outros
disparates, que “o povo brasileiro tem de saber votar”.
Pitaco por pitaco, melhor ouvir Mark Twain: “Seres humanos são o tipo de espécie que nasceu sem saber evitar sua extinção”. Temos, em solo brasileiro, vários desses espécimes.
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