O Estado de S. Paulo
Nossa democracia vibrante, batizada nas
ruas, não pode ser abalada por radicais
O batismo de nossa democracia se deu nas
ruas, com a campanha das Diretas-Já.
De lá para cá, as manifestações se incorporaram ao cotidiano de nossa vida
política. Manifestações que costumam ser civilizadas na forma – até para o
padrão de regimes de liberdade mais maduros, como França e Estados Unidos – e
democráticas no conteúdo. Protestamos contra a inflação, por sistemas de saúde
e educação “padrão Fifa” e por leis mais duras de combate à corrupção – ou
seja, pelo aprofundamento dos aspectos sociais e éticos de nossa
democracia.
Se as ruas foram a pia batismal do nosso regime de liberdade, a certidão de nascimento foi a Constituição de 1988. Mesmo com algumas contradições, ela nos desafia a implantar um Estado de bem-estar social. Além disso, ao passar o poder para as mãos dos civis, nossa Constituição estabelece de forma clara o papel dos militares. Em seu livro Dano Colateral, a jornalista Natalia Viana lembra como foi redigido o artigo sobre a “Garantia da Lei e da Ordem”. No texto fica claro que o Exército não é um “poder moderador”, podendo atuar apenas quando convocado por poderes civis.
Nos últimos anos, o Brasil colecionou notas
altas nos rankings internacionais de democracia liberal, como Freedom House e
V-Dem. “Democracia” significa implementar a “vontade do povo” por meio de
eleições. O termo “liberal”, em sua acepção política, se refere à garantia dos
direitos e ao primado das leis. Nenhum governante eleito, em nome da “vontade
do povo”, pode agir contra as leis e os direitos estabelecidos na
Constituição.
Infelizmente, há quem pense de forma bem
diversa. Uma pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destacada em
manchete na quinta-feira pelo Estadão, mostra que a adesão a teses como o
fechamento do Congresso e a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal
aumentou 29% entre policiais militares. Pode-se criticar decisões de parlamentares
ou juízes do Supremo, mas nada justifica tais teses, antidemocráticas em
essência. O Congresso, um poder eleito, é a expressão mais plural da “vontade
do povo”, e a Corte suprema é a guardiã do pilar “liberal” – o dos direitos –
em qualquer democracia.
Jair Bolsonaro deu
declarações dúbias sobre o 7 de Setembro, dando munição a quem fala em
tentativa de golpe – como o
presidente do PSD, Gilberto Kassab. Natalia Viana – que hoje vive em
Boston, num período de estudos na Universidade Harvard – não acredita que o
Exército embarque em qualquer aventura autoritária. Ela conversou com vários
generais na confecção de seu livro sobre militares e política, e é a
entrevistada do minipodcast da semana.
Em manifestações recentes, lideranças do Exército
externaram uma postura legalista, ecoando movimentos da sociedade civil.
Centrais sindicais, associações de bancos e do agronegócio elaboraram
manifestos defendendo a democracia. O governo tratou tais entidades como
antagonistas, pressionando os signatários dos textos. “O clamor por
responsabilidade e harmonia institucional é visto pelo Palácio do Planalto como
radical oposição aos planos do bolsonarismo”, escreveu o Estadão em
editorial.
Os últimos monitoramentos de redes sociais rastrearam um recuo do discurso autoritário. É uma boa notícia. Nossa democracia vibrante, nascida com uma Constituição e batizada nas ruas, não pode ser abalada por radicais sem compromisso com nenhuma das duas – nem com a Constituição, nem com a democracia.
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