- O Globo
O quiproquó armado pela base bolsonarista
no depoimento de Luiz Paulo Dominguetti à CPI da Covid nesta quinta-feira foi
mais um tiro que saiu pela culatra. Se o objetivo era confundir, jogar uma
cortina de fumaça sobre as graves evidências do caso Covaxin e nivelar tudo
como tentativas infrutíferas e desvinculadas de Jair Bolsonaro de negociatas
com vacinas, ele passou longe de ser atingido.
Como escrevi aqui, CPIs não são movidas a depoimentos de santos imaculados. Dominguetti é daqueles personagens do submundo que só vêm a tona se alguém lhes abre a porta. E o fato é que, na traficância que tentou fazer de uma vacina que certamente não tinha para vender, ele conseguiu acesso a vários funcionários do Ministério da Saúde de Bolsonaro, um deles o número dois da pasta e militar do Exército, coronel Élcio Franco — que, por sinal, agora tem uma cadeira no Palácio do Planalto, bem próximo ao presidente.
Mais: o funcionário a quem Dominguetti acusa de lhe pedir propina para viabilizar o negócio de vacina, Roberto Ferreira Dias, não era um zé ninguém. Basta ver que teve seu pedido de demissão negado pelo próprio Planalto, num claro sinal de que tinha pistolão forte, com o qual Bolsonaro não queria briga. Outra prova disso é o fato de que, até o surgimento de Dominguetti, Ferreira Dias continuava empregado e era indicado para nada menos que uma diretoria da Anvisa.
Não será possível, ainda mais quando o
celular do mercador de vacina na Lua for periciado, defenestrar Ferreira Dias e
achar que ninguém mais será implicado. No início da semana, a tentativa era de
desvincular o ex-diretor de Logística do líder do governo na Câmara, o cada vez
mais enrolado Ricardo Barros (PP-PR). Ele seria uma espécie de herança maldita
da gestão Luiz Henrique Mandetta. Faltou apenas explicar por que, mais de um
ano após a demissão de Mandetta, ele trabalhava coladinho a Elcio Franco,
franqueava acesso de picaretas notórios, como esse Dominghetti, ao seu chefe e
levava até ex-funcionários da pasta, como o coronel Blanco, a encontros com
essas pessoas fora do ministério.
São de menor importância diante do quadro
as motivações de Dominghetti para falar. A teoria segundo a qual ele foi
“plantado” pelo governo não resiste ao fato de que foi a repórter Constança
Rezende, da "Folha de S.Paulo", que chegou a ele por meio de uma
investigação jornalística, nem exime o governo do que há de mais grave nessa
história: a transformação, sob Bolsonaro e Pazuello, do Ministério da Saúde num
balcão de negócios de vacina no momento mais sangrento da pandemia.
A conclusão dessa ópera bufa de coronéis
enlameados e mercadores de vacinas de vento é que um governo até então desinteressado
em vacinas fornecidas diretamente de farmacêuticas internacionais, com eficácia
comprovada e uso aprovado pelas agências sanitárias de outros países instalou
um feirão de vacinas oferecidas por atravessadores, a preços bem maiores, se
preciso driblando a Anvisa e mexendo na lei para abrir o lucrativo filão da
aquisição de imunizantes por empresas, com a possibilidade também de sua
aplicação na rede privada (projeto patrocinado por Barros e o Centrão e que só
não prosperou porque o Senado sentou em cima).
É o link entre os mesmos personagens e o
modus operandi sem nenhuma transparência que une esse caso, uma tentativa
frustrada de traficância, ao Covaxin, uma traficância consumada efetivamente, e
cujas irregularidades foram pessoalmente denunciadas a Bolsonaro sem que ele
absolutamente nada fizesse.
Nem a picaretagem explícita de Dominguetti e da empresa que ele dizia representar nem o eventual envolvimento do deputado Luis Miranda com esse submundo eximem o presidente da grave suspeita de prevaricação nesse episódio, nem apagam o fato de que foi feito um empenho de recursos públicos de R$ 1,6 bilhão em vacinas nunca aprovadas pela Anvisa e que nunca chegaram ao Brasil.
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