Valor Econômico
Guerra é ponto de inflexão de um modelo de
governo do Estado Social para um padrão que prioriza as despesas militares
Dois anos depois de uma pandemia que
continua a matar em algumas regiões do globo, a guerra na Ucrânia veio afundar
as expectativas de crescimento econômico e de prosperidade mundial neste
fatídico 2022, mas isso está longe de ser tudo.
Independente de quem seja o vencedor do
conflito detonado por Putin, a guerra já tomou proporções suficientes para ser
o ponto de inflexão de um modelo de governo fundado no Social State (Estado
Social) para um padrão que priorize as despesas militares nos orçamentos públicos.
Pior ainda, o novo paradigma comprometeria os projetos destinados a substituir
as fontes poluentes pela produção de energia limpa, especialmente na Europa.
A iniciativa do governo alemão de dobrar os gastos com defesa este ano e de destinar mais de 2% do seu PIB àquela rubrica (hoje equivale a 1,53% do PIB) até 2024 é emblemática. Também a cúpula da União Europeia (UE) já anunciou que vai ampliar o orçamento destinado à defesa do bloco.
A dura realidade tem estimulado o debate
sobre a conveniência de se criar uma unidade europeia de defesa que,
paralelamente à Otan, possa caminhar pelas próprias pernas sem a tutela dos
Estados Unidos. Alguns chegam a propor a formação conjunta de pessoal militar
na região.
Não se deve desprezar a perspectiva de uma
nova configuração geopolítica a partir da guerra na Ucrânia, com uma Europa
militarmente mais forte e independente, uma Rússia economicamente mais próxima da
China, uma China cada vez mais presente na Ásia e no Sudeste Asiático, uma
aliança reforçada entre os Estados Unidos e o Reino Unido e destes com a
Austrália. À margem seguiriam os países africanos e a América Latina, com o
Oriente Médio a constituir aquele reduto cuja suma importância está ainda
irremediavelmente ligada à necessidade atávica do mundo por petróleo.
E aqui surge uma outra consequência da
guerra na Ucrânia: a percepção da urgência dos investimentos em fontes
renováveis de energia. Não pela preocupação com a mudança climática, pois esta,
muito embora reconhecida como um grande problema a ser enfrentado, tem até aqui
sido tratada com a morosidade das retóricas que se sobrepõem às ações. Foi
preciso uma guerra nas fuças para que a UE se desse conta de quão alto é o
risco político da dependência do fornecimento de gás e petróleo.
Os chamados combustíveis fósseis ainda são
fontes energéticas relativamente abundantes do ponto de vista econômico, mas
essa abundância é relativa porque as grandes reservas, como se sabe,
concentram-se na mão de poucos. Venezuela, Arábia Saudita, Canadá, Irã, Iraque,
Rússia, Kuwait e Emirados Árabes Unidos, pela ordem, respondem por cerca de 80%
das reservas de petróleo.
A perspectiva de problemas com o
fornecimento de gás russo e as sérias consequências disso para a economia de
boa parte dos países da região colocam a UE no corner, pois apesar das
reiteradas promessas de incentivos aos investimentos em fontes renováveis de
energia o bloco depara-se com o “dilema de Sofia”.
Diante da contemporaneidade da guerra, a
questão é saber, afinal, qual será a prioridade. Tendo em vista que os
orçamentos não são elásticos, o pêndulo das opções será empurrado para os
investimentos militares ou para as inversões em energia renovável?
O trade-off está longe de ser trivial uma
vez que ambas as alternativas implicam volumes expressivos de recursos
públicos. No que diz respeito aos investimentos para zerar a produção de gases
de efeito estufa em 2050, a Agência Internacional de Energia (IEA) aponta em
seu relatório “Net Zero by 2050”, na versão de outubro de 2021, para a
necessidade da alocação global “o mais rapidamente possível” de pelo menos US$
90 bilhões de verba pública de modo a que os projetos demonstrativos estejam
concluídos antes de 2030.
Aquele valor diz respeito basicamente à
despesa com pesquisa e desenvolvimento em diferentes tipos de tecnologia para
garantir o uso corriqueiro e de forma geral das fontes de energia limpa daqui a
trinta anos.
Para se ter uma ideia do que representa em
termos de grandeza, basta saber que apenas US$ 25 bilhões haviam sido
comprometidos até 2030 para aquele fim nos orçamentos dos países até o ano
passado, segundo a IEA.
Já com relação aos investimentos em defesa,
os valores também são grandiosos. Os limites de gastos indicados pela Otan em
2014 - de 2% do PIB para cada país membro - previam que as inversões em pessoal
e equipamento militar dos países do grupo aumentassem em 85% até 2025, mas
estão bem aquém do recomendado. Apenas sete países haviam ultrapassado a marca
dos 2% do PIB no levantamento preliminar realizado em 2021, com Grécia, Estados
Unidos, Croácia e Reino Unido à frente, e não mais do que três estavam em linha
com a meta.
A grande maioria ficou abaixo das
recomendações da Otan, com Bélgica, Espanha e Luxemburgo na rabeira. Mas o
quadro está em rápido processo de mudança. Assim como a Alemanha, a Dinamarca
(1,41% do PIB) anunciou que vai aumentar o gasto militar para o equivalente de
2% do PIB até 2033. Países fora da Otan, como a Suécia (1,3% do PIB com gastos
militares), também se preparam para alocar montantes expressivos em defesa.
Como se vê, o dilema diante da Europa é
substancial. Significa escolher entre sacrificar por mais tempo o combate à
emissão de gases de efeito estufa, continuando assim na dependência do
fornecimento de gás e de petróleo, e ampliar sua capacidade de defesa militar.
Grosso modo, é como ter de optar entre salvar o planeta dos riscos climáticos
ou salvar a própria pele, população e território, das ameaças bélicas.
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