Valor Econômico
Presidencialismo de coalizão cria demanda
quase autônoma de gasto público como moeda de troca de apoio
Vivemos hoje no Brasil uma verdadeira
histeria conservadora no debate sobre o estado de nossas contas fiscais. As
instituições internacionais que tradicionalmente funcionaram como auditores
externos de nossa situação fiscal - agências de risco como S&P, FMI e IIF -
foram atropeladas pelos chamados economistas de mercado na sua avaliação de uma
situação à beira do caos.
A preocupação com a sustentabilidade das contas públicas faz parte do debate econômico no Brasil principalmente depois que a Constituição de 1998 estabeleceu uma série de novos programas sociais, inclusive na fixação de regras trabalhistas e previdenciárias. A demora pelo Congresso Nacional em aprovar as leis que os regulamentaram fez com que o período de ajuste nos orçamentos públicos se estendesse por mais de duas décadas e, somente a partir de 2016, chegamos a uma certa estabilidade sistêmica.
Uma outra mudança de natureza estrutural
aconteceu no período do governo FHC com a implantação do primeiro programa de
renda mínima para minimizar os efeitos da pobreza extrema em nossa sociedade.
Estamos hoje na terceira ou quarta versão deste programa que é reconhecido pela
grande maioria da população como uma das marcas exitosas de nossa luta contra a
pobreza.
Dadas estas transformações na estrutura de
nosso gasto público obrigatório, tornou-se necessário o aumento progressivo da
arrecadação de impostos para viabilizar um equilíbrio estável em nosso
orçamento. Como resultado, temos hoje uma carga tributária muito superior à de
outras nações emergentes, da ordem de 34% do PIB. Para que tal ocorresse os
governos no poder foram obrigados a introduzir novos impostos e contribuições
sociais que acabaram por transformar nosso sistema tributário em um emaranhado
de regras de grande complexidade operacional e ineficiências microeconômicas.
Como medida de compensação à nova estrutura
de gastos do governo federal iniciou-se no governo Itamar Franco a desmontagem
do Estado Empresário de longa tradição na nossa história. As privatizações de
empresas estatais - tanto ao nível federal como nos Estados brasileiros -
tiveram entre outros objetivos abrir espaço para o setor privado assumir os
investimentos em setores estratégicos de nossa economia, principalmente na
infraestrutura.
Um último ponto a ser considerado nas
reflexões sobre a questão fiscal no Brasil é a natureza de nosso sistema
político, que levou à criação de um parlamento com grande viés populista e que
opera o que chamamos de Presidencialismo de Coalizão. Este sistema em que é
muito difícil a formação de uma base política estável no Congresso, a força dos
pequenos partidos, sem ideologia e dependente de ações pontuais do governo em
benefício de seus membros, cria uma demanda quase autônoma de gasto público
como moeda de troca de apoio político ao governo de plantão.
Como resposta a todas estas dificuldades
iniciou-se no governo Fernando Henrique um movimento para estabelecer limites
externos ao crescimento dos gastos públicos visando fortalecer o controle do
Executivo sobre o orçamento federal. A Lei de Responsabilidade Fiscal que, como
escreveu José Roberto Afonso em seu texto Novas Regras Fiscais (e nova
cultura), “embora inspirada em países de boa governança fiscal construiu um
marco legal próprio e peculiar mesclando princípios e normas, código de conduta
e regulamentos específicos” que procurou reequilibrar o jogo.
A questão fiscal foi esquecida no governo
Lula, pois o crescimento econômico do período fez com que o expressivo aumento
das receitas fiscais mascarasse o verdadeiro estado de longo prazo do orçamento
público. Foi apenas quando o ciclo das commodities chegou ao fim em 2014 e, por
várias razões, a economia brasileira entrou em recessão profunda, a questão
fiscal voltou a ser o centro do debate econômico. Entre 2015 a 2018 os governos
Dilma e Temer deixaram de lado a visão mais keynesiana da LRF e cruzaram a
perigosa fronteira dos limites quantitativos explícitos do gasto público,
principalmente com o estabelecimento do chamado Teto de Gastos.
Os efeitos benéficos sobre as expectativas
da criação do teto foram sentidos rapidamente pelo mercado financeiro no
governo Temer e com isto limitou-se o debate sobre a forma como ele seria
calculado e, principalmente, na análise de seus efeitos em momentos de
instabilidade econômica e de expectativas, como já tinha ocorrido em diversos
países. Mas a pandemia da covid e o desequilíbrio que se seguiu às restrições
de mobilidade social criadas pelos governos escancararam os riscos de limites
quantitativos fixos, independente da fase do ciclo econômico, como limitadores dos
gastos públicos como a Europa havia mostrado em crises anteriores. Basta olhar
para o gráfico anexo para uma visualização clara das distorções trazidas pelas
regras do protocolo do chamado Teto de Gastos.
Como bem lembra José Roberto Afonso em seu
artigo citado acima, o Brasil passou a sofrer uma situação parecida com a da
Europa durante a recessão de 2001 a 2005 e que obrigou a ajustes de alívio nas
duríssimas regras impostas pelo governo alemão anteriormente. Na Europa foi
criada então uma cláusula de escape das regras fiscais - aqui no Brasil chamado
pelo mercado financeiro de Fura Teto - para acomodar situações específicas em
alguns países mediterrâneos. Este mesmo mecanismo foi usado novamente na crise
financeira de 2008 e agora na pandemia.
Certamente no Brasil, passada a histeria
que vivemos agora, será preciso rever as regras do teto de gastos para
acomodar, como fizeram os europeus, mecanismos de escape quando algum tipo de
Black Swan atingir nossa sociedade.
*Luiz Carlos Mendonça de Barros, engenheiro e economista, é presidente do Conselho da Foton Brasil. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações.
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