O Estado de S. Paulo
É mais fácil preferir o varejo das verbas
administradas pelo Centrão ao compromisso com os resultados da educação.
A revelação de que dois pastores amigos do
presidente da República cobravam uns trocados para liberar recursos do Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) tomou conta do noticiário
durante dias e provocou a queda do ministro. Mas ninguém se deu ao trabalho de
explicar o que é e como funciona este fundo, que maneja R$ 50 bilhões ao ano. E
uma outra notícia, a da aprovação, pelo Ministério da Educação, de uma
desastrosa proposta de alteração do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que
pode afetar a vida de milhões de jovens nos próximos anos, passou totalmente
despercebida. É assim que a educação brasileira não anda: gasta-se enorme
energia discutindo os detalhes, e ignoram-se as questões maiores.
O FNDE é uma autarquia que administra e
repassa para Estados e municípios recursos obrigatórios, como o Fundeb, o
crédito educativo (Fies) e os recursos do salário-educação, e executa um enorme
varejo de programas, como os de livros didáticos, transporte escolar, dinheiro
direto nas escolas, alimentação escolar, construção de prédios e outros. Vários
bilhões são classificados como “transferências voluntárias” e dependem, para
ser liberados, do bom entendimento entre a direção do fundo e os governadores e
prefeitos. Não é à toa que o Centrão sempre teve interesse em controlar o FNDE.
Precisamos, mesmo, de uma autarquia como essa? Não seria melhor simplesmente transferir os recursos diretamente para as redes escolares carentes, em função de critérios de equidade e desempenho, e tirá-los das mãos dos políticos? É isso o que precisaria ser discutido.
Sobre o novo Enem, o Conselho Nacional de
Educação (CNE) desenvolveu recentemente um projeto bastante razoável, alinhado
com o que ocorre no resto do mundo, em que os alunos que se destinam a cursos
superiores seriam avaliados conforme as grandes áreas de orientação
profissional – tecnologia e engenharia, ciências biológicas e da saúde,
profissões sociais, humanidades. Se bem executada, a proposta poderia ajudar a
dar um rumo à reforma do ensino médio, que se arrasta há anos. No entanto, o
Ministério da Educação preferiu adotar um projeto prolixo e inexequível que
combina quatro “eixos estruturantes” (investigação científica, processos
criativos, mediação e intervenção sociocultural e empreendedorismo) com quatro
estranhos “itinerários formativos”: linguagens,
que vão do Português à dança, passando por informática; ciências naturais, que vão da
Física à Biologia molecular, mas excluem as engenharias; ciências sociais e humanas, que vão
da Sociologia à Filosofia, mas excluem Economia e Direito; e Matemática, que – Deus sabe por que
– fica sozinha. Teria sido uma oportunidade para o CNE publicar sua proposta,
num texto claro e simples, livre de jargão jurídico e pedagógico, firmando
posição e abrindo um debate que seria de grande importância para quando
tivermos um outro governo. Mas, ao invés disso, o CNE preferiu colocar sua
proposta na gaveta e endossar a que veio da burocracia ministerial. Se é para
fazer isso, para que, mesmo, serve este conselho?
Há mais de dez anos eu e outras poucas
pessoas vimos escrevendo sobre os equívocos que começaram com a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), se desdobraram nas deformações introduzidas na reforma
do ensino médio e culminam, agora, nesta proposta do novo Enem. O que
defendemos é o que se faz em todo o mundo onde a educação funciona. Ninguém
contesta, mas a burocracia pedagógica segue impávida em sua falta de rumo.
A questão central é que a educação não pode
ser pensada como o acúmulo de habilidades ou competências separadas, mas como a
transmissão e o desenvolvimento de culturas que combinam conteúdos e práticas
de forma viva e significativa. Se eu juntar um sistema digestivo, um sistema
respiratório, um cérebro etc., eu, no máximo, construiria um Frankenstein,
nunca uma pessoa. Da mesma forma, não se aprende uma língua decorando regras
gramaticais e taxonomias de estilos literários, mas interagindo, falando,
lendo, escrevendo e, depois, analisando; e não se formam bons profissionais com
aulas de empreendedorismo e processos criativos, mas com o desenvolvimento
integrado de conhecimentos, práticas e valores das diferentes áreas de atuação.
O que se deve buscar na educação não é
substituir o ensino burocrático e tradicional dos currículos de Química,
Biologia, História e Geografia por competências genéricas vazias, mas dar aos
estudantes condições e oportunidades para absorver e fazer parte da cultura
viva e rica de conteúdos que começa com a linguagem e o uso dos números e
culmina nas diversas áreas de formação acadêmica e profissional.
Parece óbvio, e a grande dúvida é por que
tanta gente é contra ou indiferente. Minha explicação é de que manter e
desenvolver a cultura viva é muito mais difícil do que persistir na rotina do
ensino burocrático, que continua a mesma quando se pretende substituir as
matérias enlatadas pelas “competências” da moda. Da mesma maneira que se
prefere o varejo das verbas federais administradas pelo Centrão ao compromisso
e a responsabilidade com os resultados da educação.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
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