EDITORIAIS
Reforma ruim e na hora errada
O Estado de S. Paulo
Tributação envolve questões múltiplas e complicadas. Paulo Guedes insiste em promover um arremedo de reforma. E na hora errada
Atolado em dívida, pressionado para gastar
e com muita dificuldade para cumprir suas obrigações, o governo federal ainda
poderá perder cerca de R$ 21,8 bilhões de receita, se a reforma do Imposto de
Renda (IR) aprovada na Câmara for transformada em lei. Os senadores ainda
poderão barrar ou modificar a proposta, evitando ou atenuando o desastre.
Sancionado na forma atual, o projeto causará uma perda de arrecadação de R$
41,1 bilhões à União, aos Estados e aos municípios. Para os governos
subnacionais a sangria deverá chegar a R$ 19,3 bilhões. Os cálculos foram
solicitados ao economista Sérgio Gobetti pelo Comitê Nacional de Secretários
Estaduais da Fazenda.
Numa votação apressada e baseada em acordos coordenados pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), deputados aprovaram um texto qualificado como “projeto secreto” pelo tributarista Luiz Bichara, citado pelo Estado. O documento final apresentado pelo relator, Celso Sabino (PSDB-PA), nem sequer foi protocolado. Não houve tempo para análise e mais uma vez funcionou o famigerado rolo compressor.
O atropelo na votação de um texto mal
conhecido foi apenas mais um capítulo numa longa história de erros. O ministro
da Economia, Paulo Guedes, errou ao tentar mexer no IR neste momento. Não é
hora de pensar em mudanças complicadas.
O País mal saiu de uma recessão. A economia
cresceu 1,2% no primeiro trimestre e encolheu 0,1% no segundo. Mais de 14
milhões estão desempregados, os preços aumentam em disparada, há muita incerteza
sobre as contas públicas e a insegurança é evidente em todos os mercados. A
proposta orçamentária enviada há poucos dias ao Congresso poderá ser amplamente
deturpada.
É hora de proteger o projeto de Orçamento,
de cuidar dos mais vulneráveis, de favorecer o consumo, de eliminar entraves
burocráticos, de facilitar a exportação, de tranquilizar os mercados, de
aumentar a confiança na solvência do Tesouro e de administrar a crise hídrica.
Um ministro da Economia comprometido com seu papel deveria também estar
empenhado em conter os impulsos populistas e eleitoreiros do presidente da
República.
Mas o ministro começou a errar muito antes,
desde suas primeiras manobras para mexer no sistema tributário. Gastou tempo e
energia tentando ressuscitar a Contribuição Provisória sobre Movimentação
Financeira (CPMF), uma bem conhecida aberração. Depois, apresentou propostas de
mudanças de alguns tributos federais, sem jamais se ocupar de uma efetiva
reforma do sistema.
Agiu sempre como se fosse possível cuidar
do assunto sem levar em conta Estados e municípios e sem pensar, portanto, no
conjunto da tributação e em seus enormes problemas. Sempre desprezou projetos
já disponíveis no Parlamento e elaborados por pessoas de conhecida competência.
Tampouco recorreu a profissionais experientes e conhecedores do tema para
discutir uma reforma de verdade.
O ministro da Economia nem deveria ter
mandado ao Congresso seus ensaios medíocres de mudança tributária. Nem deveria
ter imaginado – outro erro considerável – a hipótese de cuidar do tema sem uma
séria discussão. A última grande reforma, em vigor a partir de 1967, já era
debatida antes da implantação do regime militar. Não foi estudada só a partir
de 1964 e ninguém poderia descrevê-la como improvisada.
Tributação envolve questões múltiplas e
complicadas, como o equilíbrio das contas públicas, o bom funcionamento dos
negócios, a competição, o crescimento econômico e a distribuição dos encargos
entre pessoas com diferentes níveis de renda. O sistema brasileiro é complexo,
trabalhoso para as empresas, oneroso para a produção, injusto na distribuição e
nocivo à competitividade internacional. A dependência excessiva da tributação
do consumo joga um peso desproporcional sobre as famílias de renda média e
renda baixa. Não se pode pensar numa reforma verdadeira, é preciso insistir,
sem considerar esses pontos. O ministro da Economia insiste em ignorá-los e em
promover um arremedo de reforma – e na hora errada. O País perde.
