Valor Econômico
“Cidadão de bem” é consenso entre esquerda
e direita
“Eu
não escolho lados, eu escolho oportunidades”. A frase é atribuída ao gângster
Meyer Lansky (1902-1983), um imigrante russo, que se tornou um dos criminosos
mais perseguidos pela polícia americana (FBI) ao acumular uma fortuna de mais
de US$ 300 milhões, fruto de suas escolhas não convencionais. O ator Harvey
Keitel, que o interpretou no cinema, concorre ao Oscar 2022 pelo papel.
Vertendo-se a máxima do personagem à
realidade política brasileira, vale indagar: na eleição de outubro, o eleitor
vai escolher um lado, ou uma oportunidade? Definirá o voto impulsionado por uma
determinada ideologia, ou embalado pela perspectiva de melhora de vida?
O Instituto Locomotiva foi a campo investigar se o eleitor brasileiro tem lado na política, ou o que pesa em sua decisão dentro da cabine eleitoral são os dramas cotidianos, como o preço dos alimentos, do gás de cozinha, e, claro, da gasolina ou do diesel. O eleitor brasileiro é um radical ou um pragmático?
O resultado dessa pesquisa, publicado na
edição de ontem do Valor,
mostrou que mais de um terço da população (36%), ou 60 milhões de brasileiros
com mais de 16 anos, não se identificam com nenhuma ideologia política.
O restante dos entrevistados que concordou
em se posicionar dentro de uma escala ideológica com sete graduações, ficou
assim distribuído: 18% são de extrema-direita, 6% de direita, 8% de
centro-direita, 10% de centro, 4% de centro-esquerda, 4% de esquerda e 13% de
extrema-esquerda.
Muito além da revelação dessa massa de “nem
nem”, os desdobramentos da pesquisa trouxeram outras descobertas curiosas. Por
exemplo: quando o participante da pesquisa é pressionado a se posicionar entre
um dos dois polos, 58% dos entrevistados responderam que se veem “mais à
direita” do espectro político, enquanto 42% se colocaram “mais à esquerda”.
Ou seja, a conclusão elementar (meu caro
Watson) é de que a maioria da população adulta brasileira se identifica mais com
os valores atribuídos à direita.
Porém, como dois e dois são cinco, os
resultados da pesquisa evidenciam que, a despeito do autoposicionamento dos
entrevistados de um lado ou de outro, os conceitos de esquerda e direita - na
acepção científica dos termos, pela sociologia, filosofia ou ciência política
-, são noções difusas, que escapam ao pleno discernimento do eleitor.
As respostas obtidas pelo levantamento
sugerem que no grupo que se declarou “mais à direita”, existem eleitores que o
senso comum identificaria como pertencentes ao espectro político da esquerda. E
vice-versa.
“O principal indicador disso é que
diferentemente do que prega o senso comum, a sociedade brasileira é menos
ideológica que se pensa”, afirma o coordenador da pesquisa e presidente do
Instituto Locomotiva, Renato Meirelles.
O levantamento demonstrou, por exemplo, que
51% dos brasileiros que residem no Nordeste, um notório feudo eleitoral do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da esquerda, posicionaram-se “mais à
direita”.
Entre os negros, 55% afirmaram
identificar-se com os valores de direita. Um dado que surpreende por se tratar
de uma população que, pelos conceitos da sociologia e da ciência política,
insere-se no grupo das minorias - um segmento cujas bandeiras são tradicionalmente
hasteadas por políticos de esquerda.
Entre as mulheres, um dos alvos principais
dessa campanha por constituírem a maioria do eleitorado, 54% se colocaram à
direita. Entre os jovens de 18 a 29 anos, o percentual foi idêntico: 54%
veem-se à direita.
Em uma lista com mais de 20 termos
habitualmente utilizados nas conversas políticas, como direita, esquerda,
fascista, feminista, petista, tucano, progressista, liberal, conservador,
comunista, geraram maior identificação política entre os brasileiros: “cidadão
de bem” (opção de 47% dos entrevistados); anticorrupção (33% dos
entrevistados); e antirracista (22%).
No grupo que se declarou “mais à esquerda”,
21% considera-se um cidadão de bem, uma terminologia habitualmente associada
aos nichos mais conservadores da sociedade.
Segundo Renato Meirelles, o “cidadão de
bem”, termo de consenso entre esquerda e direita, é a definição daquele cidadão
que acorda cedo para trabalhar muito, está mais interessado em resolver a vida
dele do que ficar nos bares discutindo política, quer ganhar o seu dinheiro,
construir o seu negócio, ver o filho na faculdade, quer uma ceia de Natal em
que a família se reúna sem brigas.
A pesquisa revelou que pessoas que se
identificaram “mais à esquerda” defendem bandeiras tradicionalmente associadas
à direita. Por exemplo, 25% dos que se colocam à esquerda afirmam que mais
pessoas deveriam ter acesso ao porte de armas - um dos temas principais do
programa de governo do presidente Jair Bolsonaro.
De igual forma, 41% do grupo que se
declarou de esquerda acha que as escolas públicas deveriam ter ensino
religioso, sendo que normalmente, esse campo político sustenta que o Estado
seja laico.
Em contrapartida, no grupo que se
posicionou à direita, 44% acreditam que o Estado brasileiro deva ser laico e
28% acham que a polícia comete excessos e deveria ser menos violenta.
Laicicismo do Estado brasileiro e combate à violência policial são temas
normalmente associados ao espectro da esquerda.
Para Meirelles, essa confusão de conceitos
explicaria, por exemplo, porque o eleitor evangélico de Bolsonaro de hoje era o
eleitor evangélico de Lula no passado.
“O Lula é a representação da melhora de
qualidade de vida que eles tiveram no passado, o Lula fala pra esse eleitor na
economia [do dia-a-dia], na educação. O Bolsonaro fala pra esse eleitor no
campo dos costumes”, diz o pesquisador.
Meirelles afirma que a demarcação do
“território de batalha” da eleição - se no campo da economia ou dos costumes -,
é crucial, porque desse “front” emergirá o próximo presidente da República.
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