terça-feira, 15 de março de 2022

Aylê-Salassié Filgueiras Quintão*:"Pacote do veneno": a economia brasileira precisa ser reinventada

A fragilidade da economia brasileira diante da globalização é tamanha que qualquer conflito fora de suas fronteiras - não importa a distância: no planeta - afeta diretamente o sistema produtivo interno. Os efeitos negativos chegam rápido ao consumidor.  Pois, não é que a guerra entre a Rússia e a Ucrânia vai impactar por aqui a inflação, o consumo de alimentos, inclusive a cesta básica, a política ambiental e tende a tirar a tranquilidade até dos índios.  

Na agenda do Congresso dois projetos de lei prometem ajudar a agitar o cenário: o PL 6299/2022, chamado 'Pacote do Veneno", que amplia a legitimidade do uso de agrotóxicos na agricultura; e o PL 191/2020, flexibilizador das regras para as empresas mineradoras para explorar minério em terras indígenas.   Cerca de 240 áreas   estão na mira do PL.

Como se sabe, com toda riqueza mineral revelada no País há mais de 40 anos, por um projeto que se chamou "Radam" (radametria), as reservas minerais brasileiras passaram a ser referência entre as maiores do mundo.    Mas, em se tratando de compostos minerais para a produção de fertilizantes NPK (nitrogênio, potássio, e fósforo), que dá o impulso à produtividade agrícola e à nossa produção, as reservas brasileiras conhecidas tem possibilidade de suprir apenas até 40 % das demandas atuais da agricultura. 

Apesar disso, o Brasília está entre os cinco maiores produtores agrícolas do mundo: China, Estados Unidos, Brasil, Índia e Rússia. Ocupa o primeiro lugar na produção de café, cana-de-açúcar, laranja e bovinos, além de segundo e terceiro na produção de soja (2º), milho (3º), suínos (3º) e equinos (3º).  Para 2021, a produção nacional de grãos foi estimada em 271 milhões de toneladas, um aumento de 5,7%, ou 14,7 milhões de toneladas a mais que 2019/20, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Entretanto, o maior índice de produtividade mundial é dos Estados Unidos, devido à mecanização da agricultura, o uso de insumos (fertilizantes) e de corretivos da acidez dos solos.

Para manter essa posição privilegiada no ranking mundial, o Brasil importa, contudo, 85% dos fertilizantes consumidos, dos quais 94% do potássio da Rússia e de Belarus, países envolvidos na guerra com a Ucrânia, outro grande produtor de alimentos. Com a guerra, o Brasil está à procura de novos fornecedores, como tentando redescobrir as próprias reservas. Existem, mofando nas gavetas dos burocratas do Ministério das Minas e Energia, pelo menos 408 pedidos de exploração de potássio, 3.900 de fosfato e que somam 20,24 milhões de hectares inexplorados. No Instituto Brasileiro de Meio Ambiente, os processos de autorização de lavra mineral arrastam-se por anos. 

As reservas brasileiras de potássio estimadas somam mais de 1,1 bilhão de toneladas:  837 milhões, em Minas Gerais; 18,6 milhões, em São Paulo; e 38,7 milhões em Sergipe, além de mais 254,3 milhões de toneladas na Amazônia. De acordo com o ministério da Agricultura, menos de 10 % está dentro de reservas indígenas ou de futuras reservas:  237 delas não tiveram ainda homologação.

Em contrapartida, dados do IBGE revelam que, aproximadamente, um terço das famílias brasileiras com renda de até um salário mínimo vive na miséria, subnutridas ou desnutridas mesmo, por causa da escassez de alimentos protéicos. De olho nas vendas externas, todos os governos brasileiros tem priorizado as exportações de commodities (produtos básicos), não se chegando ao desabastecimento interno devido às importações de alimentos (milho, trigo). Não existe no País uma "política de segurança alimentar ", nem de  "socorro alimentar". O problema é sempre empurrado para o futuro.

Uma política para os fertilizantes é realmente necessária mas, em si, não resolve o problema da fome no Brasil nem vai conter a inflação. Outros fortes componentes tangíveis (comércio, transporte, seguros) e intangíveis, sobretudo, uma disposição política efetiva para assegurar alimentos para a população, a preços combatíveis com a renda do brasileiro ou até o fornecimento gratuito. Explorar os recursos minerais nacionais, sem afrontar os preceitos da sustentabilidade, resolveria, parcialmente, essa dependência das importações dos insumos agrícolas. 

Nessa mesma esteira transita o PL 6299-2022, chamado de 'Pacote do Veneno", envolvendo outra questão delicada: a liberação do uso de agrotóxicos na agricultura. Nesse sentido, o governo brasileiro tem agido levianamente, desde 1989, proibindo alguns agrotóxicos e, concomitante, liberando ou fazendo vistas grossas para outros. Mais de 1.500 agrotóxicos e componentes afins são abrangidos por essa estratégia. As agências internacionais consideram 60% deles cancerígenos, desreguladores hormonais ou reprodutivos, indutores do câncer e das mutações genéticas.

De acordo com o Ministério da Economia, em 2019, o Brasil importou 335 mil toneladas de agrotóxicos. O número representa um crescimento de 18% em relação a 2018. A importação desses produtos tem aumentado seguidamente desde 2000.  A legislação reguladora reclama, de fato, por um aperfeiçoamento, não um relaxamento, como propõe o PL 6299-2022.

Diante desse quadro, conclui-se que para sobreviver como modo de produção no Brasil, o capitalismo, que está sempre se reinventando, precisa fazê-lo novamente, porque a  crise nos meios de subsistência e a deterioração da coesão social tem contribuído para elevar as disparidades entre cidadãos, conforme mostram  recentes relatórios de "riscos globais". A produção de alimentos no mundo aumentou, mas também o  número de famintos, que beira a um bilhão de pessoas no mundo.  

*Jornalista e professor

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