Casa Verde e Amarela ainda é uma promessa
O Estado de S. Paulo
Paralisia do programa habitacional é reflexo de um governo que não tem planos para o País
Um presidente da República não deveria assumir
o poder com a predisposição de descontinuar políticas públicas implementadas
por seus antecessores apenas por deles divergir no campo ideológico. O cargo
exige altivez do governante de turno para analisar quais dessas políticas devem
ser mantidas como estão, quais devem ser aprimoradas e, eventualmente, quais
devem ser encerradas, sempre à luz do melhor interesse público.
A descontinuidade administrativa motivada
por interesses mesquinhos provoca enormes prejuízos financeiros, retarda o
desenvolvimento do País e, principalmente, deixa desamparados os cidadãos que
mais precisam do Estado para terem supridas suas necessidades mais básicas.
Moradia digna é uma delas.
A fim de substituir o programa Minha Casa,
Minha Vida (MCMV), fortemente vinculado aos governos do PT, o presidente Jair
Bolsonaro decidiu criar um programa habitacional para chamar de seu, o Casa
Verde e Amarela. É compreensível que um presidente queira deixar a própria
marca, um traço que o diferencie dos demais. O então presidente Lula da Silva,
quando lançou o MCMV, em 2009, também não partiu do zero. Dilma Rousseff, que
expandiu o programa, também não.
A mera troca de nome de uma política
habitacional, no entanto, de nada serve se não vier acompanhada por ajustes que
devem ser feitos no modelo anterior e alterações visando à expansão do público
atendido, meta primordial de uma política de financiamento habitacional voltada
para a população de baixa renda em um país como o Brasil. De acordo com a
Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional no País saltou de 5,657 milhões
de moradias em 2016 para 5,877 milhões de moradias em 2019, ano da mais recente
aferição. O problema deve ser tratado com muita seriedade. Uma política
habitacional não pode se prestar a ser mero estandarte eleitoral.
Pouco mais de um ano após o lançamento, o
programa Casa Verde e Amarela ainda é uma promessa. Não há recursos previstos
no Orçamento para execução das obras e expansão dos subsídios. Em 2021,
faltando apenas quatro meses para o fim do ano, o governo federal entregou
cerca de 20 mil unidades do antigo MCMV voltadas à faixa 1 do programa, que
atende famílias com renda mensal de até R$ 1 mil. O número é muito abaixo da
média mensal registrada desde o lançamento do programa, há 12 anos: 1,49 milhão
de moradias, de acordo com a Controladoria-Geral da União. A apuração do Estado revelou
que a conclusão das obras em andamento está ameaçada por falta de recursos.
Novos projetos abarcados pelo programa repaginado, então, não passam de uma
quimera nesta dramática quadra da história.
O governo federal argumenta que a entrega
de novas moradias não será mais a única ação da política habitacional no âmbito
federal. Fala-se em regularização de terrenos ocupados e reformas de habitações
existentes. De fato, quando se fala em déficit habitacional, está-se falando
não apenas de falta de moradia construída, mas de domicílios improvisados,
cômodos utilizados por famílias inteiras, habitações em condições sub-humanas,
etc. Porém, até o momento nenhuma moradia foi regularizada ou reformada.
A paralisia do programa Casa Verde e
Amarela é mais um desdobramento de um governo que não tem um projeto para o
Brasil. A própria incapacidade de Bolsonaro para diagnosticar os reais
problemas do País, por óbvio, compromete a boa concepção de políticas públicas
para resolvê-los, que dirá a execução. Desde seu lançamento, o programa
habitacional de Bolsonaro tem sido criticado tanto pela falta de detalhamento,
por ter sido feito de afogadilho para atingir objetivos estritamente
eleitoreiros, como pela falta de empenho do governo para priorizar o programa.
“É a falta de vontade política para botar dinheiro nesse assunto. É obra
contratada, em andamento, e você tem que passar o pires como se estivesse
pedindo um favor”, disse ao Estado José Carlos Martins, presidente da
Câmara Brasileira da Indústria de Construção (Cbic).
Em vez de inventar crises e criar políticas
públicas de papel, Bolsonaro deveria trabalhar para valer a fim de garantir que
os brasileiros tenham, no mínimo, a esperança de uma vida melhor.
