sexta-feira, 2 de julho de 2021

José de Souza Martins* - A economia cara-pálida

Valor Econômico / Eu & Fim de Semana

Brasil opta pelo retrocesso a um modelo capitalista subdesenvolvido que lucra com base em práticas arcaicas e destrutivas comprometedoras da sobrevivência das populações originárias

A descabida repressão às manifestações de indígenas, em Brasília, com o uso de bombas de gás lacrimogêneo, é uma evidência preocupante de uma tendência oficial no sentido de transformar o índio brasileiro em cara-pálida.

Os indígenas, com razão, estão preocupados com as consequências destrutivas que advirão para suas tribos e nações se o projeto for aprovado. O projeto circunscreve ainda mais o direito dos povos indígenas aos seus territórios nas condições de um direito restritivo e antissocial. Os índios são tratados como se brancos fossem e sua relação com a terra e a natureza seguisse normas e concepções opostas às de suas tradições culturais e de seus costumes.

O projeto estipula uma urgência de branco para que os índios se enquadrem, para que se branqueiem culturalmente no uso da terra. Uma sem fundamentação antropológica, porque desconhece os valores e costumes bem como os saberes etnoagronômico e etnobotânico de suas tradições.

A repressão destes dias completou com a recusa de serem recebidos pelo presidente da Funai. Já o presidente da República, argumentou o advogado dos índios, também indígena, recebe garimpeiros e outros invasores e agentes de devastação de territórios indígenas, que apoia, diretamente ou através de gente como o ministro do Meio Ambiente que acaba de cair. Mas não recebe os índios, legítimos e históricos titulares das áreas invadidas e ameaçadas.

Foram atendidos na porta pelo diretor da Diretoria de Proteção Territorial dos Povos Originários do Brasil e cobraram dele a demarcação das terras indígenas. A Constituição de 1988 definiu um prazo de cinco anos para que isso acontecesse - e não aconteceu. Um segundo tema foi o das invasões e ameaças dos garimpeiros nos territórios indígenas.

Em face desse cenário, cerca de cem representantes do agronegócio dirigiram-se ao presidente da Câmara sugerindo-lhe que interrompa a tramitação de três projetos que terão consequências destrutivas para o meio ambiente e para as populações originárias. Chamaram sua atenção para o fato de que os países capitalistas desenvolvidos estão adotando novas práticas nas relações comerciais, submetidas ao primado da questão social e da questão ambiental.

Ao mesmo tempo, a China, decisivo mercado dos produtos agrícolas e pecuários brasileiros, está em entendimentos comerciais com os EUA, país que, em relação a esses produtos, é nosso concorrente.

Em outras palavras, o capitalismo está num momento de crise e transição, e o Brasil opta pelo retrocesso a um modelo capitalista subdesenvolvido e incivilizado. Um subcapitalismo rentista que lucra e muito com base em práticas arcaicas, destrutivas e antissociais, que compromete a sobrevivência não só das populações originárias mas também das populações rurais colocadas à margem de um crescimento econômico sem desenvolvimento econômico e social.

Nas reportagens sobre as manifestações indígenas e a repressão que sofreram, a TV mostrou uma partidária do governo e do projeto em trâmite na Câmara que vociferava justificativas em favor de sua aprovação. Defendia o “direito” do índio se tornar um empreendedor moderno e até de se tornar um seguidor do neoliberalismo econômico!

Isso até pode acontecer. Mas depende de um processo de ressocialização lento que vai em direção oposta a essa, porque tribal. Já aconteceu no Brasil com vários grupos indígenas. Um deles, o dos parkatejê, do Pará. Que utilizaram a mediação e o apoio da antropóloga que fazia pesquisa sobre sua tribo. Na prática, eles inverteram os papéis e passaram a estudá-la para decifrar as irracionalidades dos brancos, responsáveis pela crise de sua organização tribal, pelas doenças e por sua miséria.

Na economia cara-pálida não há lugar para os valores e o capital social das populações indígenas. Os índios descobriram como funciona a cabeça do branco, reorganizaram-se como produtores comerciais de castanhas e com os recursos que conseguiram revitalizaram adaptativamente a sociedade tribal. Tornaram-se mais índios do que a ignorância branca queria deles fazer.

São aí evidentes as opções do presidente da República quanto à sua opção de senso comum por um indígena cara-pálida. Como ocorreu em sua ida à ONU para o discurso inaugural. Levou consigo uma moça de origem indígena, moradora na periferia de São Paulo, como uma testemunha do índio de sua referência. Uma indígena que destribalizada e desvinculada de seu grupo de referência não tinha outra alternativa, para sobreviver, senão aderir aos valores da sociedade branca.

O projeto cara-pálida do governo e dos seus coadjuvantes no Congresso Nacional é um projeto da economia do saque e da rapina das terras e da alma indígenas.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Simon Bolivar Professor (Cambridge, 1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Moleque de Fábrica” (Ateliê).

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