Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Brasil opta pelo retrocesso a um modelo
capitalista subdesenvolvido que lucra com base em práticas arcaicas e
destrutivas comprometedoras da sobrevivência das populações originárias
A descabida repressão às manifestações de
indígenas, em Brasília, com o uso de bombas de gás lacrimogêneo, é uma
evidência preocupante de uma tendência oficial no sentido de transformar o
índio brasileiro em cara-pálida.
Os indígenas, com razão, estão preocupados
com as consequências destrutivas que advirão para suas tribos e nações se o
projeto for aprovado. O projeto circunscreve ainda mais o direito dos povos
indígenas aos seus territórios nas condições de um direito restritivo e
antissocial. Os índios são tratados como se brancos fossem e sua relação com a
terra e a natureza seguisse normas e concepções opostas às de suas tradições
culturais e de seus costumes.
O projeto estipula uma urgência de branco para
que os índios se enquadrem, para que se branqueiem culturalmente no uso da
terra. Uma sem fundamentação antropológica, porque desconhece os valores e
costumes bem como os saberes etnoagronômico e etnobotânico de suas tradições.
A repressão destes dias completou com a recusa de serem recebidos pelo presidente da Funai. Já o presidente da República, argumentou o advogado dos índios, também indígena, recebe garimpeiros e outros invasores e agentes de devastação de territórios indígenas, que apoia, diretamente ou através de gente como o ministro do Meio Ambiente que acaba de cair. Mas não recebe os índios, legítimos e históricos titulares das áreas invadidas e ameaçadas.
Foram atendidos na porta pelo diretor da
Diretoria de Proteção Territorial dos Povos Originários do Brasil e cobraram
dele a demarcação das terras indígenas. A Constituição de 1988 definiu um prazo
de cinco anos para que isso acontecesse - e não aconteceu. Um segundo tema foi
o das invasões e ameaças dos garimpeiros nos territórios indígenas.
Em face desse cenário, cerca de cem
representantes do agronegócio dirigiram-se ao presidente da Câmara
sugerindo-lhe que interrompa a tramitação de três projetos que terão
consequências destrutivas para o meio ambiente e para as populações
originárias. Chamaram sua atenção para o fato de que os países capitalistas
desenvolvidos estão adotando novas práticas nas relações comerciais, submetidas
ao primado da questão social e da questão ambiental.
Ao mesmo tempo, a China, decisivo mercado
dos produtos agrícolas e pecuários brasileiros, está em entendimentos
comerciais com os EUA, país que, em relação a esses produtos, é nosso
concorrente.
Em outras palavras, o capitalismo está num
momento de crise e transição, e o Brasil opta pelo retrocesso a um modelo capitalista
subdesenvolvido e incivilizado. Um subcapitalismo rentista que lucra e muito
com base em práticas arcaicas, destrutivas e antissociais, que compromete a
sobrevivência não só das populações originárias mas também das populações
rurais colocadas à margem de um crescimento econômico sem desenvolvimento
econômico e social.
Nas reportagens sobre as manifestações
indígenas e a repressão que sofreram, a TV mostrou uma partidária do governo e
do projeto em trâmite na Câmara que vociferava justificativas em favor de sua
aprovação. Defendia o “direito” do índio se tornar um empreendedor moderno e
até de se tornar um seguidor do neoliberalismo econômico!
Isso até pode acontecer. Mas depende de um
processo de ressocialização lento que vai em direção oposta a essa, porque
tribal. Já aconteceu no Brasil com vários grupos indígenas. Um deles, o dos
parkatejê, do Pará. Que utilizaram a mediação e o apoio da antropóloga que
fazia pesquisa sobre sua tribo. Na prática, eles inverteram os papéis e
passaram a estudá-la para decifrar as irracionalidades dos brancos,
responsáveis pela crise de sua organização tribal, pelas doenças e por sua
miséria.
Na economia cara-pálida não há lugar para
os valores e o capital social das populações indígenas. Os índios descobriram
como funciona a cabeça do branco, reorganizaram-se como produtores comerciais
de castanhas e com os recursos que conseguiram revitalizaram adaptativamente a
sociedade tribal. Tornaram-se mais índios do que a ignorância branca queria
deles fazer.
São aí evidentes as opções do presidente da
República quanto à sua opção de senso comum por um indígena cara-pálida. Como
ocorreu em sua ida à ONU para o discurso inaugural. Levou consigo uma moça de
origem indígena, moradora na periferia de São Paulo, como uma testemunha do
índio de sua referência. Uma indígena que destribalizada e desvinculada de seu
grupo de referência não tinha outra alternativa, para sobreviver, senão aderir
aos valores da sociedade branca.
O projeto cara-pálida do governo e dos seus
coadjuvantes no Congresso Nacional é um projeto da economia do saque e da
rapina das terras e da alma indígenas.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).
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