A longa crise da indústria
O Estado de S. Paulo
De novo abaixo do nível pré-pandemia, a indústria enfrenta mais um ano ruim
Depois de um mau desempenho no primeiro semestre, a indústria ingressou
no segundo com mais um tombo, o quinto em sete meses. A produção de julho foi
1,3% menor que a de junho, quando havia caído 0,2%. Com a nova
queda, o volume ficou 1,2% abaixo do patamar pré-pandemia, de fevereiro de
2020. Em recuperação a partir de maio do ano passado, a indústria atingiu em
janeiro um nível 3,5% superior àquele patamar, mas o impulso logo se esgotou,
num ambiente de baixo consumo, custos crescentes e muita incerteza gerada em
Brasília. O total produzido mensalmente encolheu em fevereiro, março, abril,
junho e julho.
O segundo semestre começou mal para quase
toda a indústria. A produção encolheu em 19 ramos dos 26 cobertos pela pesquisa
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse desempenho é em
parte atribuível ao desarranjo da cadeia produtiva, com os consequentes
problemas de abastecimento de matérias-primas e componentes. Esse desarranjo
tem sido visível no mercado global. Também é preciso levar em conta as
condições da demanda interna. O consumidor nacional é o principal cliente da
indústria brasileira. A maior parte das empresas dificilmente vai bem quando
esse cliente vai mal.
O Brasil encerrou o primeiro semestre com
14,4 milhões de desempregados, 7,5 milhões com horas insuficientes de trabalho
e 5,6 milhões de desalentados, além de 10 milhões de empregados informais. Já
muito curto, o dinheiro desses milhões de consumidores ainda vem sendo
corroído, mês a mês, por uma inflação alta e crescente.
É fácil, portanto, entender por que o
consumo das famílias teve crescimento zero no segundo trimestre. Dinheiro
curto, péssimas condições de emprego e preços em disparada têm composto, neste
ano, o maior entrave ao crescimento da produção industrial. Mesmo sem outros
fatores conjunturais, como os problemas de suprimento de insumos, a situação da
indústria seria complicada. O quadro fica pior quando se consideram as
condições de financiamento, agravadas pelo aumento dos juros básicos.
A elevação de juros tem sido a resposta do
Banco Central (BC) às persistentes e fortes pressões inflacionárias. Embora
tecnicamente justificável, essa estratégia agrava a situação dos consumidores
já endividados e dificulta a obtenção de empréstimos pelas empresas. A taxa
básica já chegou a 5,25% ao ano, pode atingir 6,25% neste mês e alcançar 7,50%
até dezembro, segundo estimam especialistas do setor privado.
O controle da inflação é mais difícil
quando há muita insegurança nos mercados. No Brasil, o principal fator de
insegurança é o presidente da República, fonte de tensão política permanente e
de enorme incerteza quanto à evolução das contas públicas. Em permanente
campanha eleitoral, ele depende do apoio de uma base fisiológica – e, portanto,
custosa – e de uma pauta claramente populista.
Mas os problemas da maior parte da
indústria são mais que conjunturais. Em julho, a produção foi 18,5% inferior à
de maio de 2011, pico da série histórica. O desempenho do setor foi
especialmente ruim na recessão de 2015-2016 e na fase mais crítica de 2020,
mas, mesmo sem esses episódios, a tendência nos últimos dez anos teria sido
negativa. Entre 2011 e 2020 houve seis anos com desempenho negativo.
Erros do período petista explicam parte
desse retrocesso. Não houve estímulo à ampliação e à modernização da capacidade
produtiva, a inovação foi negligenciada, incentivos foram mal planejados e
desperdiçados, o protecionismo foi excessivo, faltou integração global e a
dependência dos mercados vizinhos foi exagerada.
A recuperação iniciada em 2017 foi
interrompida em 2019, no começo do mandato do presidente Bolsonaro. Desde
janeiro desse ano, nada parecido com uma política de crescimento econômico e de
competitividade surgiu em Brasília. A única reforma relevante, a da
Previdência, havia sido amadurecida pelo presidente Michel Temer. Se estiver em
gestação alguma política de retorno ao desenvolvimento, deve estar sob estrito
sigilo em algum gabinete em Brasília.
Orçamento viável
Folha de S. Paulo
Há como gerir o governo em 2022 sob o teto
de gastos, com prioridade ao social
A divulgação do
projeto de lei orçamentária para 2022 desmonta uma falsa versão
propagada pelo governo e por lideranças do Congresso —a de que o salto da conta
de precatórios inviabiliza o cumprimento do teto de gastos e ameaça paralisar
atividades essenciais.
Respeitar o teto não exige malabarismo
contábil ou jurídico, seja um calote nas dívidas derivadas de decisões
judiciais ou mudanças legais que na prática levem à burla dos limites constitucionais
para as despesas federais.
