sexta-feira, 2 de julho de 2021

Pedro Doria - Jornalismo e autoritários digitais

O Globo

Uma das perguntas mais comuns que nós, jornalistas, recebemos é a respeito da isenção. Às vezes vem em tom provocador, noutras como curiosidade — mas é uma pergunta perfeitamente natural. Uma pergunta que, feita hoje em dia, necessariamente toca em questões bastante profundas. Tanto a ascensão de movimentos populistas autoritários pelo mundo quanto mudanças de linguagem criadas pela comunicação digital nos forçam a voltarmos aos fundamentos essenciais do jornalismo.

O jornalismo existe para servir a democracia. Uma coisa está amarrada à outra. Não há jornalismo real fora da democracia, assim como não há democracia sem jornalismo. Muito cedo se compreendeu que, para democracias funcionarem, era preciso uma estrutura de informação a respeito do que se passa nas estruturas de poder e na sociedade, mas que não fizesse parte do Estado. Tinha necessariamente de ser independente. Não poderia estar vinculada a um grupo político.

O motivo, e já havia compreensão a esse respeito no século XVIII, é que, para votar, precisamos todos estar informados. Democracias funcionam bem quando há informação de qualidade e em quantidade à disposição de todos os eleitores. Informação sobre os fatos, mas também informação sobre os argumentos em curso no debate público. Quem é contra, quem é a favor, defende como suas posições?

Por isso, é sempre importante voltar aos fundamentos. O jornalismo é uma instituição essencial da democracia. No jogo político habitual, dos partidos que disputam poder, deve sempre estar de fora como observador crítico. Não quer dizer sempre do contra em suas análises, mas quer dizer sempre desconfiado.

Não há mistério por trás da ideia de isenção jornalística. Outras profissões também exigem que as pessoas exerçam desprendimento a respeito de suas convicções pessoais. O psicanalista precisa deixar seu ego de lado ao ouvir quem está no divã. O advogado precisa deixar seus sentimentos sobre um crime de lado ao defender seu cliente. O médico, o padre, tantos trabalham separando crenças pessoais da atuação profissional. Porque essa é a natureza da função.

A isenção, porém, vale para o jogo político habitual. Porque, um degrau acima, o jornalismo tem lado — é o lado da democracia. No momento em que se implanta, um governo autoritário tentará controlar o que pode ser publicado. É por isso que autoritários prendem jornalistas, matam jornalistas ou tentam controlar o jornalismo por ameaças. Aliás, sintoma de autoritarismo é como o governante lida com a imprensa crítica.

Benjamin Netanyahu, em Israel, quase partiu as três principais redes de TV do país, argumentando que representavam monopólios. Um grupo grande de jornais, lá, cedeu perante ampla verba de publicidade. Na Rússia, jornalistas independentes são assassinados. Mesmo. A toda hora. No Brasil, Jair Bolsonaro atua na base da intimidação direta a repórteres que lhe fazem perguntas. É particularmente agressivo quando são mulheres a perguntar.

Não é tão simples censurar a imprensa no tempo da internet, mas a desinformação cumpre o mesmo objetivo. E o digital — principalmente após o surgimento das redes sociais, que selecionam o que vemos com base em algoritmos — é uma máquina que facilita à desinformação que se espalhe.

Então, se democracias dependem de uma população informada, quem atua para produzir e distribuir desinformação está conscientemente atentando contra o regime. Desafios trazidos pela tecnologia sempre fizeram parte da história do jornalismo. Para nossa geração, o desafio é um só. Restabelecer, na sociedade, o predomínio da informação sobre os falsários.

 

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