segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Luiz Carlos Mendonça de Barros* - O debate fiscal revisitado

Valor Econômico

Presidencialismo de coalizão cria demanda quase autônoma de gasto público como moeda de troca de apoio

Vivemos hoje no Brasil uma verdadeira histeria conservadora no debate sobre o estado de nossas contas fiscais. As instituições internacionais que tradicionalmente funcionaram como auditores externos de nossa situação fiscal - agências de risco como S&P, FMI e IIF - foram atropeladas pelos chamados economistas de mercado na sua avaliação de uma situação à beira do caos.

A preocupação com a sustentabilidade das contas públicas faz parte do debate econômico no Brasil principalmente depois que a Constituição de 1998 estabeleceu uma série de novos programas sociais, inclusive na fixação de regras trabalhistas e previdenciárias. A demora pelo Congresso Nacional em aprovar as leis que os regulamentaram fez com que o período de ajuste nos orçamentos públicos se estendesse por mais de duas décadas e, somente a partir de 2016, chegamos a uma certa estabilidade sistêmica.

Uma outra mudança de natureza estrutural aconteceu no período do governo FHC com a implantação do primeiro programa de renda mínima para minimizar os efeitos da pobreza extrema em nossa sociedade. Estamos hoje na terceira ou quarta versão deste programa que é reconhecido pela grande maioria da população como uma das marcas exitosas de nossa luta contra a pobreza.

Dadas estas transformações na estrutura de nosso gasto público obrigatório, tornou-se necessário o aumento progressivo da arrecadação de impostos para viabilizar um equilíbrio estável em nosso orçamento. Como resultado, temos hoje uma carga tributária muito superior à de outras nações emergentes, da ordem de 34% do PIB. Para que tal ocorresse os governos no poder foram obrigados a introduzir novos impostos e contribuições sociais que acabaram por transformar nosso sistema tributário em um emaranhado de regras de grande complexidade operacional e ineficiências microeconômicas.

Como medida de compensação à nova estrutura de gastos do governo federal iniciou-se no governo Itamar Franco a desmontagem do Estado Empresário de longa tradição na nossa história. As privatizações de empresas estatais - tanto ao nível federal como nos Estados brasileiros - tiveram entre outros objetivos abrir espaço para o setor privado assumir os investimentos em setores estratégicos de nossa economia, principalmente na infraestrutura.

Um último ponto a ser considerado nas reflexões sobre a questão fiscal no Brasil é a natureza de nosso sistema político, que levou à criação de um parlamento com grande viés populista e que opera o que chamamos de Presidencialismo de Coalizão. Este sistema em que é muito difícil a formação de uma base política estável no Congresso, a força dos pequenos partidos, sem ideologia e dependente de ações pontuais do governo em benefício de seus membros, cria uma demanda quase autônoma de gasto público como moeda de troca de apoio político ao governo de plantão.

Como resposta a todas estas dificuldades iniciou-se no governo Fernando Henrique um movimento para estabelecer limites externos ao crescimento dos gastos públicos visando fortalecer o controle do Executivo sobre o orçamento federal. A Lei de Responsabilidade Fiscal que, como escreveu José Roberto Afonso em seu texto Novas Regras Fiscais (e nova cultura), “embora inspirada em países de boa governança fiscal construiu um marco legal próprio e peculiar mesclando princípios e normas, código de conduta e regulamentos específicos” que procurou reequilibrar o jogo.

A questão fiscal foi esquecida no governo Lula, pois o crescimento econômico do período fez com que o expressivo aumento das receitas fiscais mascarasse o verdadeiro estado de longo prazo do orçamento público. Foi apenas quando o ciclo das commodities chegou ao fim em 2014 e, por várias razões, a economia brasileira entrou em recessão profunda, a questão fiscal voltou a ser o centro do debate econômico. Entre 2015 a 2018 os governos Dilma e Temer deixaram de lado a visão mais keynesiana da LRF e cruzaram a perigosa fronteira dos limites quantitativos explícitos do gasto público, principalmente com o estabelecimento do chamado Teto de Gastos.

Os efeitos benéficos sobre as expectativas da criação do teto foram sentidos rapidamente pelo mercado financeiro no governo Temer e com isto limitou-se o debate sobre a forma como ele seria calculado e, principalmente, na análise de seus efeitos em momentos de instabilidade econômica e de expectativas, como já tinha ocorrido em diversos países. Mas a pandemia da covid e o desequilíbrio que se seguiu às restrições de mobilidade social criadas pelos governos escancararam os riscos de limites quantitativos fixos, independente da fase do ciclo econômico, como limitadores dos gastos públicos como a Europa havia mostrado em crises anteriores. Basta olhar para o gráfico anexo para uma visualização clara das distorções trazidas pelas regras do protocolo do chamado Teto de Gastos.

Como bem lembra José Roberto Afonso em seu artigo citado acima, o Brasil passou a sofrer uma situação parecida com a da Europa durante a recessão de 2001 a 2005 e que obrigou a ajustes de alívio nas duríssimas regras impostas pelo governo alemão anteriormente. Na Europa foi criada então uma cláusula de escape das regras fiscais - aqui no Brasil chamado pelo mercado financeiro de Fura Teto - para acomodar situações específicas em alguns países mediterrâneos. Este mesmo mecanismo foi usado novamente na crise financeira de 2008 e agora na pandemia.

Certamente no Brasil, passada a histeria que vivemos agora, será preciso rever as regras do teto de gastos para acomodar, como fizeram os europeus, mecanismos de escape quando algum tipo de Black Swan atingir nossa sociedade.

*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.

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