Valor Econômico
Supremo deu garantia a Estados e municípios
para a adoção de medidas em confronto com o negacionismo, mas TJs os liberam da
obrigação de cumprir decisões em defesa da segurança sanitária
Com o julgamento de ação direta de
inconstitucionalidade em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal deu garantia
a que prefeitos e governadores pudessem adotar medidas de segurança sanitária
em confronto com o negacionismo do presidente Jair Bolsonaro. A decisão do
Supremo, porém, também fundamentou demandas de que muitos direitos de proteção
à saúde fossem garantidos pelos governos locais. Foi aí que entraram os
Tribunais de Justiça para permitir que Estados e municípios driblassem a
cobrança pela efetivação de políticas públicas que o STF lhes havia garantido a
liberdade de implementar.
É esta a principal conclusão do
levantamento do Justa, organização não governamental voltada para a
democratização da gestão pública da Justiça. Ao longo do primeiro ano da
pandemia, sua equipe levantou, nos Tribunais de Justiça de cinco Estados (São
Paulo, Paraná, Bahia, Ceará e Tocantins), o julgamento da suspensão de
segurança, instrumento com o qual os governantes pedem para não cumprir
decisões judiciais. Depois de surgir no ordenamento jurídico brasileiro na
década de 1930, em defesa da ordem, da saúde e da segurança, incorporou, depois
do golpe de 1964, a proteção da “economia pública”. Ao longo da pandemia, revelou-se
como um instrumento a serviço de interesses governamentais em detrimento dos
direitos dos cidadãos e da coletividade, concluiu o estudo coordenado por
Luciana Zaffalon. “O Judiciário mostra-se como parte da solução, mas nos
Estados são parte do problema”.
O Justa enviou pedidos de acesso à informação aos cinco Tribunais de Justiça para obter os números dos processos de suspensão de segurança julgados ao longo de 2020 e selecionou aqueles relacionados à pandemia. De todos os tribunais, o da Bahia foi o único a não prestar informações. Entre aqueles que o fizeram, o grau de transparência variou dos 5,2% dos processos que, em São Paulo, permanecem em segredo de Justiça até os 78% no Paraná. Em todos, os governos estaduais e municipais ganharam de lavada dos impetrantes que buscaram assegurar medidas de segurança sanitária.
Em São Paulo, por exemplo, o Justa
identificou 37 pedidos de suspensão relacionados à covid ao longo de 2020.
Desses, 21 foram egressos do governo estadual. Todos foram atendidos pela presidência
do TJ. Entre essas medidas, consta, por exemplo, o reembolso de valores gastos
por enfermeiros que, na ausência de fornecimento pelo Estado, compraram
equipamentos de proteção individual.
A merenda escolar foi outro direito cujo
atendimento foi afetado pela suspensão de segurança. As aulas nas escolas
públicas foram paralisadas em 23 de março de 2020. Em abril, uma ação da
Defensoria e do Ministério Público de São Paulo havia obtido liminar favorável
a que governo e a Prefeitura de São Paulo garantissem merenda a todos os
estudantes da educação básica. Ao longo da pandemia apenas famílias em situação
de extrema pobreza e cadastradas no Bolsa Família ficaram elegíveis para
receber R$ 55 por dependente matriculado em escola pública.
A ação se baseava na manutenção dos
repasses do Plano Nacional de Alimentação Escolar, cujos valores levam em
consideração um cálculo por estudante e não apenas aqueles em situação de
vulnerabilidade. A liminar, porém, acabaria derrubada em 14 de abril de 2020. O
governo e a prefeitura só voltariam a fornecer merenda em fevereiro de 2021,
dois meses antes do retorno das aulas presenciais.
No dia seguinte à suspensão de segurança da
merenda, o governo de São Paulo ganhou mais uma. O TJ garantiu o não
cumprimento da decisão judicial que determinava ao Estado apresentação, em 72
horas, do cronograma de implementação do abastecimento de água potável para
todas as comunidades e municípios atendidos pela Sabesp. A ação foi movida
pelos cuidados redobrados de higiene recomendados pela saúde pública, mas o TJ
entendeu que não era o caso. Argumentou que não cabia ao Poder Judiciário
interferir nos critérios de conveniência e oportunidade das medidas adotadas no
enfrentamento da epidemia. Virou pelo avesso o princípio da autonomia garantido
pelo Supremo às unidades da Federação.
A relação de afinidade dos governos
estaduais com os Tribunais de Justiça independe de cor partidária. No Ceará, o
governador Camilo Santana, do PT, e o ex-prefeito Roberto Claudio, do PDT,
também obtiveram, a exemplo do governador tucano de São Paulo, João Doria, 100%
de sucesso em seus pedidos de suspensão de segurança de decisões judiciais
relacionadas à covid.
Em 13 de abril do ano passado, por exemplo,
um juiz de primeiro grau determinou que o governo do Ceará e a Prefeitura de
Fortaleza comprovassem o fornecimento regular de equipamentos de proteção
individual a enfermeiros da rede pública. A ação havia sido ajuizada pelo
Conselho Regional de Enfermagem e acabou suspensa pela presidência do TJ-CE.