Basta explicitar os dilemas com clareza ao
público e eleger prioridades, tudo o que Executivo e parlamentares, movidos por
interesses eleitoreiros, não querem.
Há um problema real a ser enfrentado. O
projeto mostra que o salto na despesa com precatórios de R$ 89,1 bilhões —R$
32,1 bilhões acima da previsão anterior— cabe no teto, mas elimina espaço para
aumento de outros gastos, em especial com uma nova versão do Bolsa Família,
salários do funcionalismo e emendas parlamentares.
O caminho, porém, não é parcelar as dívidas
judiciais, como propôs o governo por meio de uma proposta de emenda
constitucional. Isso configuraria uma nova versão da pedalada fiscal, ainda que
autorizada pela legislação, além de abrir espaço para a criação de um fundo que
poderá ser usado para outros pagamentos fora dos limites.
Tampouco é boa solução a ideia aventada
pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux, de chamar o
Conselho Nacional de Justiça para uma arbitragem, o que na prática afrontaria
sentenças transitadas em julgado, aumentaria a insegurança jurídica e criaria
uma bola de neve de dívidas para o futuro.
As saídas, na verdade, podem ser mais
convencionais. Metade do adicional de precatórios, R$ 16 bilhões, deriva de
ações relativas ao Fundef, antecessor do Fundeb. Como o fundo atual para a
educação já está fora do teto de gastos, aceitar que dívidas dessa natureza
também possam ser excluídas da norma não seria um malabarismo.
Dependendo das condições de inflação e
crescimento econômico, o espaço remanescente para enquadrar todas as novas
demandas não seria maior que R$ 20 bilhões. O ideal é preservar ao máximo a
margem para ampliação do Bolsa Família, o que implicaria cortar emendas e
outras rubricas.
Eis a origem da resistência política, uma
vez que são essas emendas —em especial as que ficam a cargo do relator da lei
orçamentária no Congresso, no montante de R$ 18,5 bilhões neste ano— que
garantem interesses de parlamentares e, por extensão, a sustentação política do
governo Bolsonaro.
Mais pobres no Enem
Folha de S. Paulo
Governo deve reabrir prazo de solicitação
de gratuidade da inscrição no exame
São inquietantes os dados
referentes às inscrições do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)
deste ano, a ser realizado no final de novembro. Com 3,1 milhões de candidatos,
a prova de 2021 receberá o menor número de concorrentes registrado desde 2005.
Uma queda, na comparação com o ano passado, de nada menos que 46%.
Esse declínio compreende especialmente
pretos (51,7%), pardos (53,1%) e indígenas (54,8%), interrompendo de modo
brusco o aumento gradual da participação desses estratos que vinha ocorrendo
desde 2009, quando o Enem se tornou o principal meio de acesso às universidades
federais.
No que tange à participação, um
levantamento do Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior aponta que, neste
ano, 11,7% dos inscritos são pretos —a menor proporção desde 2009. Já os pardos
representam 42,2% dos participantes da próxima prova, o mais baixo percentual
desde 2012.
Chama a atenção, sobretudo, a dramática
redução do número de estudantes de baixa renda. A quantidade de inscritos com
isenção da taxa por declaração de carência caiu 77% em relação à prova
realizada no ano passado, quando perfizeram 63% do total. Em 2021, eles serão
apenas 26,5%.
Embora constitua fenômeno multifatorial,
dois elementos parecem sobressair-se entre as causas da menor participação de
negros e pobres na prova de 2021.
Após um ano e meio de ensino remoto, é
razoável supor que uma parcela considerável de alunos, principalmente dos que
estudam em escolas públicas, tenha desistido de prestar o exame por não se
sentir suficientemente preparada, ou, pior, por ter simplesmente abandonado os
estudos.
Soma-se a isso a miopia do Ministério da
Educação, que manteve o veto da gratuidade àqueles que faltaram à prova
anterior e não conseguiram justificar documentalmente a ausência. Realizado em
janeiro, em um momento de aumento de casos de Covid-19, o Enem teve abstenção
recorde de pouco mais de 50%.
Assim, aqueles que deixaram de comparecer
por apresentar algum sintoma da doença, ou por receio de infectar-se, foram
penalizados.
É bem-vindo, portanto, que o Supremo
Tribunal Federal tenha formado maioria para obrigar o
ministério a reabrir o prazo de solicitação de gratuidade da inscrição do Enem
e proibir que a isenção seja negada a quem se ausentou na prova de 2020. Ao
menos esse erro do MEC pode ser corrigido.
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