sexta-feira, 8 de abril de 2022

Simon Schwartzman*: De pastores e competências

O Estado de S. Paulo

É mais fácil preferir o varejo das verbas administradas pelo Centrão ao compromisso com os resultados da educação.

A revelação de que dois pastores amigos do presidente da República cobravam uns trocados para liberar recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) tomou conta do noticiário durante dias e provocou a queda do ministro. Mas ninguém se deu ao trabalho de explicar o que é e como funciona este fundo, que maneja R$ 50 bilhões ao ano. E uma outra notícia, a da aprovação, pelo Ministério da Educação, de uma desastrosa proposta de alteração do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), que pode afetar a vida de milhões de jovens nos próximos anos, passou totalmente despercebida. É assim que a educação brasileira não anda: gasta-se enorme energia discutindo os detalhes, e ignoram-se as questões maiores.

O FNDE é uma autarquia que administra e repassa para Estados e municípios recursos obrigatórios, como o Fundeb, o crédito educativo (Fies) e os recursos do salário-educação, e executa um enorme varejo de programas, como os de livros didáticos, transporte escolar, dinheiro direto nas escolas, alimentação escolar, construção de prédios e outros. Vários bilhões são classificados como “transferências voluntárias” e dependem, para ser liberados, do bom entendimento entre a direção do fundo e os governadores e prefeitos. Não é à toa que o Centrão sempre teve interesse em controlar o FNDE.

Precisamos, mesmo, de uma autarquia como essa? Não seria melhor simplesmente transferir os recursos diretamente para as redes escolares carentes, em função de critérios de equidade e desempenho, e tirá-los das mãos dos políticos? É isso o que precisaria ser discutido.

Sobre o novo Enem, o Conselho Nacional de Educação (CNE) desenvolveu recentemente um projeto bastante razoável, alinhado com o que ocorre no resto do mundo, em que os alunos que se destinam a cursos superiores seriam avaliados conforme as grandes áreas de orientação profissional – tecnologia e engenharia, ciências biológicas e da saúde, profissões sociais, humanidades. Se bem executada, a proposta poderia ajudar a dar um rumo à reforma do ensino médio, que se arrasta há anos. No entanto, o Ministério da Educação preferiu adotar um projeto prolixo e inexequível que combina quatro “eixos estruturantes” (investigação científica, processos criativos, mediação e intervenção sociocultural e empreendedorismo) com quatro estranhos “itinerários formativos”: linguagens, que vão do Português à dança, passando por informática; ciências naturais, que vão da Física à Biologia molecular, mas excluem as engenharias; ciências sociais e humanas, que vão da Sociologia à Filosofia, mas excluem Economia e Direito; e Matemática, que – Deus sabe por que – fica sozinha. Teria sido uma oportunidade para o CNE publicar sua proposta, num texto claro e simples, livre de jargão jurídico e pedagógico, firmando posição e abrindo um debate que seria de grande importância para quando tivermos um outro governo. Mas, ao invés disso, o CNE preferiu colocar sua proposta na gaveta e endossar a que veio da burocracia ministerial. Se é para fazer isso, para que, mesmo, serve este conselho?

Há mais de dez anos eu e outras poucas pessoas vimos escrevendo sobre os equívocos que começaram com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), se desdobraram nas deformações introduzidas na reforma do ensino médio e culminam, agora, nesta proposta do novo Enem. O que defendemos é o que se faz em todo o mundo onde a educação funciona. Ninguém contesta, mas a burocracia pedagógica segue impávida em sua falta de rumo.

A questão central é que a educação não pode ser pensada como o acúmulo de habilidades ou competências separadas, mas como a transmissão e o desenvolvimento de culturas que combinam conteúdos e práticas de forma viva e significativa. Se eu juntar um sistema digestivo, um sistema respiratório, um cérebro etc., eu, no máximo, construiria um Frankenstein, nunca uma pessoa. Da mesma forma, não se aprende uma língua decorando regras gramaticais e taxonomias de estilos literários, mas interagindo, falando, lendo, escrevendo e, depois, analisando; e não se formam bons profissionais com aulas de empreendedorismo e processos criativos, mas com o desenvolvimento integrado de conhecimentos, práticas e valores das diferentes áreas de atuação.

O que se deve buscar na educação não é substituir o ensino burocrático e tradicional dos currículos de Química, Biologia, História e Geografia por competências genéricas vazias, mas dar aos estudantes condições e oportunidades para absorver e fazer parte da cultura viva e rica de conteúdos que começa com a linguagem e o uso dos números e culmina nas diversas áreas de formação acadêmica e profissional.

Parece óbvio, e a grande dúvida é por que tanta gente é contra ou indiferente. Minha explicação é de que manter e desenvolver a cultura viva é muito mais difícil do que persistir na rotina do ensino burocrático, que continua a mesma quando se pretende substituir as matérias enlatadas pelas “competências” da moda. Da mesma maneira que se prefere o varejo das verbas federais administradas pelo Centrão ao compromisso e a responsabilidade com os resultados da educação.

*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências

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