Uma semana antes, a desembargadora já havia paralisado a decisão que
determinava o fornecimento, pela Prefeitura de Fortaleza, de equipamentos de
proteção individual a agentes comunitários de saúde em contato direto com a
população.
A presidente do TJ acolheu tanto demandas
de origem sindical quanto empresarial. Arbitrou até as pilhas de cadáveres.
Como houve congestionamento nos sepultamentos, o Sindicato das Empresas
Funerárias do Estado conseguiu uma decisão que mandava para o Instituto Médico
Legal os corpos que não fosse possível enterrar no prazo previsto. O governo do
Ceará derrubou a determinação.
Naquele Estado, apenas seis casos de
suspensão de segurança, ao longo de 2020, trataram de covid, 20% daqueles
registrados no Paraná. Dos 29 casos que obtiveram a graça do TJ, 17 tiveram
como origem pedidos do governo do Estado, comandado por Ratinho Jr., filiado ao
PSD e aliado do presidente Jair Bolsonaro. O governador teve sucesso em 16
deles. Já aqueles casos encampados pelo prefeito de Curitiba, Rafael Greca (DEM),
foram integralmente acatados pelo TJ-PR.
O município de Curitiba conseguiu suspender
três decisões judiciais emblemáticas: a que proibia o recolhimento, por agentes
públicos, de bens de pessoas em situação de rua, a que determinava o
afastamento de servidores da Guarda Civil Metropolitana com mais de 60 anos,
pela vulnerabilidade à pandemia, e a que determinava o pagamento de aluguel
social para pessoas sem moradia e com comorbidade no valor de um salário mínimo
por mês.
Em dois casos relativos à abertura do
comércio, movidos por prefeituras do interior, o Tribunal de Justiça do Paraná
tomou decisões conflitantes, a exemplo do que já havia acontecido no TJ-SP em
relação a municípios do interior do Estado. Em Cândido Rondon, o prefeito
editou decreto para reabrir o comércio no início de abril, pico da pandemia em
2020. A primeira instância reverteu o decreto e a suspensão de segurança
manteve a decisão sob o argumento de que a gravidade da situação estava
atestada pela calamidade pública no país. Já em Cambará aconteceu o inverso. O
decreto municipal de abertura foi mantido com o argumento de que o fechamento,
além de lesivo à economia, não contraria normas federal e estadual.
As ações de suspensão obtidas pelo governo
do Estado se concentraram em tributos e segurança. O TJ-PR concedeu sete
pedidos para suspender pedidos de diferimento de impostos, sob o argumento do
impacto sobre os cofres estaduais, além de sete pedidos para suspender decisões
que determinavam indicação de agentes penitenciários para a chefia de cadeias
nas delegacias estaduais, como requerido pelos delegados de polícia.
No Tocantins, todos os dez pedidos de
suspensão dos casos relativos à covid em 2020 foram concedidos pelo Tribunal de
Justiça. A maior parte deles trata de recursos do governo do Estado contra
empresas que se valeram da pandemia para contestar a cobrança de ICMS. O
Tribunal de Justiça deu ganho de causa ao governador Mauro Carlesse (DEM) sob o
argumento de que a crise do Estado seria agravada pelo indeferimento do ICMS.
A situação fiscal do poder público
fundamentou decisão do TJ-TO tanto contra empresas quanto contra usuários do
transporte municipal. O ex-prefeito de Palmas Carlos Amastha (PSB) conseguiu
que o TJ suspendesse a decisão judicial que determinara o aumento da frota de
ônibus em circulação na cidade, especialmente nos horários de pico, e o
fornecimento de álcool gel aos usuários.
Dos cinco Estados pesquisados, o único a
não responder aos pedidos de acesso à informação do Justa foi a Bahia, em
descumprimento às resoluções do Conselho Nacional de Justiça e à Lei de Acesso
à Informação. Sem o mesmo rigor metodológico dos demais Estados, os
pesquisadores identificaram que o TJ-BA, a exemplo dos demais pesquisados,
também concedeu suspensões de segurança em prejuízo da segurança sanitária.
Dois se destacam: o da interdição parcial
do Conjunto Penal de Juazeiro, que havia sido concedida por oferecer riscos aos
apenados, e o da proibição da companhia de abastecimento de água do Estado,
Embasa, de cortar o fornecimento de água a inadimplentes.
Nos Estados em que foi possível fazer uma varredura completa dos casos, o Justa observou o completo alinhamento dos presidentes dos TJs aos chefes dos Executivos estaduais. Esse processo tem como pano de fundo uma suplementação orçamentária que não passa pela Assembleia Legislativa. Todos os Estados têm permissão para suplementar o Orçamento do Judiciário. Em São Paulo, segundo Luciana Zaffalon, entre 2013 e 2018, essa suplementação foi, em média, de R$ 912 milhões por ano. Em 2019, último orçamento não contaminado pela pandemia, a suplementação chegou a R$ 1,17 bilhão, sem qualquer controle público da distribuição de recursos. Naquele ano, a folha de pagamento do Judiciário paulista, principal destino da suplementação, foi 37% maior do que a da Saúde. Uma mão lava a outra. Entre os Poderes, é claro, porque nem todos os impetrantes tiveram garantia de fornecimento de água na pandemia.
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