O Globo
Em situações normais, o noticiário dos
últimos dias em relação ao Enem teria tratado exclusivamente da preparação dos
estudantes para a prova. Mas não há nada de normal quando um presidente afirma
que o principal exame público de acesso ao ensino superior teria “a cara do
governo”. Até o momento, porém, o efeito mais visível da interferência indevida
não estava nas questões que apareceram na prova de ontem.
Além do zelo dos servidores do Inep, uma
das características que ameniza interferências drásticas e de curto prazo no
exame é o fato de ele ser elaborado num processo extremamente profissional.
Para que uma questão seja incluída no exame, primeiro é feito um edital de
contratação de professores para escreverem perguntas. Uma vez que elas são
selecionadas, é preciso ainda fazer um pré-teste com uma amostra de estudantes,
para saber qual seu nível de dificuldade e sua capacidade de avaliar o
conhecimento do candidato. Após essas etapas, a questão passa a compor o
chamado banco de itens. Quanto mais amplo for esse banco, mais segura será a
prova, pois o risco de vazamento diminui bastante.
O governo Bolsonaro não teve tempo ainda de moldar as questões que fazem parte deste banco de itens à sua imagem e semelhança. Mas já conseguiu ao menos promover a censura de algumas questões, como revelaram várias reportagens publicadas na semana passada.
Uma delas, de Luigi Mazza no site da
Revista Piauí, deu detalhes de como tem sido feita a censura na gestão
bolsonarista. Com base em justificativas genéricas e subjetivas, censores tem
atropelado a área técnica do Inep. O argumento que mais aparece no documento ao
qual a revista teve acesso é o de que determinadas questões poderiam “gerar
polêmica desnecessária”. Foram para o limbo perguntas que traziam o contexto da
Ditadura Militar brasileira, que mencionavam o uso da camisinha como “meio de
prevenção mais barato e eficaz” contra a Aids e até tiras da Mafalda,
personagem de quadrinhos criada pelo cartunista argentino Quino.
Disputas em relação à abordagem de valores
morais e fatos históricos ou políticos sempre existirão em sociedades
democráticas. Mas esses debates precisam ser feitos à luz do dia, com
embasamento, nos momentos de construção do currículo nacional. Avaliações da
aprendizagem e exames como o Enem devem, portanto, espelhar esse currículo
pactuado entre todos os entes federativos, e não os caprichos, idiossincrasias
ou preferências ideológicas de um governo A, B ou C.
O impacto da gestão Bolsonaro no Enem,
porém, não se restringe à censura de questões. Pode-se dizer que o exame, em
alguns aspectos, já teve a cara do governo. A começar pelo fato de que a edição
deste ano foi a que teve o menor número de inscritos desde 2005, e a maior
queda aconteceu entre estudantes pretos, pardos e indígenas.
Claro que nem tudo é culpa do governo
federal. A pandemia certamente teve efeito significativo nesse quadro. Mas as
ações do MEC – como a recusa inicial em adiar a prova em 2020 ou o veto em 2021
à gratuidade na inscrição aos alunos que faltaram à prova no ano anterior –
foram coerentes com o discurso, já explicitado por todos os ministros da
Educação bolsonarsitas, de desvalorização do acesso ao ensino superior, em
contraposição aos elogios à educação profissional. Se ao menos a segunda parte
do discurso (de valorização do ensino técnico) se tornasse realidade, teríamos
algo a celebrar. Mas as matrículas de Educação Profissional em nível médio
continuaram estagnadas, mantendo uma tendência preocupante, iniciada em 2014.
Num país com sérios desafios a serem
enfrentados no ensino, o tema que mais mobiliza os bolsonaristas na educação –
como pode ser comprovado nas falas do presidente – é a censura às questões do
Enem. Na falta de resultados concretos para mostrar no setor, resta ao
presidente apelar para sua base radical.
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